quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Peter G. Klein - Menger, o Revolucionário

Carl Menger
Nunca viveram ao mesmo tempo", escreveu Ludwig von Mises, "mais que uma vintena de pessoas cuja contribuição à ciência econômica pudesse ser considerada essencial." Um desses homens foi Carl Menger (1840-1921), Professor de Economia Política da Universidade de Viena e fundador da Escola Austríaca de Economia.

A obra pioneira de Menger, Grundsätze der Volkswirtschaftslehre [Princípios de Economia Política], publicada em 1871, não apenas introduziu o conceito de análise marginal, como também apresentou uma abordagem radicalmente nova sobre a análise econômica, análise essa que ainda forma o núcleo da teoria austríaca do valor e dos preços.

Ao contrário de seus contemporâneos William Stanley Jevons e Leon Walras, que independentemente desenvolveram conceitos de utilidade marginal durante os anos 1870, Menger preferiu uma abordagem que fosse dedutiva, teleológica, e, em um sentido fundamental, humanística. Conquanto Menger compartilhasse com seus contemporâneos a preferência pelo raciocínio abstrato, ele estava primordialmente interessado em explicar como funcionavam as ações de pessoas reais no mundo real, e não em criar representações artificiais e estilizadas da realidade.

Para Menger, a economia é o estudo das escolhas propositais dos seres humanos, a relação entre meios e fins. Ele começa seu tratado dizendo que "Todas as coisas estão sujeitas à lei da causa e efeito. Não existe exceção para esse grande princípio." Jevons e Walras rejeitavam causa e efeito em favor de uma determinação simultânea - a idéia de que sistemas complexos podem ser modelados como sendo sistemas de equações simultâneas que acreditam que nenhuma variável pode "causar" uma outra variável. Essa se tornou a abordagem padrão da ciência econômica atual, e é aceita por quase todos os economistas, exceto os seguidores de Carl Menger.

Tradução de Leandro Roque. Texto completo em: Instituto Ludwig von Mises.

sábado, 10 de dezembro de 2011

J. J. Rousseau: A Questão da Desigualdade Social


Desde seu aparecimento a obra de Rousseau tem despertado o interesse dos mais variados tipos. Sua oposição a Hobbes se tornou emblemática no âmbito do contratualismo e suas teses sobre a desigualdade inspiraram teóricos sociais a ponto de Claude Lévi-Strauss, o famoso antropólogo, ter considerado o autor do Discurso como fundador das ciências do homem:

Rousseau não foi apenas um observador perspicaz da vida do campo, um leitor apaixonado de livros de viagem, um analista competente dos costumes e das crenças exóticas: pode-se afirmar, sem receio de ser desmentido, que essa etnologia, que até então não existia, ele a havia concebido, desejado e anunciado, um século inteiro antes que ela surgisse. (LEVI-STRAUSS, 1962 apud ROUSSEAU, 1985, p. 175)

O contratualismo de Jean-Jaques Rousseau se distancia bastante da perspectiva hobbesiana não somente pela contrariedade manifesta das conclusões, mas sobretudo pelo espírito crítico que o anima. Se não foi um revolucionário, no sentido atual do termo, Rousseau foi sem dúvida um inconformado com a situação de penúria e exploração a qual uns homens submetem outros em função de seu poder político e econômico. Por isso, o correto entendimento do ponto de vista desenvolvido em O Contrato Social depende em grande parte se compreender a centralidade que o problema da desigualdade social ocupa na obra do filósofo. O estudo do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, parece, portanto, fundamental na compreensão do seu pensamento político.

Assim como Hobbes, Rousseau parte da hipótese de um “estado de natureza” para construir sua filosofia política. Tal hipótese é, nele, desenvolvida em toda primeira parte do Discurso, a fim de mostrar o abismo existente entre o homem tal como o podemos apreender em sua vida social e o homem natural. Para Rousseau, em estado natural, o homem é desprovido de todas as características que implicam na sociabilidade, razão pela qual não há motivo, senão o acaso, para que tenha ele adquirido as características de um “animal social”. Não é necessário, contudo, perguntar-se em que tempo ou lugar tais homens poderiam ser encontrados. O próprio Rousseau deixa claro que o homem natural não tem existência histórica, que trata-se de um estado “que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente não existirá jamais” (ROUSSEAU, 1958, p. 42)

Se Rousseau não quer postular uma existência histórica para o homem natural, não deixa contudo de recorrer insistentemente aos relatos de viagem sobre os selvagens do Novo Mundo. É que, não personificando o estado natural do homem, os selvagens estão, contudo, mas próximos deste, uma vez que cada novo grau de civilização implica, para o filósofo, num maior afastamento e degradação do homem. 

Partindo do homem natural, portanto, Rousseau traça uma linha evolutiva a partir dos primeiros desenvolvimentos em termos de civilização e socialidade, o que implica também na construção da própria desigualdade, do conflito e de todos os males que afligem a espécie, até chegar ao homem moderno, o europeu plenamente civilizado e consequentemente corrompido.
Nessa escala evolutiva, a origem da sociedade se confunde com a da própria desigualdade. Enquanto que no Contrato Social o filósofo descreve dois fatos distintos: o homem enquanto produto da natureza e o homem como produto da sociedade, sem se preocupar em estabelecer como foi possível a passagem de um a outro estado, no Discurso justamente Rousseau se esforça, através de várias hipóteses e conjecturas, para resolver esse problema. Se o homem não é naturalmente sociável, como pensava uma longa tradição que remonta a Aristóteles, porque a integração social parece ter se tornado o inevitável caminho da história humana? De modo que as teses do Contrato e do Discurso são complementares entre si, embora devam ser tratadas em dois momentos distintos. Assim, embora ao princípio do Contrato Rousseau afirme ignorar as causas da servidão humana[1], é certo que tais causas já haviam sido estabelecidas no Discurso. Pare inclusive haver certa dependência entre os dois textos, pois se o grande tratado visa investigar as convenções que legitimam a desigualdade, já parte ele do juízo de que tal desigualdade não foi estabelecida ou querida pela natureza, mas é produto dessas convenções cuja origem é preciso determinar.

Nesse sentido, enquanto a primeira parte do Discurso se ocupa da descrição do homem em estado de natureza, a segunda parte busca determinar as causas mediante as quais o homem teve que sair desse estado de primitiva felicidade e abundância para o estado de sociabilidade. Diz o filósofo:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é meu”, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado a seus semelhantes: Fugi às palavras desse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de ninguém. (ROUSSEAU, 1985, p. 84)

Assim, o filósofo parece creditar ao desenvolvimento da propriedade privada o fundamento da desigualdade entre os homens. Mas, embora enuncie deste modo sintético, sua tese no início da segunda parte do Discurso, desenvolve-a subsequentemente de modo a mostrar os eventos que possivelmente tiveram que se passar para que o homem abandonasse seu estado de liberdade natural para integrar-se numa sociedade sob um governo.

A partir de eventos naturais e das necessidades deles decorrentes, Rousseau postula uma primeira diferenciação entre os homens até então iguais. As condições naturais adversas, exigiram do homem certa industria e da relação entre seu trabalho e natureza engendram nele as primeiras diferenciações e os primeiros impulsos para a sociabilidade[2]. Parece haver aqui, ao que tudo indica, um salto da condição natural do homem para um condição média, posterior àquela mas anterior à condição social da civilização. A figura do selvagem parece, pois, exercer essa função mediadora entre o tipo puro do homem natural e o homem social, de tal modo que na descrição deste estágio da evolução das formas sociais, Rousseau parece assimilar o que fora o homem deste tempo hipotético ao que são os selvagens do mundo recém descoberto:

Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a coser suas vestimentas de peles com espinhos ou ossos de peixe, a se ornar com plumas e conchas, a pintar o corpo com diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e flechas, a talhar com pedras afiadas algumas embarcações para pescar ou alguns grosseiros instrumentos musicais; enfim, enquanto só se dedicaram a trabalhos que podiam ser feitos por uma só pessoa, e artes que não exigiam o concurso de várias mãos, eles viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto podiam ser por sua natureza, e continuaram a desfrutar entre si das comodidades de um comércio independente. Mas, a partir do momento em que um homem precisou do auxílio de outro; a partir do momento em que se aperceberam ser útil a um só possuir provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade introduziu-se, o trabalho se tornou necessário. (ROUSSEAU, 1985, p. 92-93)
           

Como que em decorrência da propriedade e da divisão do trabalho, os homens agora aparecem desigualmente dotados de riqueza e é esta desigualdade de posses que está no fundamento da sociedade civil, do governo e de todas as prerrogativas e desigualdades posteriores, pois, para Rousseau, o contrato que funda a sociedade e estabelece um governo é um produto da astúcia dos ricos para conservar suas posses muito mais do que do temor dos pobres para protegerem suas vidas. O fundamento da desigualdade entre os homens parece estar, então, na propriedade privada e no trabalho. Tal será a hipótese com a qual trabalharemos.


[1] “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão.” (Rousseau, 1962, p. 20)
[2] Cf. Rousseau. op. cit. p. 86


Referências
ROUSSEAU, Jean-Jaques. O Contrato Social; tradução de Lourdes Santos Machado. Porto Alegre: Editora Globo, 1962.

______________________. Da sociedade Geral do Gênero Humano; tradução de Lourdes Santos Machado. Porto Alegre: Editora Globo, 1962.

______________________. Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens; tradução de Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagle. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.

______________________ Cartas escritas da montanha; tradução de Constança Peres Pissara et al. São Paulo: EDUC: UNESP, 2006.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Platão - O Banquete

1. Introdução

Platão. Detalhe de Rafael. Scuola de Atenas.
Enquanto os mais recentes trabalhos de helenistas e estudiosos de Platão tendem a colocar dúvida sobre a compreensão tradicional do filósofo grego, centralizada na metafísica dualista das “Formas”, é preciso evitar, na leitura isolada de seus diálogos, antecipar a compreensão do próprio texto pelo que se conhece, ou se julga conhecer, da filosofia platônica. É preciso,pois, voltar ao próprio texto, sem prejuízo do que possa nele encontrar.

Voltemos, então, ao texto do diálogo O Banquete, ou O Simpósio[1] para os portugueses.

Nossa leitura d’O Banquete vai se desenvolver em três níveis: 1) estrutura; 2) jogo tético, considerando o que cada personagem defende individualmente; 3)síntese platônica, i.e., o modo como os elementos de cada discursos são recuperados e reestruturados no discurso socrático. Dessa leitura devemos esperar um esclarecimento sobre a posição platônica quanto ao um dos temas mais controversos na sociedade grega: o Eros (Amor-Desejo) e a Erótica (arte de amar e ser amado).

Desde já antecipo que a Erótica dá lugar a duas “ciências” diferentes: a ciência do amante (aquele que ama) e a ciência do amado (aquele que é objeto do amor). O Banquete se ocupa apenas da primeira, enquanto que a segunda é tratada por Platão na primeira parte do diálogo Fedro. Isso se deve ao fato de que, como veremos, há duas propriedades fundamentais do Eros: prima, o amor é sempre transitivo, i.e., não se ama, simplesmente; ama-se alguém ou alguma coisa; secunda, a relação erótica é, necessariamente, unívoca: ou se é amante, ou se é amado; não se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

2. Personagens e estrutura do Diálogo

2.1 Personagens

Apolodoro: Discípulo de Sócrates. Um dos que o acompanharam na hora da morte. (Cf. Fédon). É, como se pode ver na primeira parte d’O Banquete,o mais entusiasmado dos discípulos, embora, segundo a crítica, não seja dos mais inteligentes.

Companheiro de Apolodoro: Personagem anônimo. Ocupa o lugar do leitor do Diálogo.

Aristodemo: Aquele que presenciou o banquete e cuja narrativa Apolodoro nos repete.

Sócrates: Personagem central, responsável por expor a doutrina platônica.

Agatão: Poeta trágico, em honra de quem se celebra o banquete.

Erixímaco: Médico, filho de Acúmeno, citado em Fedro.

Pausânias: Político ateniense.

Fedro: Aparece também em diálogo homônimo no qual se discute a questão do amado, como esse deve se relacionar o amante.

Aristófanes: Poeta cômico. Escreveu, dentre muitas comédias, As nuvens na qual mostra Sócrates como um filósofo especulativo preocupado com as questões da natureza.

Diotima: Sacerdotisa. Aparentemente o único personagem feminino em diálogos de Platão. Não há outras notícias sobre sua existência, sendo, muito provavelmente fictícia. Em Fedro, porém, Sócrates diz ter muito aprendido sobre o Amor com homens e mulheres sábios. Dessa mulheres, cita somente Safo, muito famosa poetisa da ilha de Lesbos.

Alcibíades: Político ateniense, conhecido por sua grande beleza e muito citado da época. É certo que conheceu, foi discípulo e talvez amante de Sócrates. Porém, os diálogos platônicos homônimos são considerados apócrifos. 

2.2 Estrutura do Diálogo

172a-174a[2]: Prelúdio. Diálogo entre Apolodoro e o personagem anônimo, cujo lugar nos é reservado.

174a-174d: Encontro de Sócrates e Aristodemo.

174d-175c: Chegada ao banquete de Agatão.

175c-175e: Diálogo entre Sócrates e Agatão.

176a-178a: Eurixímaco propõe um simpósio sobre Eros.

178a-180c: Discurso de Fedro.

180c- 185c: Discurso de Pausânias.

185c-189a: Discurso de Erixímaco.

189a-193e: Discurso de Aristófanes.

193e-194d: Intermezzo: diálogo Sócrates-Agatão.

194e- 198a:Discurso de Agatão.

198a-201e: Diálogo entre Sócrates e Agatão.

201e-212a: Discurso de Diotima.

212a-215a: Chegada de Alcibíades.

215a- 222b: Discurso de Alcibíades.

222b-223d: Epílogo.

2. Conteúdo e significado dos discursos

Discurso de Fedro:

Como fora proposto que se fizessem discurso em honra do deus Eros, Fedro busca nos poetas a razão para seu elogio do deus.

Seguindo a tradição de Hesíodo, diz ele que Eros é o mais honrado dos deuses, pois, entre, estes, “o mais antigo é o mais honroso” (178b) — eis seu primeiro argumento.

O segundo argumento é que “sendo o mais antigo é para nós a causa dos maiores bens” (178c). Fedro justifica: aquilo que conduz “à vergonha do que é feio e ao apreço do que é belo” (178d) é o princípio que deve conduzir a vida dos homens. O amor é esse princípio.

Terceiro argumento: só os que amam aceitam morrer por outro. Há, pois, uma virtude que se forma em torno do amor, que é o que mais agrada aos deuses (Ex: Orfeu, Aquiles, Alceste). Logo, “o Amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após a morte” (180b)
    
Discurso de Pausânias:

Pausânias não concorda inteiramente com Fedro. Recorrendo ainda aos poetas, Pausânias faz uma distinção entre dois tipos de Eros: há sim, um Eros antigo, Celestial, pois que companheiro de Afrodite Celestial, filha do Céu (Uranos); mas há também um Eros, mais jovem, Pandêmico, companheiro de Afrodite Pandêmica, filha de Zeus. Essa distinção inicial serve para separar dois tipos distintos de Amor: um que é feito de modo belo e outro que é vulgar e feio.

A distinção inicial entre dois Amores, Pausânias liga a uma segunda premissa: “Toda ação [...]em si mesma, enquanto é simplesmente praticada, nem é bela nem feia.] Logo, “o Amor não é todo ele belo e digo de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente” (180e-181a)

O Amor vulgar (pandêmico) é aquele que tem em vista simplesmente “o efetuar o ato”. É o amor que se dirige tanto às mulheres quanto aos jovens, mais ao corpo que a alma, que é desprovido de inteligência. Daí que o amante possuído desse Amor é capaz tanto do bem quanto do mal.

O Amor celestial (urânico), porém, só se volta para o que é másculo, ao que é mais forte e inteligente. Exclui-se, dele, portanto: a relação com as mulheres e os meninos. Pausânias parece reservar esse Eros aos jovens e homens feitos, não distinguindo entre eles.

Embora não esteja esse assunto em questão, Pausânias acrescenta uma nota sobre o modo como os amados devem agir: “é belo aquiescer em vista da virtude” (185ª. Faz isso, porque é necessário para ele criar alguma conexão entre o amor pelos jovens e o amor intelectual, pelo qual pretende justificar a própria distinção dos tipos.

“É preciso então congraçar num mesmo objetivo essas duas normas, a do amor pelos jovens e a do amor ao saber e ás demais virtudes” (184d)

De fato, porém, Pausânias não parece chegar a bom termo com seu discurso: suas distinções parecem por demais forçadas e superficiais quanto ao que pouco parece se distinguir. Quanto ao que é distinto por si mesmo (o amor aos rapazes e a busca da virtude), não parece conseguir estabelecer uma ligação clara.

Discurso de Erixímaco:


O discurso do médico Erixímaco atesta bem como a erótica, a difícil arte de lidar com os prazeres, foi, para os antigos atenienses, comparável à arte médica hipocrática: arte da medida, sobretudo.

Partindo do discurso de Pausânias, Eurixímaco mantém a duplicidade do Amor. Não fala mais tem termos poéticos, porém. O Amor agora é um princípio de agregação e harmonia; a medicina é a arte de “suscitar o amor onde não há mas deve haver” (186d).

A diferença fundamental para o discurso de Pausânias é que, associando os dois amores as musas, Eurixímaco recupera o como digno e necessário o que Pausânias havia considerado vulgar. Há certamente o amor celestial, que provém da musa Urânia, mas há também, igualmente digo, o Amor popular, que provém da musa Polímnia (padroeira da poesia lírica).

Discurso de Aristófanes:


Em seu discurso, Aristófanes prefere zombar dos modos sexuais gregos através de uma fábula que concebe, a muito conhecida fábula de Andrógino: segundo ela, no princípio os humanos tinham outra natureza, quatro pernas, quatro braços, dois rostos, enfim, o duplo do que é hoje, ou melhor, hoje os homens são apenas a metade do que foram, por castigo dos deuses. Acrescente-se que haviam três gêneros: o homem, a mulher e o andrógino.

Tendo os homens sido castigados e divididos pela metade, cada metade passou a buscar pela outra, de modo que morriam de inércia e de fome. Para que isso não ocorresse, Zeus lhes mudou o sexo para a frente e fez com que gerassem um no outro, ou que ao menos, no caso dos homens, que se saciassem na relação.  É sem sentido falar, pois, de moderação: os limites já tendo, para benefícios dos homens, sendo traçados pela natureza (deuses).
    
Discurso de Agatão:

O discurso de Agatão traz novo desvio e estabelece o princípio: quais sejam os dons de Eros, é preciso explicar “em virtude de que natureza vem a ser causa de tais efeitos” (195a).

Como poeta, Agatão volta a falar do deus: ele é o mais feliz, e o é por ser o mais jovem. Ele se afasta da velhice e se aproxima da juventude. O princípio de que falava Fedro não é, portanto, o Amor, mas a Necessidade.

É também ele o mais delicado. Afasta-se do que é rude e se aproxima do que é delicado.

Terceira propriedade de sua natureza: ele é úmido. O Amor é moldável, adaptando-se a cada alma. Ele se opõe à deformidade e do que definha, e se aproxima do que floresce. 

Quarta propriedade: o Amor é justo.

Quinta propriedade: além da virtude da justiça, o amor é temperante, pois “dominando prazeres e desejos seria o Amor excepcionalmente temperante” (196c)

Sexta propriedade: é corajoso. Tendo dominando o mais forte dos deuses, Ares, é ele então o mais corajoso.

Sétima propriedade: sabedoria. Primeiro, todo homem se torna poeta desde que o Amor lhe toque. O Amor é um bom poeta (ποιητής). Toda criação (ποιησις), é, pois, obra do Amor. O Amor nasce da beleza, “pois no feio não se firma Amor” (197b).

Discurso de Sócrates-Diotima:


Antes de fazer seus discurso, que colocara na boca da sacerdotisa Diotima, Sócrates, pretende estabelecer a questão aporética a qual dará ensejo à doutrina propriamente dita.

Retomando o princípio enunciado por Agatão, Sócrates admite que é preciso mostrar o próprio Amor, investigar sua natureza. Mas para isso, não recorre ao modo poético de falar do deus, senão ao conceito subjacente na palavra “amor”.

O Amor é amor de alguma coisa, admite Agatão. Logo é transitivo. Mas se o Amor deseja seu objeto é porque não o possui. O Amor parece então ser uma necessidade, portanto fundar-se numa carência. Mas, com isso, é preciso admitir que o amor, não seja em si mesmo, nem belo nem bom como dizia Agatão, nem possuir quaisquer das virtudes que ele lhe atribuiu. Dá-se aqui a aporia a qual o discurso de Diotima terá que resolver.

Se o Amor nem é belo nem é bom, não é, preciso, contudo admitir que seja feio e mau, mas algo entre os dois extremos.

Recorrendo à forma de falar dos poetas, é preciso admitir que não seja o Amor um deus; logo, que não seja um imortal, mas nem por isso um mortal, mas um gênio (δαιμον), filho de Recurso e da Pobreza: de seus pais herdando sua condição intermediária: por ser filho da Pobreza, o Amor é sempre carente, mas por ser também filho de Recurso, ele procura sempre o que é belo e bom, “ávido de sabedoria e cheio de recursos” (203d)

O amor não é amado, mas amante. (204c)

Que proveito tem, então o Amor. No Amor não buscam os homens sua “metade”, como disse Aristófanes, mas o próprio bem, que é algo de que são carentes.

Mas em que consiste a atividade que se chama amor? Responde Diotima: em conceber, dar a luz, e mais propriamente, dar a luz ao que é belo. O amor não é amor do belo, mas da geração no belo. Sendo a geração, para os homens, a forma possível de imortalidade, o Amor é amor da imortalidade. “a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal” (207d)

Assim, o amor pelas mulheres é suscitado naqueles que estão fecundados no corpo. Mas essa relação já não tem o caráter negativo que Pausânias lhe dera, pois, também aí, o que deseja e alcança o homem é a imortalidade, através da procriação. (208e)

Por outro lado, os que estão fecundados na alma e deve conceber mais na alma do que no corpo, assim o fazem: todas as criações artísticas são manifestamente suscitadas por esse Amor. Daí confirmar-se o que dizia Agatão nesse sentido. Este Amor também se volta para os corpos belos, pois, devendo gerar no que é belo, tomará o cidadão ainda não formado inteiramente para educá-lo.

Não há diversos tipos de Amor, como Pausânias e Eurixímaco defenderam, mas somente uma multiplicidade de graus, manifestações diversas do mesmo princípio: começa pro ser amor aos belos corpos, gerando belos discursos, e, ademais de preferência a um só corpo (o uno é superior ao múltiplo); descobre depois que una é a própria beleza, faz-se amante de todos os belos corpos e abandona a violência do amor por um só; depois considera a beleza na alma superior ao do corpo; já depois, é capaz de contemplar o belo nos ofícios e nas leis; depois dos ofícios passa às ciências; dedica-se por fim à ciência cujo objeto é o belo em si. Esse caminho, por graus, define a própria dialética platônica, que através dos simulacros, chega enfim à contemplação dos Valores em si mesmos.

Discurso de Alcibíades


A Ciência Perfeita, contemplação muda da Forma, no caso do Belo, não é, contudo, o último estágio da dialética platônica. O Sábio, que a tal chegou, necessita retornar para o reino dos simulacros, para conduzir os outros homens, presos às sombras, para “fora da caverna”, como se pode entender pela Alegoria da Caverna (República, VII).

Gustave Doré. Alcibíades chega à casa de Agatão.


O Amor que Alcibíades confessa a Sócrates personifica o Amor de que Pausânias fez apologia. Retornamos, assim, ao princípio do Simpósio. Esse retorno serve como uma refutação personificada à tese de Pausânias. Alcibíades, incapaz de compreender os graus do Amor, acusa Sócrates de inverter as posições naturais: “fazendo-se de amoroso, enquanto é antes na posição de bem amado que ele mesmo fica, em vez de amante” (222b).

Tal acusação, porém, só revela a incompreensão de Alcibíades do que seja o Amor e, confirma, por seu ridículo, a tese de Sócrates.  

3. A doutrina erótica de Platão

Do lado do amante, a erótica visa responder duas questões: a quem se deve amar e como se deve amar. Como se viu claramente, Sócrates não divide o Eros em dois, como fizera Pausânias, mas faz com que ele ocupe um lugar indeterminado, a princípio. É o mesmo Eros que preside qualquer relação, pois o modo de ser da relação não é determinado pela natureza de Eros que é sempre a mesma, mas pelo grau de perfeição do objeto.

É importante ver que a doutrina platônica não está inteiramente nas palavras de Sócrates, mas como que se serve de todos os discursos. Em primeiro lugar, porque cada desvio introduzido, funciona como um degrau em direção à verdadeira doutrina, introduzindo um elemento de verdade que, contudo, está mal articulado. Todos os discursos são deficiente – eis porque cada convidado por discordar do outro -, mas cada um, na razão de sua discordância, introduz um novo aspecto do Amor de que só o discurso de Sócrates, ou melhor, a doutrina de Diotima, poderá dar conta.

Resumamos do seguinte modo os elementos de verdade e as deficiências:

1.  Fedro: O amor é benéfico.
2.  Pausânias: Nem todo amor é benéfico (ref.). Amor → relação amorosa; logo, como nem toda relação é bela, nem todo amor é belo.
3.  Eurixímaco: Mesmo sendo duplo, os contrários perfazem uma harmonia (ref.). Cada tipo de Amor tem sua própria razão, o mal vem somente do excesso.
4.  Aristófanes: O amor não é duplo, mas uno (ref.). Não se pode falar de excesso e moderação diante do exemplo dos que morreriam de inércia por continuamente amar. Os limites do amor são dados pela própria natureza: a reprodução e a satisfação.
5.  Agatão: Conserva-se a unicidade. Mas o Amor não se esgota do ato (ref.). Antes, suscita virtudes porque é cheio de virtudes.
6.  Sócrates: O Amor suscita virtudes, não porque seja cheio de virtudes, mas justamente porque elas lhe faltam (ref.). É um princípio (uno) que conduz, através do múltiplo, à unicidade dos Valores.


De fato, as variadas manifestações do Amor encontram sua razão de ser na unidade de um princípio: o de geração. O Amor pelas mulheres é o Amor suscitado no corpo, pelo corpo, e em função da geração dos corpos – razão pela qual tem sua dignidade nessa forma de ser imortal: perpetuar-se pela prole. O Amor pelos rapazes, contudo, não tem em si mesmo sua razão, e só é justificado quando inserido na série que conduz da atração pelos belos corpos até a contemplação do Belo em si.

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LEITURAS RECOMENDADAS

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O Uso dos Prazeres; tradução de Maria Teresa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1984. [cap. IV]

PLATÃO. Fedro ou Da Beleza; tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.



[1] A razão de ser na diferença da tradução está em que “banquete” (jantar em conjunto) é o nome de todo o evento que, no caso, se faz em honra da vitória de Agatão no concurso dramático. “Simpósio” (bebida em conjunto), por outro lado, é somente a parte que se segue às refeições, na qual se dá as competições literárias, entre outras diversões.
[2] A numeração se refere à disposição das páginas e colunas nos manuscritos originais e é a forma convencional de se citar textos gregos.  Nas traduções e edições modernas, acompanha o texto, aparecendo normalmente ao lado deste.

sábado, 15 de outubro de 2011

Gene Callahan - O que é uma ciência apriorística, e por que a economia é uma

"Não é incomum encontrar pessoas muito inteligentes que, mesmo tendo grandes simpatias pela economia política de Ludwig von Mises, se sentem confundidas pelos seus métodos ou até mesmo negligenciam os preceitos metodológicos que guiam sua teoria econômica. Mais tipicamente, essas objeções são particularmente dirigidas à asserção enfática e sempre repetida por Mises que postula que o núcleo da teoria econômica é composto de conceitos a priori - isto é, proposições cuja validade é atingida por contemplação ao invés de por pesquisa empírica. Essas pessoas normalmente consideram esse aspecto do pensamento de Mises como sendo contrário aos princípios científicos modernos, como se fosse um fóssil vivo, uma besta arcaica que deveria ter sido extinta junto com o racionalismo abstrato da era anterior à Revolução Científica.

Devido aos vários diálogos que já tive com tais críticos, creio que detectei um equívoco frequente sobre o que significa o fato de uma proposição ser, em si, uma verdade a priori para algum assunto. Esse erro não apenas causa confusão a respeito da metodologia econômica de Mises, mas também obscurece os verdadeiros fundamentos das ciências empíricas que, justificadamente, muitas dessas pessoas tanto admiram.

Pelo que entendo de Mises, ao caracterizar os princípios fundamentais da economia como verdades a priori e não como fatos incertos abertos a descobertas ou refutações empíricas, ele não estava dizendo que as leis econômicas nos foram reveladas por ação divina, como os dez mandamentos foram a Moisés. Ele também não estava alegando que os princípios econômicos são transferidos automaticamente aos nossos cérebros pela simples evolução humana, nem que podemos compreendê-los e articulá-los sem antes ter ganhado familiaridade com o comportamento da economia através da participação e da observação dela em nossas próprias vidas. Na verdade, é bem possível que alguém tenha tido uma boa dose de experiência real com a atividade econômica e, ainda assim, nunca ter imaginado quais os princípios básicos - se algum - ela exibe.

Ainda assim, Mises estava certo ao descrever estes princípios como apriorísticos, porque eles são logicamente anteriores a qualquer estudo empírico de fenômenos econômicos. Sem eles é impossível até mesmo reconhecer que há uma classe definida de eventos que podem ter explicações econômicas. Somente ao pré-supor que conceitos como intenção, propósito, meios, fins, satisfação, e insatisfação são características de um certo tipo de acontecimento no mundo é que podemos conceber um tema para a economia investigar. Esses conceitos são pré-requisitos lógicos para distinguir um assunto ligado a eventos econômicos de outros assuntos ligados a eventos não-econômicos, como o tempo, o percurso de um planeta pelo céu noturno, o crescimento das plantas, o quebrar das ondas no litoral, a digestão animal, vulcões, terremotos, entre outros.

Se não assumíssemos em princípio que as pessoas deliberadamente empreendem atividades previamente planejadas com a intenção de tornar sua situação - como elas subjetivamente a vêem - melhor do que em relação à situação em que outrora estariam, não haveria uma base para diferenciar as trocas que ocorrem na sociedade das trocas de moléculas que ocorrem entre dois líquidos separados por uma membrana permeável. E os aspectos que caracterizam os membros da classe de fenômenos selecionada como tema de uma ciência especial devem ter uma condição axiomática para os praticantes dessa ciência, pois se os praticantes rejeitarem esses aspectos então eles também estarão rejeitando os fundamentos para a existência dessa ciência.

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Leia o texo na íntegra no: Instituto Ludwig von Mises Brasil.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Michel Foucault e o Libertarianismo

M. Foucault
Tenho estudado bastante a obra de Michel Foucault. É meu tema de dissertação de mestrado e uma paixão antiga. De vez em quanto leio um ou outro "comentário" de filósofos, psicólogos, historiadores... pelos deuses, quanta bobagem se escreve sobre ele. Houve já quem o vinculou ao anarquismo (o anarquismo da tradição anarco-sindicalista)! Há quem o chame de esquerdista e a todos os seus livros torça a procura de uma gota ao menos de marxismo. Isso só mostra como é dificil às pessoas assimilar coisas novas. Têm sempre elas, parece, necessidade de fazer com que o novo repita o antigo. 

Não falarei sobre suas obras. Aos que conhecem sua biografia pergunto: que lutas esse intelectual preferiu lutar? A eterna luta dos operários contra os pérfidos burgueses? Certamente que não. Seu engajamento na luta contra as prisões ao mesmo tempo em que escrevia uma história dos mecanismos punitivos do estado (dos poderes de vida e morte, de controle e normatização que este se outorgou) já nos deveria deixar claro que se algo de político deve ser extraído do seu trabalho é um vigoroso anti-socialismo. Sua preocupação (nas obras ditas genealógicas) não é a violência, mas a violência de estado; não é o racismo, mas o racismo de estado; não é o poder em si mesmo, mas o poder que se estrutura em mecanismos do estado.

Não seria apropriado então, se queremos vincular seu trabalho com alguma corrente política, vinculá-lo ao libertarianismo de tradição norte-americana? Não seria Foucault um ídolo das esquerdas por um mal-entendido difícil de explicar sem evocar certo analfabetismo natural desses amantes da plebe?

Não creio que Foucault tenha conhecido o trabalhos dos libertários ou mesmo fosse versado na Escola Austríaca (cita Menger muito superficialmente em As palavras e as coisas, para que possamos inferir um conhecimento mais profundo), mas certamente era um nietzscheano. Quem conhece Nietzsche talvez se lembrará do que ele falou desse novo deus, o estado, e suas palavras pouco elogiosas ao socialismo. 

Para que não digam que estou especulando. Deixarei por hora só esta idéia. Prometo para breve, porém, um texto sobre as implicações liberárias de suas aulas no College de France, publicadas sob o título de Em Defesa da Sociedade.

Uma paixão antiga, e uma paixão nova: quem sabe não poderei conciliá-las?

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Estado ataca o voto distrital

Vai se revelando o caráter da reação perpetrada pelos ideólogos da internet contra a campanha da sociedade civil contra a corrupção e por uma verdadeira reforma eleitoral: uma contra-ofensiva dos que estão hoje no poder e não querem perder seus privilégios, não querem devolver às pessoas o legítimo direito que têm numa democracia de eleger os membros do Parlamento.

Ninguém espera realmente que os atuais governantes entendam a diferença entre questões de Estado e questões de governo, inda menos entre essas e seus interesses partidários ou pessoais, mas chega-se ao cúmulo quando o próprio estado ataca um movimento da sociedade civíl.

O site do Minitério do Planejamento republicou o artigo falacioso no qual um desses "intelectuais sem fertilizante", tenta inutilmente desqualificar o movimento, seus participantes, organizadores e o Instituto Millenium, por meio de meras conjeturas e insinuações conspiratórias. É ou não um endosso aos ataques? É ou não um ataque do próprio órgão (MPOG) da Administração contra um movimento de caráter civil?

Do que essa gente tem tanto medo?

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Em campanha pelo voto distrital

Estamos em capanha pelo voto distrital. Vez ou outra trarei aqui alguns textos sobre a matéria.

Se o leitor se interessa por uma proposta de reforma eleitoral capaz de minorar as mazelas de nossa pobre República, apoie também essa idéia. Clique no banner no cabeçalho, conheça a proposta, avalie, entenda as suas vantagens e, assim fazendo, assine a petição. Já são mais de 70.000 assinaturas recolhidas pelo Movimento Eu Voto Distrital.

Logo já serão mais de 100.000 assinaturas!

Se preferir também pode assinar a petição no rodapé deste blog. 

sábado, 13 de agosto de 2011

A questão do apriorismo em L. V. Mises e I. Kant ( I )


Introdução

Não é raro que, no afã de resolver os problemas mais imediatos, os cientistas se descuidem dos fundamentos de sua ciência e acabem por defender doutrinas epistemológicas ou metafísicas incompatíveis com seu saber ou por si mesmas inconsistentes.  Já deveríamos ter aprendido que ignorar os problemas de fundamento não faz com que eles desapareçam, mas somente que se adote acriticamente um idéias pouco sólidas. De outro lado, o filósofo muitas vezes ignora o que é feito pelo cientista, o que o impossibilita de suprir a lacuna deixada por este. Mais frequentemente ainda os filósofos estão por demais ocupados com os problemas das ciências naturais para voltar seu tempo e atenção aos problemas suscitados pelas ciências humanas e sociais, em prejuízo destas e da própria filosofia.

A filosofia, contudo, não é prerrogativa dos eruditos que se auto-denominam “filósofos”, mas será o nome justo para toda reflexão rigorosa, radical e sistemática de um campo de objetos. É preciso, pois, nesse ponto reconhecer o mérito dos partidários da Escola Austríaca de Economia que, sem deixar de ser economistas no sentido mais pleno do termo, cultivam duas virtudes hoje muito raras: a atenção quanto aos problemas epistemológicos e a persistência quanto a busca da verdade, razão pela qual todo economista austríaco merece se também chamado “filósofo”.

Sirvam essas palavras como justificativa do que me move a abordar as questões epistemológicas suscitadas pela Escola Austríaca, mesmo reconhecendo minha insuficiente erudição na ciência econômica.

A questão do apriorismo

Ludwig von Mises
Comecemos, pois, do princípio. Importei a pouco tempo para este sítio a tradução do primeiro capítulo do tratado A Ação Humana de Ludwig von Mises porque, creio, nele está lançado um desafio intelectual dos mais intrigantes: a questão sobre a natureza do conhecimento econômico.

Pois bem. Mises acreditou ter descoberto um novo campo, ainda não explorado de conhecimentos apriorísticos. Considerava ele que algumas ou talvez todas (aqui pode haver dissenso entre seus leitores) proposições da Economia pertenciam a tal campo, mas que este domínio ontológico (da ação humana) necessitaria de uma nova e específica ciência, a Praxeologia.

A tese em si mesma não é de modo algum obscura ou complexa, mas isso não significa que seja simplória. De fato, embora certas consequências possam ser imediatamente inferidas dessa proposta, somente um exame detalhado da mesma seria capaz de nos abrir todo o horizonte promissor a ela inerente.

Ao certo, supomos saber o que significa um conhecimento apriorístico: na terminologia kantiana, é apriorístico o conhecimento que não tem origem na experiência empírica. Ora, aqui começa o dissenso, pois para alguns, a influência de Kant sobre Mises o teria levado a corroborar e defender tacitamente a problemática doutrina dos juízos sintéticos a priori ou, para os mais radicais como Rothbard, a levá-la uma passo a frente do próprio Kant; mas talvez outros, como eu próprio, não encontrem no tratado de Mises nenhum indício nesse sentido, preferindo recolocar a questão do apriorismo sobre bases menos incertas que a doutrina kantiana.

Não tentarei aqui avançar mais do que posso, nem me gabar de ter encontrado uma melhor interpretação para o apriorismo de Mises, mas somente colocar a questão e suas dificuldades. Dado que ainda estudo a questão, me contentarei em fazer algumas indicações iniciais, muito básicas, porém necessárias à elucidação do assunto.

Juízos X proposições

Em primeiro lugar, há de se distinguir juízos e proposições. Aqueles são entidades mentais, enquanto estes têm natureza lingüística, embora difiram de outras entidades linguísticas como a frase, a sentença e o enunciado, não havendo consenso entre os lógicos quanto a estes termos e seus significados.

Tradicionalmente, porém, diz-se que “a proposição é a expressão verbal de um juízo”, sendo este “o ato pelo qual o espírito afirma alguma coisa”[1]. Mas se a proposição é apenas a expressão do juízo, que diferença pode haver em tratarmos de proposições ou juízos? O problema básico é que, mesmo admitindo a existência de juízos e proposições e a relação acima descrita entre eles, deveremos reconhecer que as características das proposições, excetuando talvez as que se refiram a sua matéria, devem também ser encontradas nos juízos, segundo o velho adágio metafísico de que deve haver tanto no efeito quanto há na causa. A recíproca, porém, não é verdadeira e não há nenhuma necessidade de que as proposições exibam caracteres intrínsecos aos juízos. Em suma: juízos poderiam formalmente ser tratados como se fossem proposições, mas proposições não podem ser tratadas como se fossem juízos.

Proposições analíticas?

Para que o que se disse acima não pareça vão exercício de retórica, consideremos a questão entre juízos analíticos e sintéticos, muito importante para a interpretação do vínculo entre Mises e Kant. Segundo Kant, juízos analíticos são aqueles em que o predicado está contido implicitamente na idéia do sujeito, enquanto juízos sintéticos representam o caso contrário[2]. Jolivet, porém, reconhece três casos distintos de juízos analíticos: 1) quando o atributo é idêntico ao sujeito; 2) quando o atributo é essencial ao sujeito; 3) quando o atributo, não sendo essencial, é próprio do sujeito, i.e., decorre de sua essência. Quando aos juízos sintéticos, são, para o filósofo francês, aqueles em que o atributo é acidental ao sujeito[3].

Immanuel Kant
Não discutirei no momento qual conceituação é mais adequada. O fato é qualquer que seja a definição utilizar para tecer essa distinção, ela só cabe a juízos, nunca a proposições, pois de fato um juízo ser analítico decorre de que tenha sido produzido por análise, enquanto o ser sintético implica que nasceu por composição. Não há, pois, qualquer sentido em falar de proposições analíticas ou sintéticas, haja vista que uma proposição é sempre uma composição de termos distintos. Que sentido poderia haver em dizer que o predicado da proposição está contido em seu sujeito, ou que é essencial a ele, ou que dele decorre? Seria lícito chamar que proposição (predicação) em que os termos fossem idênticos (Ex: a casa é uma casa)? Suponho que dificilmente se admitiria que há aqui uma proposição. Assim, se, para existir, a proposição necessita de dois termos distintos, carece de sentido falar em proposições analíticas.

Parece, pois, que ao renunciar ao uso do conceito mentalista de “juízo”, perdemos com isso a possibilidade de nos referirmos às operações de análise e síntese e aos produtos delas decorrentes. Por que o faríamos, contudo? Muito embora os lógicos formais, ao menos desde Frege, não ousem mais tratar de juízos, a lógica transcendental (de Kant ou Husserl) não pode abdicar de tais entidades. Parece, pois, abrir-se um hiato entre a Lógica Formal e a Lógica Transcendental, de modo que é nesta última que se deveria buscar o fundamento da distinção entre conhecimentos apriorísticos e aposteriorísticos. Antes, contudo, de nos enveredarmos nesse difícil campo de investigação, é preciso perguntar: Mises defende uma qualquer doutrina sobre juízos ou trata apenas de proposições?

A priori X a posteriori

Abandonemos, então, a questão da síntese e da análise e nos concentremos  na distinção muito mais importante entre juízos apriorísticos e aposteriorísticos. Cuidemos, contudo, para que essa adjetivação do termo latino não nos leve a um erro grave: ser a priori ou a posteriori não são propriedades dos juízos, mas referem-se às condições de verdade ou falsidade dos mesmos (valor lógico). É mais correto, portanto, dizer que há juízos cuja verdade ou falsidade independem de qualquer verificação (juízos verdadeiros ou falsos a priori), enquanto o valor lógico de outros só pode ser assentido após um exame experimental (juízos verdadeiros ou falso a posteriori).

Assim, a princípio qualquer juízo que antecipe uma experiência empírica poderia se considerado apriorístico. Entretanto, em epistemologia só nos interessam os juízos apriorísticos strictu sensu, i.e., aqueles cuja verdade ou falsidade é estabelecida independente de toda e qualquer experiência e não desta ou daquela experiência em particular.

A observação mais importante a fazer, contudo, é que, uma vez que a classificação se refere às condições de verdade e não a qualidades intrínsecas, os atributos “ser (verdadeiro ou falso) a priori” e “ser (verdadeiro ou falso) a posteriori” podem ser ditos tanto de juízos quanto de proposições, indiferentemente, pois é certo que quanto a isso, uma proposição é tão passível de ser verdadeira ou falsa quanto o juízo que possivelmente expressa. Disso resulta que, quanto a questão do apriorismo, podemos falar somente de proposições, não criando dificuldades para a análise lógico-formal.

A princípio qualquer tipo de proposição pode ser aprioristicamente verdadeira ou falsa: tanto as universais quanto as particulares; tanto as afirmativas quanto as negativas. Por exemplo, toda proposição que afirma de uma parte do sujeito o que já foi afirmado do todo, é uma proposição particular aprioristicamente verdadeira, independente, independente de como tenha sido firmada a verdade da universal correspondente. Donde se vê que não têm razão os que afirmam que proposições (verdadeiras ou falsas) a priori sejam sempre universais e necessárias. Melhor, têm razão somente em parte, porque é evidente que tais proposições são necessariamente verdadeiras ou necessariamente falsas, a não se que admitamos nessa classe as proposições não absolutamente apriorísticas, mas apenas relativamente (a esta ou aquela experiência em particular) – isso, porém, não o faremos.

Quanto à origem, pode-se dizer que as proposições cuja verdade se estabelece independente de qualquer experiência, têm sua mais óbvia origem nas operações lógico-formais.

Em segundo lugar – e com muito maior razão – os princípios lógicos que presidem as operações de raciocínio e argumentação, devem ser tidos por válidos e verdadeiros a priori, uma vez que são requisitos de validade de tais operações e requisito da necessidade do nexo entre os termos de um argumento. Pode-se dizer que esse modo de evidenciar o caráter apriorístico dos princípios lógicos é uma petição (transcendental) de princípio, pois que aquele que desejasse negar valor a um princípio lógico (como o de não-contradição, por exemplo), deveria pode demonstrar a falsidade, ou mera contingência, do mesmo sem recorrer a ele – o que de todo é impraticável.

Assim, pode-se ensaiar uma investigação para saber se a petição transcendental de princípio, mediante a qual evidencia-se a necessidade dos princípios lógicos pode ser estendida a outras espécies  de proposições , donde se alargaria o campo dos conhecimentos apriorísticos. Não me parece ser outro o procedimento de Kant com relação à geometria, à aritmética e aos fundamentos da física teórica: a própria experiência empírica, afirma ele, seria impossível sem o recurso a tais conhecimentos, donde decorre que a validade dos mesmos não poderia ser firmada por ela. Analogamente, os austríacos argumentam que a experiência do universo da ação humana requer certas proposições fundamentais como condições de inteligibilidade, restando demonstrado que a verdade ou falsidade das mesmas não poderia fundar-se na experiência que condicionam.

Voltaremos a essa questão em outro momento. Por hora, basta que se reconheça o fato de que a admissão de conhecimentos apriorísticos não nos conduz necessariamente a defender qualquer doutrina sobre a natureza dos juízos, menos ainda a problemática doutrina dos “juízos sintéticos a priori” de Kant. De fato, para falar de conhecimentos válidos e verdadeiros a priori, nem mesmo precisamos falar de juízos. Conclui-se, portanto, que mesmo se Mises houvesse defendido a doutrina kantiana (o que me parece não ser o caso) tal homenagem à obra de Kant em nada seria essencial ao seu propósito, qual seja, evidenciar o fundamento apriorístico da ciência da ação humana.   

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PS: Em um próximo momento analisaremos os problemas e obscuridades da doutrina kantiana de modo a ressaltar as dificuldades de admiti-la na epistemologia contemporânea. Finalmente, analisaremos detalhadamente o capítulo I de A Ação Humana, a ver se Mises sustenta ou não a existência de juízos sintéticos a priori.


[1] JOLIVET, R. Curso de filosofia, 1995, p. 19.
[2] Cf. KANT. Crítica da Razão pura. 2000, p. 58.
[3] JOLIVET. op. cit. p. 40.



Referências

JOLIVET, Régis. Curso de filosofia; tradução de  Eduardo Prado de Mendonça. Rio de Janeiro: Agir, 1995.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura; tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 2000.