segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Platão - O Banquete

1. Introdução

Platão. Detalhe de Rafael. Scuola de Atenas.
Enquanto os mais recentes trabalhos de helenistas e estudiosos de Platão tendem a colocar dúvida sobre a compreensão tradicional do filósofo grego, centralizada na metafísica dualista das “Formas”, é preciso evitar, na leitura isolada de seus diálogos, antecipar a compreensão do próprio texto pelo que se conhece, ou se julga conhecer, da filosofia platônica. É preciso,pois, voltar ao próprio texto, sem prejuízo do que possa nele encontrar.

Voltemos, então, ao texto do diálogo O Banquete, ou O Simpósio[1] para os portugueses.

Nossa leitura d’O Banquete vai se desenvolver em três níveis: 1) estrutura; 2) jogo tético, considerando o que cada personagem defende individualmente; 3)síntese platônica, i.e., o modo como os elementos de cada discursos são recuperados e reestruturados no discurso socrático. Dessa leitura devemos esperar um esclarecimento sobre a posição platônica quanto ao um dos temas mais controversos na sociedade grega: o Eros (Amor-Desejo) e a Erótica (arte de amar e ser amado).

Desde já antecipo que a Erótica dá lugar a duas “ciências” diferentes: a ciência do amante (aquele que ama) e a ciência do amado (aquele que é objeto do amor). O Banquete se ocupa apenas da primeira, enquanto que a segunda é tratada por Platão na primeira parte do diálogo Fedro. Isso se deve ao fato de que, como veremos, há duas propriedades fundamentais do Eros: prima, o amor é sempre transitivo, i.e., não se ama, simplesmente; ama-se alguém ou alguma coisa; secunda, a relação erótica é, necessariamente, unívoca: ou se é amante, ou se é amado; não se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

2. Personagens e estrutura do Diálogo

2.1 Personagens

Apolodoro: Discípulo de Sócrates. Um dos que o acompanharam na hora da morte. (Cf. Fédon). É, como se pode ver na primeira parte d’O Banquete,o mais entusiasmado dos discípulos, embora, segundo a crítica, não seja dos mais inteligentes.

Companheiro de Apolodoro: Personagem anônimo. Ocupa o lugar do leitor do Diálogo.

Aristodemo: Aquele que presenciou o banquete e cuja narrativa Apolodoro nos repete.

Sócrates: Personagem central, responsável por expor a doutrina platônica.

Agatão: Poeta trágico, em honra de quem se celebra o banquete.

Erixímaco: Médico, filho de Acúmeno, citado em Fedro.

Pausânias: Político ateniense.

Fedro: Aparece também em diálogo homônimo no qual se discute a questão do amado, como esse deve se relacionar o amante.

Aristófanes: Poeta cômico. Escreveu, dentre muitas comédias, As nuvens na qual mostra Sócrates como um filósofo especulativo preocupado com as questões da natureza.

Diotima: Sacerdotisa. Aparentemente o único personagem feminino em diálogos de Platão. Não há outras notícias sobre sua existência, sendo, muito provavelmente fictícia. Em Fedro, porém, Sócrates diz ter muito aprendido sobre o Amor com homens e mulheres sábios. Dessa mulheres, cita somente Safo, muito famosa poetisa da ilha de Lesbos.

Alcibíades: Político ateniense, conhecido por sua grande beleza e muito citado da época. É certo que conheceu, foi discípulo e talvez amante de Sócrates. Porém, os diálogos platônicos homônimos são considerados apócrifos. 

2.2 Estrutura do Diálogo

172a-174a[2]: Prelúdio. Diálogo entre Apolodoro e o personagem anônimo, cujo lugar nos é reservado.

174a-174d: Encontro de Sócrates e Aristodemo.

174d-175c: Chegada ao banquete de Agatão.

175c-175e: Diálogo entre Sócrates e Agatão.

176a-178a: Eurixímaco propõe um simpósio sobre Eros.

178a-180c: Discurso de Fedro.

180c- 185c: Discurso de Pausânias.

185c-189a: Discurso de Erixímaco.

189a-193e: Discurso de Aristófanes.

193e-194d: Intermezzo: diálogo Sócrates-Agatão.

194e- 198a:Discurso de Agatão.

198a-201e: Diálogo entre Sócrates e Agatão.

201e-212a: Discurso de Diotima.

212a-215a: Chegada de Alcibíades.

215a- 222b: Discurso de Alcibíades.

222b-223d: Epílogo.

2. Conteúdo e significado dos discursos

Discurso de Fedro:

Como fora proposto que se fizessem discurso em honra do deus Eros, Fedro busca nos poetas a razão para seu elogio do deus.

Seguindo a tradição de Hesíodo, diz ele que Eros é o mais honrado dos deuses, pois, entre, estes, “o mais antigo é o mais honroso” (178b) — eis seu primeiro argumento.

O segundo argumento é que “sendo o mais antigo é para nós a causa dos maiores bens” (178c). Fedro justifica: aquilo que conduz “à vergonha do que é feio e ao apreço do que é belo” (178d) é o princípio que deve conduzir a vida dos homens. O amor é esse princípio.

Terceiro argumento: só os que amam aceitam morrer por outro. Há, pois, uma virtude que se forma em torno do amor, que é o que mais agrada aos deuses (Ex: Orfeu, Aquiles, Alceste). Logo, “o Amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após a morte” (180b)
    
Discurso de Pausânias:

Pausânias não concorda inteiramente com Fedro. Recorrendo ainda aos poetas, Pausânias faz uma distinção entre dois tipos de Eros: há sim, um Eros antigo, Celestial, pois que companheiro de Afrodite Celestial, filha do Céu (Uranos); mas há também um Eros, mais jovem, Pandêmico, companheiro de Afrodite Pandêmica, filha de Zeus. Essa distinção inicial serve para separar dois tipos distintos de Amor: um que é feito de modo belo e outro que é vulgar e feio.

A distinção inicial entre dois Amores, Pausânias liga a uma segunda premissa: “Toda ação [...]em si mesma, enquanto é simplesmente praticada, nem é bela nem feia.] Logo, “o Amor não é todo ele belo e digo de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente” (180e-181a)

O Amor vulgar (pandêmico) é aquele que tem em vista simplesmente “o efetuar o ato”. É o amor que se dirige tanto às mulheres quanto aos jovens, mais ao corpo que a alma, que é desprovido de inteligência. Daí que o amante possuído desse Amor é capaz tanto do bem quanto do mal.

O Amor celestial (urânico), porém, só se volta para o que é másculo, ao que é mais forte e inteligente. Exclui-se, dele, portanto: a relação com as mulheres e os meninos. Pausânias parece reservar esse Eros aos jovens e homens feitos, não distinguindo entre eles.

Embora não esteja esse assunto em questão, Pausânias acrescenta uma nota sobre o modo como os amados devem agir: “é belo aquiescer em vista da virtude” (185ª. Faz isso, porque é necessário para ele criar alguma conexão entre o amor pelos jovens e o amor intelectual, pelo qual pretende justificar a própria distinção dos tipos.

“É preciso então congraçar num mesmo objetivo essas duas normas, a do amor pelos jovens e a do amor ao saber e ás demais virtudes” (184d)

De fato, porém, Pausânias não parece chegar a bom termo com seu discurso: suas distinções parecem por demais forçadas e superficiais quanto ao que pouco parece se distinguir. Quanto ao que é distinto por si mesmo (o amor aos rapazes e a busca da virtude), não parece conseguir estabelecer uma ligação clara.

Discurso de Erixímaco:


O discurso do médico Erixímaco atesta bem como a erótica, a difícil arte de lidar com os prazeres, foi, para os antigos atenienses, comparável à arte médica hipocrática: arte da medida, sobretudo.

Partindo do discurso de Pausânias, Eurixímaco mantém a duplicidade do Amor. Não fala mais tem termos poéticos, porém. O Amor agora é um princípio de agregação e harmonia; a medicina é a arte de “suscitar o amor onde não há mas deve haver” (186d).

A diferença fundamental para o discurso de Pausânias é que, associando os dois amores as musas, Eurixímaco recupera o como digno e necessário o que Pausânias havia considerado vulgar. Há certamente o amor celestial, que provém da musa Urânia, mas há também, igualmente digo, o Amor popular, que provém da musa Polímnia (padroeira da poesia lírica).

Discurso de Aristófanes:


Em seu discurso, Aristófanes prefere zombar dos modos sexuais gregos através de uma fábula que concebe, a muito conhecida fábula de Andrógino: segundo ela, no princípio os humanos tinham outra natureza, quatro pernas, quatro braços, dois rostos, enfim, o duplo do que é hoje, ou melhor, hoje os homens são apenas a metade do que foram, por castigo dos deuses. Acrescente-se que haviam três gêneros: o homem, a mulher e o andrógino.

Tendo os homens sido castigados e divididos pela metade, cada metade passou a buscar pela outra, de modo que morriam de inércia e de fome. Para que isso não ocorresse, Zeus lhes mudou o sexo para a frente e fez com que gerassem um no outro, ou que ao menos, no caso dos homens, que se saciassem na relação.  É sem sentido falar, pois, de moderação: os limites já tendo, para benefícios dos homens, sendo traçados pela natureza (deuses).
    
Discurso de Agatão:

O discurso de Agatão traz novo desvio e estabelece o princípio: quais sejam os dons de Eros, é preciso explicar “em virtude de que natureza vem a ser causa de tais efeitos” (195a).

Como poeta, Agatão volta a falar do deus: ele é o mais feliz, e o é por ser o mais jovem. Ele se afasta da velhice e se aproxima da juventude. O princípio de que falava Fedro não é, portanto, o Amor, mas a Necessidade.

É também ele o mais delicado. Afasta-se do que é rude e se aproxima do que é delicado.

Terceira propriedade de sua natureza: ele é úmido. O Amor é moldável, adaptando-se a cada alma. Ele se opõe à deformidade e do que definha, e se aproxima do que floresce. 

Quarta propriedade: o Amor é justo.

Quinta propriedade: além da virtude da justiça, o amor é temperante, pois “dominando prazeres e desejos seria o Amor excepcionalmente temperante” (196c)

Sexta propriedade: é corajoso. Tendo dominando o mais forte dos deuses, Ares, é ele então o mais corajoso.

Sétima propriedade: sabedoria. Primeiro, todo homem se torna poeta desde que o Amor lhe toque. O Amor é um bom poeta (ποιητής). Toda criação (ποιησις), é, pois, obra do Amor. O Amor nasce da beleza, “pois no feio não se firma Amor” (197b).

Discurso de Sócrates-Diotima:


Antes de fazer seus discurso, que colocara na boca da sacerdotisa Diotima, Sócrates, pretende estabelecer a questão aporética a qual dará ensejo à doutrina propriamente dita.

Retomando o princípio enunciado por Agatão, Sócrates admite que é preciso mostrar o próprio Amor, investigar sua natureza. Mas para isso, não recorre ao modo poético de falar do deus, senão ao conceito subjacente na palavra “amor”.

O Amor é amor de alguma coisa, admite Agatão. Logo é transitivo. Mas se o Amor deseja seu objeto é porque não o possui. O Amor parece então ser uma necessidade, portanto fundar-se numa carência. Mas, com isso, é preciso admitir que o amor, não seja em si mesmo, nem belo nem bom como dizia Agatão, nem possuir quaisquer das virtudes que ele lhe atribuiu. Dá-se aqui a aporia a qual o discurso de Diotima terá que resolver.

Se o Amor nem é belo nem é bom, não é, preciso, contudo admitir que seja feio e mau, mas algo entre os dois extremos.

Recorrendo à forma de falar dos poetas, é preciso admitir que não seja o Amor um deus; logo, que não seja um imortal, mas nem por isso um mortal, mas um gênio (δαιμον), filho de Recurso e da Pobreza: de seus pais herdando sua condição intermediária: por ser filho da Pobreza, o Amor é sempre carente, mas por ser também filho de Recurso, ele procura sempre o que é belo e bom, “ávido de sabedoria e cheio de recursos” (203d)

O amor não é amado, mas amante. (204c)

Que proveito tem, então o Amor. No Amor não buscam os homens sua “metade”, como disse Aristófanes, mas o próprio bem, que é algo de que são carentes.

Mas em que consiste a atividade que se chama amor? Responde Diotima: em conceber, dar a luz, e mais propriamente, dar a luz ao que é belo. O amor não é amor do belo, mas da geração no belo. Sendo a geração, para os homens, a forma possível de imortalidade, o Amor é amor da imortalidade. “a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal” (207d)

Assim, o amor pelas mulheres é suscitado naqueles que estão fecundados no corpo. Mas essa relação já não tem o caráter negativo que Pausânias lhe dera, pois, também aí, o que deseja e alcança o homem é a imortalidade, através da procriação. (208e)

Por outro lado, os que estão fecundados na alma e deve conceber mais na alma do que no corpo, assim o fazem: todas as criações artísticas são manifestamente suscitadas por esse Amor. Daí confirmar-se o que dizia Agatão nesse sentido. Este Amor também se volta para os corpos belos, pois, devendo gerar no que é belo, tomará o cidadão ainda não formado inteiramente para educá-lo.

Não há diversos tipos de Amor, como Pausânias e Eurixímaco defenderam, mas somente uma multiplicidade de graus, manifestações diversas do mesmo princípio: começa pro ser amor aos belos corpos, gerando belos discursos, e, ademais de preferência a um só corpo (o uno é superior ao múltiplo); descobre depois que una é a própria beleza, faz-se amante de todos os belos corpos e abandona a violência do amor por um só; depois considera a beleza na alma superior ao do corpo; já depois, é capaz de contemplar o belo nos ofícios e nas leis; depois dos ofícios passa às ciências; dedica-se por fim à ciência cujo objeto é o belo em si. Esse caminho, por graus, define a própria dialética platônica, que através dos simulacros, chega enfim à contemplação dos Valores em si mesmos.

Discurso de Alcibíades


A Ciência Perfeita, contemplação muda da Forma, no caso do Belo, não é, contudo, o último estágio da dialética platônica. O Sábio, que a tal chegou, necessita retornar para o reino dos simulacros, para conduzir os outros homens, presos às sombras, para “fora da caverna”, como se pode entender pela Alegoria da Caverna (República, VII).

Gustave Doré. Alcibíades chega à casa de Agatão.


O Amor que Alcibíades confessa a Sócrates personifica o Amor de que Pausânias fez apologia. Retornamos, assim, ao princípio do Simpósio. Esse retorno serve como uma refutação personificada à tese de Pausânias. Alcibíades, incapaz de compreender os graus do Amor, acusa Sócrates de inverter as posições naturais: “fazendo-se de amoroso, enquanto é antes na posição de bem amado que ele mesmo fica, em vez de amante” (222b).

Tal acusação, porém, só revela a incompreensão de Alcibíades do que seja o Amor e, confirma, por seu ridículo, a tese de Sócrates.  

3. A doutrina erótica de Platão

Do lado do amante, a erótica visa responder duas questões: a quem se deve amar e como se deve amar. Como se viu claramente, Sócrates não divide o Eros em dois, como fizera Pausânias, mas faz com que ele ocupe um lugar indeterminado, a princípio. É o mesmo Eros que preside qualquer relação, pois o modo de ser da relação não é determinado pela natureza de Eros que é sempre a mesma, mas pelo grau de perfeição do objeto.

É importante ver que a doutrina platônica não está inteiramente nas palavras de Sócrates, mas como que se serve de todos os discursos. Em primeiro lugar, porque cada desvio introduzido, funciona como um degrau em direção à verdadeira doutrina, introduzindo um elemento de verdade que, contudo, está mal articulado. Todos os discursos são deficiente – eis porque cada convidado por discordar do outro -, mas cada um, na razão de sua discordância, introduz um novo aspecto do Amor de que só o discurso de Sócrates, ou melhor, a doutrina de Diotima, poderá dar conta.

Resumamos do seguinte modo os elementos de verdade e as deficiências:

1.  Fedro: O amor é benéfico.
2.  Pausânias: Nem todo amor é benéfico (ref.). Amor → relação amorosa; logo, como nem toda relação é bela, nem todo amor é belo.
3.  Eurixímaco: Mesmo sendo duplo, os contrários perfazem uma harmonia (ref.). Cada tipo de Amor tem sua própria razão, o mal vem somente do excesso.
4.  Aristófanes: O amor não é duplo, mas uno (ref.). Não se pode falar de excesso e moderação diante do exemplo dos que morreriam de inércia por continuamente amar. Os limites do amor são dados pela própria natureza: a reprodução e a satisfação.
5.  Agatão: Conserva-se a unicidade. Mas o Amor não se esgota do ato (ref.). Antes, suscita virtudes porque é cheio de virtudes.
6.  Sócrates: O Amor suscita virtudes, não porque seja cheio de virtudes, mas justamente porque elas lhe faltam (ref.). É um princípio (uno) que conduz, através do múltiplo, à unicidade dos Valores.


De fato, as variadas manifestações do Amor encontram sua razão de ser na unidade de um princípio: o de geração. O Amor pelas mulheres é o Amor suscitado no corpo, pelo corpo, e em função da geração dos corpos – razão pela qual tem sua dignidade nessa forma de ser imortal: perpetuar-se pela prole. O Amor pelos rapazes, contudo, não tem em si mesmo sua razão, e só é justificado quando inserido na série que conduz da atração pelos belos corpos até a contemplação do Belo em si.

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LEITURAS RECOMENDADAS

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O Uso dos Prazeres; tradução de Maria Teresa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1984. [cap. IV]

PLATÃO. Fedro ou Da Beleza; tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.



[1] A razão de ser na diferença da tradução está em que “banquete” (jantar em conjunto) é o nome de todo o evento que, no caso, se faz em honra da vitória de Agatão no concurso dramático. “Simpósio” (bebida em conjunto), por outro lado, é somente a parte que se segue às refeições, na qual se dá as competições literárias, entre outras diversões.
[2] A numeração se refere à disposição das páginas e colunas nos manuscritos originais e é a forma convencional de se citar textos gregos.  Nas traduções e edições modernas, acompanha o texto, aparecendo normalmente ao lado deste.

sábado, 15 de outubro de 2011

Gene Callahan - O que é uma ciência apriorística, e por que a economia é uma

"Não é incomum encontrar pessoas muito inteligentes que, mesmo tendo grandes simpatias pela economia política de Ludwig von Mises, se sentem confundidas pelos seus métodos ou até mesmo negligenciam os preceitos metodológicos que guiam sua teoria econômica. Mais tipicamente, essas objeções são particularmente dirigidas à asserção enfática e sempre repetida por Mises que postula que o núcleo da teoria econômica é composto de conceitos a priori - isto é, proposições cuja validade é atingida por contemplação ao invés de por pesquisa empírica. Essas pessoas normalmente consideram esse aspecto do pensamento de Mises como sendo contrário aos princípios científicos modernos, como se fosse um fóssil vivo, uma besta arcaica que deveria ter sido extinta junto com o racionalismo abstrato da era anterior à Revolução Científica.

Devido aos vários diálogos que já tive com tais críticos, creio que detectei um equívoco frequente sobre o que significa o fato de uma proposição ser, em si, uma verdade a priori para algum assunto. Esse erro não apenas causa confusão a respeito da metodologia econômica de Mises, mas também obscurece os verdadeiros fundamentos das ciências empíricas que, justificadamente, muitas dessas pessoas tanto admiram.

Pelo que entendo de Mises, ao caracterizar os princípios fundamentais da economia como verdades a priori e não como fatos incertos abertos a descobertas ou refutações empíricas, ele não estava dizendo que as leis econômicas nos foram reveladas por ação divina, como os dez mandamentos foram a Moisés. Ele também não estava alegando que os princípios econômicos são transferidos automaticamente aos nossos cérebros pela simples evolução humana, nem que podemos compreendê-los e articulá-los sem antes ter ganhado familiaridade com o comportamento da economia através da participação e da observação dela em nossas próprias vidas. Na verdade, é bem possível que alguém tenha tido uma boa dose de experiência real com a atividade econômica e, ainda assim, nunca ter imaginado quais os princípios básicos - se algum - ela exibe.

Ainda assim, Mises estava certo ao descrever estes princípios como apriorísticos, porque eles são logicamente anteriores a qualquer estudo empírico de fenômenos econômicos. Sem eles é impossível até mesmo reconhecer que há uma classe definida de eventos que podem ter explicações econômicas. Somente ao pré-supor que conceitos como intenção, propósito, meios, fins, satisfação, e insatisfação são características de um certo tipo de acontecimento no mundo é que podemos conceber um tema para a economia investigar. Esses conceitos são pré-requisitos lógicos para distinguir um assunto ligado a eventos econômicos de outros assuntos ligados a eventos não-econômicos, como o tempo, o percurso de um planeta pelo céu noturno, o crescimento das plantas, o quebrar das ondas no litoral, a digestão animal, vulcões, terremotos, entre outros.

Se não assumíssemos em princípio que as pessoas deliberadamente empreendem atividades previamente planejadas com a intenção de tornar sua situação - como elas subjetivamente a vêem - melhor do que em relação à situação em que outrora estariam, não haveria uma base para diferenciar as trocas que ocorrem na sociedade das trocas de moléculas que ocorrem entre dois líquidos separados por uma membrana permeável. E os aspectos que caracterizam os membros da classe de fenômenos selecionada como tema de uma ciência especial devem ter uma condição axiomática para os praticantes dessa ciência, pois se os praticantes rejeitarem esses aspectos então eles também estarão rejeitando os fundamentos para a existência dessa ciência.

[...]
"


Leia o texo na íntegra no: Instituto Ludwig von Mises Brasil.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Michel Foucault e o Libertarianismo

M. Foucault
Tenho estudado bastante a obra de Michel Foucault. É meu tema de dissertação de mestrado e uma paixão antiga. De vez em quanto leio um ou outro "comentário" de filósofos, psicólogos, historiadores... pelos deuses, quanta bobagem se escreve sobre ele. Houve já quem o vinculou ao anarquismo (o anarquismo da tradição anarco-sindicalista)! Há quem o chame de esquerdista e a todos os seus livros torça a procura de uma gota ao menos de marxismo. Isso só mostra como é dificil às pessoas assimilar coisas novas. Têm sempre elas, parece, necessidade de fazer com que o novo repita o antigo. 

Não falarei sobre suas obras. Aos que conhecem sua biografia pergunto: que lutas esse intelectual preferiu lutar? A eterna luta dos operários contra os pérfidos burgueses? Certamente que não. Seu engajamento na luta contra as prisões ao mesmo tempo em que escrevia uma história dos mecanismos punitivos do estado (dos poderes de vida e morte, de controle e normatização que este se outorgou) já nos deveria deixar claro que se algo de político deve ser extraído do seu trabalho é um vigoroso anti-socialismo. Sua preocupação (nas obras ditas genealógicas) não é a violência, mas a violência de estado; não é o racismo, mas o racismo de estado; não é o poder em si mesmo, mas o poder que se estrutura em mecanismos do estado.

Não seria apropriado então, se queremos vincular seu trabalho com alguma corrente política, vinculá-lo ao libertarianismo de tradição norte-americana? Não seria Foucault um ídolo das esquerdas por um mal-entendido difícil de explicar sem evocar certo analfabetismo natural desses amantes da plebe?

Não creio que Foucault tenha conhecido o trabalhos dos libertários ou mesmo fosse versado na Escola Austríaca (cita Menger muito superficialmente em As palavras e as coisas, para que possamos inferir um conhecimento mais profundo), mas certamente era um nietzscheano. Quem conhece Nietzsche talvez se lembrará do que ele falou desse novo deus, o estado, e suas palavras pouco elogiosas ao socialismo. 

Para que não digam que estou especulando. Deixarei por hora só esta idéia. Prometo para breve, porém, um texto sobre as implicações liberárias de suas aulas no College de France, publicadas sob o título de Em Defesa da Sociedade.

Uma paixão antiga, e uma paixão nova: quem sabe não poderei conciliá-las?