quinta-feira, 26 de maio de 2011

O direito “constitucional” inconstitucional

 



De jabuticaba em jabuticaba, o Brasil vai se tornando cada vez mais um país interessante para se viver. Interessante, é claro, para aqueles que apreciam as sutilezas do nonsense, pois para os que apreciam a simplicidade do bom senso, o Estado brasileiro é um Frankenstein com pretensões a Leviatã. Pois seja. Recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu pela equiparação da união estável homossexual à união estável heterossexual. Mas, o que temos a ver com isso? Absolutamente nada se quisermos pensar a questão nos termos em que os fanáticos (movimento gay X movimentos religiosos) a tem colocado e é certo que a discussão entre gays militantes e religiosos conservadores é um daqueles embates nos quais “um ordenha o bode e o outro segura a peneira”, como dizia Kant. De importância é somente constatar o quanto tal decisão, entre outras, mas com maior intensidade, é sintomática quanto ao estado atual do constitucionalismo.

A questão mesma analisada pelo STF é bastante simplória. Desde o golpe militar de 1889 e a dita separação entre Estado e Igreja, instituiu-se o casamento civil que nada mais é que uma série de privilégios sociais concedidos aos consortes em vista do fim adverso da união familiar. Adicionalmente, a Carta Constitucional de 1988, fruto de outra das nossas jabuticabas políticas (a elevação do Congresso constituído à Assembléia Constituinte), estabeleceu a equiparação entre o casamento civil e a união estável:

“Para efeitos da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (CRFB, art. 226, §3°)

A união estável, portanto, não é para a Carta de 88 uma instituição jurídica, mas uma situação de fato cujos efeitos são equiparados ao casamento civil – este sim considerado instituição jurídica. Tivessem que se manter no âmbito da “Constituição” os muito sábios ministros do STF deveriam ter raciocinado mediante um silogismo muito simples, em que o art. 226 seria a Maior, a situação de fato (união entre pessoas do mesmo sexo) seria a Menor e a decisão decorreria natural e logicamente. É muito evidente que a decisão deveria ser denegatória para os que pleiteavam a equiparação, vez que a situação de fato julgada era bastante distinta dos termos do artigo em questão.

Isso não significa que por alguma deficiência mental os senhores (as) ministros do Supremo tenham errado ao construir um raciocínio tão simples. O que fizeram  foi uma série de “reinterpretações” que escapam completamente da prerrogativa de um Tribunal Constitucional[1]:

Reinterpretação da questão. Não contentes em interpretar a questão em termos da “Constituição” e do Direito, os ministros do STF julgaram uma questão de “Justiça”. Podemos discutir se a decisão foi ou não foi justa, mas é inegável que essa mesma discussão só é possível porque o STF julgou em termos de Justiça e não em termos do Direito estabelecido. 

Reinterpretação dos termos. Outra condição necessária da decisão é que a união estável deixa de ser uma situação de fato e passa a ser uma instituição jurídica. Caso permaneça como situação de fato, não se vê impedimento para que outras associações eróticas duradouras não devam ser reconhecidas sob o idêntico argumento (o que, não sendo também impossível, tornará os cartórios lugares muito interessantes para se visitar)[2].

Reinterpretação dos princípios. Finalmente, toda a decisão do STF é baseada numa singular interpretação do princípio de isonomia (CRFB, art. 5°, caput). Justiça seja feita ao STF, aqui ele somente dá mais um passo numa direção já aberta pela própria Carta Constitucional. O princípio de equidade, tão antigo quanto o constitucionalismo moderno, é, como todo direito individual, algo de muito simples: todos os homens são equivalentes frente aos poderes do Estado, não cabendo a este estabelecer discriminações, atribuir privilégios ou nutrir perseguições arbitrárias. A sutil diferença introduzida pela “Constituição” de 1988, ao dizer que a igualdade se dá “nos termos dessa Constituição” foi suficiente para desfigurar completamente o princípio. Primeiro, porque a relativização de um direito equivale a sua completa destruição: um direito relativo não é um direito, mas prerrogativa que se exerce até certo limite; segundo, porque, sendo uma prerrogativa, o direito se converte em concessão dos poderes do Estado, quando originalmente o Estado, contra si mesmo, apenas o reconhecia; terceiro, porque estende o princípio que originalmente regia a relação do indivíduo com o super-poder do Estado, para as relações entre indivíduos. De tal desfiguração decorre que o Estado outorga para si a prerrogativa discriminatória que proíbe ao cidadão, reservando-se a faculdade de traçar os limites nos quais o “direito” será exercido. Muito pior do que essa insensatez dos fazedores da “Constituição” foi a extensão posterior dessa prerrogativa, pois não muito tempo depois de outorgada a nova Carta, reconheceu-se que a prerrogativa discriminatória do Estado não era matéria constitucional, mas poderia ser estabelecida infraconstitucionalmente (daí todas as leis que concedem privilégios sociais às chamadas “minorias sociais”). Finalmente, a decisão do STF torna o princípio de igualdade material, como é chamada essa versão deturpada da equidade, um super-princípio com o poder de alterar, limitar e reescrever todos os restantes artigos da “Constituição”.

De modo que não havendo mais qualquer limitador ao poder do STF de criar “direitos” através da reinterpretação da Carta Constitucional, nos encontramos agora numa situação de completo arbítrio. Isso não é espantoso em vista da “baixa origem” da Lei Fundamental de 1988 e da relação predatória entre os Poderes da República, cuja independência e harmonia só existem na fantasia dos juristas. Menos espantosa ainda é tal decisão para os que já perceberam que o constitucionalismo clássico foi a muito tempo abandonado em favor da doutrina arbitrária dos direitos humanos que para cada indíviduo do planeta reserva potencialmente um lugar  no banco dos réus de Nuremberg[3].


[1] Claro, essa observação só tem valor se considerássemos que o STF é verdadeiramente um Tribunal Constitucional e que a Lei Fundamental de 1988 é uma Constituição, o que não é evidentemente o caso tendo em vista a origem dos mesmos.
[2] Isso decorre logicamente da constatação de que os elementos que configuram a união passível de reconhecimento pelo estado (afetividade da relação, espaço e tempo) são suficientemente gerais para envolver as mais estranhas “uniões”. Claro que o reconhecimento de uniões incestuosas ou bizarras muito provavelmente não vai acontecer e não é necessário esperar consequências lógicas de uma decisão ilógica. Muito mais simples é claro seria opiniar de modo lógico como o fez o procurador do Rio Grande do Sul Lenio Streck.
[3] Cf. Maurice Bardèche. Nuremberg ou la Terre Promise. Paris: Les Sept Couleurs, 1948.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Mises - A ação Humana

Publicamos agora o primeiro capítulo da obra A Ação Humana de Ludwig von Mises, um dos mais importantes trabalhos no âmbito da Escola Austríaca de Economia e das várias vertentes epistemológicas, éticas e políticas que gravitam em torno dela. Não se trata, quanto ao livro de Mises, de um tratado de economia como o conhecemos ordinariamente, mas da fundação de uma ciência formal basilar, à semelhança da Matemática e da Lógica Formal, da qual a Economia seria um modo aplicado natural, porém não o único.

O texto que apresentamos, traduzido por Donald Stewart Jr., está originalmente disponível na integra no Instituto Ludwig von Mises Brasil.


***


 
PRIMEIRA PARTE

AÇÃO HUMANA

I. O AGENTE HOMEM[1]



Ação humana é comportamento propositado. Também podemos dizer: ação é a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida. Estas paráfrases podem esclarecer a definição dada e prevenir possíveis equívocos. Mas a própria definição é adequada e não necessita de complemento ou comentário.

Comportamento consciente ou propositado contrasta acentuadamente com comportamento inconsciente, isto é, os reflexos e as respostas involuntárias das células e nervos do corpo aos estímulos. As pessoas têm uma tendência para acreditar que as fronteiras entre comportamento consciente e a reação involuntária das forças que operam no corpo humano são mais ou menos indefinidas. Isto é correto apenas na medida em que, às vezes, não é fácil estabelecer se um determinado comportamento deve ser considerado voluntário ou involuntário. Entretanto, a distinção entre consciência e inconsciência é bastante nítida e pode ser bem determinada.

O comportamento inconsciente dos órgãos e células do organismo, para o nosso ego, é um dado como qualquer outro do mundo exterior. O homem, ao agir, tem que levar tudo em conta: tanto o que se passa no seu próprio corpo quanto outros dados externos, como por exemplo, as condições meteorológicas ou as atitudes de seus vizinhos. Existe, é claro, certa margem dentro da qual o comportamento propositado pode neutralizar o funcionamento do organismo. Se torna factível, dentro de certos limites, manter o corpo sob controle. Às vezes o homem pode conseguir, pela sua força de vontade, superar a doença, compensar insuficiências inatas ou adquiridas de sua constituição física, ou suprimir reflexos. Até onde isto seja possível, estende-se o campo de ação propositada. Se um homem se abstém de controlar reações involuntárias de suas células e centros nervosos, embora pudesse fazê-lo, seu comportamento, do nosso ponto de vista, é propositado.

O campo da nossa ciência é a ação humana e não os eventos psicológicos que resultam numa ação. É isto, precisamente, que distingue a teoria geral da ação humana, praxeologia, da psicologia. O objeto da psicologia são os fatores internos que resultam ou podem resultar numa determinada ação. O tema da praxeologia é a ação como tal. É isto também que estabelece a relação entre a praxeologia e o conceito psicoanalítico do subconsciente. A psicanálise também é psicologia, e não investiga a ação, mas as forças e fatores que impelem o homem a agir de uma determinada maneira. O subconsciente psicanalítico é uma categoria psicológica e não praxeológica. Quer uma ação provenha de uma clara deliberação, quer provenha de memórias esquecidas e desejos reprimidos que, das profundezas onde se encontram, dirigem a vontade, sua natureza não se altera. Está agindo tanto o assassino, cujo impulso subconsciente (o id) conduz ao crime, quanto o neurótico, cujo comportamento aberrante parece sem sentido para o observador superficial; ambos, como todo mundo, procuram atingir certos objetivos. É mérito da psicanálise ter demonstrado que mesmo o comportamento de neuróticos e psicopatas tem um sentido, que eles também agem com o objetivo de alcançar fins, embora nós, que nos achamos normais e sãos, consideremos sem sentido o raciocínio que lhes determina a escolha de fins, e inadequados os meios que escolhem para atingir esses fins.

O termo "inconsciente", como usado pela praxeologia, e os termos "subconsciente" e inconsciente", como aplicados pela psicanálise, pertencem a dois diferentes sistemas de pensamento e pesquisa. A praxeologia, não menos que outros campos do conhecimento, deve muito à psicanálise. Portanto, é ainda mais necessário perceber bem a linha que separa a praxeologia da psicologia.

Ação não é simplesmente uma manifestação de preferência. O homem também manifesta preferência em situações nas quais eventos e coisas são inevitáveis ou se acredita que o sejam. Assim sendo, o homem pode preferir bom tempo a chuva e pode desejar que o sol dispersasse as nuvens. Aquele que apenas almeja ou deseja não interfere ativamente no curso dos acontecimentos nem na formação de seu destino. Por outro lado, o agente homem escolhe, determina e tenta alcançar um fim. Entre duas coisas, não podendo ter ambas, seleciona uma e desiste da outra. Ação, portanto, sempre implica tanto obter como renunciar.

Expressar desejos e esperanças ou anunciar uma ação planejada podem ser formas de ação, na medida em que tenham o propósito de atingir um determinado objetivo. Mas não devem ser confundidas com as ações a que se referem; não são idênticas as ações que anunciam recomendam ou rejeitam. Ação é algo real. O que conta é o comportamento total do homem e não sua conversa sobre ações planejadas, mas não realizadas. Por outro lado, é preciso distinguir claramente ação e trabalho. Ação significa o emprego de meios para atingir fins. Geralmente, um dos meios empregados é o trabalho do agente homem. Mas nem sempre é assim. Em circunstâncias especiais, apenas uma palavra é necessária: quem emite ordens ou proibições pode estar agindo sem que esteja realizando trabalho. Falar ou não falar, sorrir ou ficar sério podem ser ações. Consumir e divertir-se são ações tanto quanto abster-se do consumo e do divertimento que nos são acessíveis.

A praxeologia, portanto, não distingue o homem "ativo" e enérgico do homem "passivo" e indolente. O homem vigoroso que diligentemente se empenha em melhorar suas condições age tanto quanto o homem letárgico que indolentemente aceita as coisas como lhe acontecem. Porque não fazer nada e ser indolente também são ações e também determinam o curso dos eventos. Onde quer que haja condições para interferência humana, o homem age, pouco importando se o faz por meio de ação ou omissão. Aquele que aceita o que poderia mudar age tanto quanto aquele que interfere no sentido de obter um resultado diferente. Um homem que se abstém de influenciar o funcionamento de fatores psicológicos e instintivos também age. Ação é não somente fazer, mas, não menos, omitir aquilo que possivelmente poderia ser feito.

Podemos dizer que ação é a manifestação da vontade humana. Mas isto não acrescentaria nada ao nosso conhecimento. Porque o termo vontade significa nada mais do que a faculdade do homem de escolher entre diferentes situações; preferir uma, rejeitar outra, e comportar-se em consonância com a decisão tomada, procurando alcançar a situação escolhida e renunciando a outra.

1.      Os pré-requisitos da ação humana

Chamamos contentamento ou satisfação aquele estado de um ser humano que não resulta, nem pode resultar, em alguma ação. O agente homem está ansioso para substituir uma situação menos satisfatória, por outra mais satisfatória. Sua mente imagina situações que lhe são mais propícias, e sua ação procura realizar esta situação desejada. O incentivo que impele o homem à ação é sempre algum desconforto[2]. Um homem perfeitamente satisfeito com a sua situação não teria incentivo para mudar as coisas. Não teria nem aspirações nem desejos; seria perfeitamente feliz. Não agiria; viveria simplesmente livre de preocupações.

Mas, para fazer um homem agir não bastam o desconforto e a imagem de uma situação melhor. Uma terceira condição é necessária: a expectativa de que um comportamento propositado tenha o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto. Na ausência desta condição, nenhuma ação é viável. O homem tem de se conformar com o inevitável. Tem de se submeter a sua sina.

Estas são as condições gerais da ação humana. O homem é um ser que vive submetido a essas condições. É não apenas homo sapiens, mas também homo agens. Seres humanos que, por nascimento ou por defeitos adquiridos, são irremediavelmente incapazes de qualquer ação (no estrito senso do termo e não apenas no senso legal), praticamente não são humanos. Embora as leis e a biologia os considerem homens, faltam-lhes a característica essencial do homem. A criança recém-nascida também não é um ser agente. Ainda não percorreu o caminho desde a concepção até o pleno desenvolvimento de suas capacidades. Mas, ao final desta evolução, torna-se um ser agente.

Sobre a felicidade

Coloquialmente dizemos que alguém é "feliz" quando consegue atingir seus fins. Uma descrição mais adequada deste estado seria dizer que está mais feliz do que estava antes. Entretanto, não há nenhuma objeção válida ao costume de definir a ação humana como a busca da felicidade.

Mas devemos evitar equívocos geralmente aceitos por todos. O objetivo final da ação humana é, sempre, a satisfação do desejo do agente homem. Não há outra medida de maior ou menor satisfação, a não ser o julgamento individual de valor, diferente de uma pessoa para outra, e para a mesma pessoa em diferentes momentos. O que faz alguém sentir-se desconfortável, ou menos desconfortável, é estabelecido a partir de critérios decorrentes de sua própria vontade e julgamento, de sua avaliação pessoal e subjetiva. Ninguém tem condições de determinar o que faria alguém mais feliz.

Estabelecer este fato de forma alguma o identifica com as antíteses de egoísmo e altruísmo, de materialismo e idealismo, de ateísmo e religião. Há pessoas cujo único propósito é desenvolver as potencialidades de seu próprio ego. Há outras para as quais ter consciência dos problemas de seus semelhantes lhes causa tanto desconforto ou até mesmo mais desconforto do que suas próprias carências. Há pessoas que desejam apenas a satisfação de seus apetites para a relação sexual, comida, bebida, boas casas e outros bens materiais. Mas existem aquelas que se interessam mais por satisfações comumente chamadas de "ideais" ou "elevadas". Existem pessoas ansiosas por ajustar suas ações às exigências da cooperação social; existem, por outro lado pessoas refratárias, que desprezam as regras da vida social. Há pessoas para quem o objetivo final da peregrinação terrestre é a preparação para uma vida beata. Há outras que não acreditam nos ensinamentos de nenhuma religião e não permitem que suas ações sejam influenciadas por eles.

A praxeologia é indiferente aos objetivos finais da ação. Suas conclusões são válidas para todos os tipos de ação. Independentemente dos objetivos pretendidos. É uma ciência de meios e não de fins. Emprega o termo felicidade no sentido meramente formal. Na terminologia praxeológica, a proposição "o único objetivo do homem é alcançar a felicidade" é tautológica. Não implica nenhuma afirmação sobre a situação da qual o homem espera obter felicidade. O conceito segundo o qual o incentivo da atividade humana é sempre algum desconforto e que seu objetivo é sempre afastar tal desconforto tanto quanto possível, ou seja, fazer o agente homem sentir-se mais feliz, é a essência dos ensinamentos do eudemonismo e do hedonismo.

A ataraxia epicurista é aquele estado de perfeita felicidade e contentamento que toda atividade humana pretende alcançar sem nunca atingi-lo plenamente. Em face da importância desta percepção, tem pouco valor o fato de que muitos representantes dessa filosofia tenham falhado em reconhecer o caráter meramente formal das noções de "dor" e "prazer" e lhes tenham dado um significado carnal e material. As doutrinas teológicas e místicas, bem como as de outras escolas de uma ética heteronômica, não abalaram a essência do epicurismo porque não puderam levantar outras objeções além de sua negligência em relação aos prazeres "nobres" e "elevados". É verdade que os escritos de muitos dos primeiros defensores do eudemonismo, do hedonismo e do utilitarismo são, em muitos aspectos passíveis de mal-entendido. Mas a linguagem de filósofos modernos e, mais ainda aquela dos economistas modernos é tão precisa e direta que não deixa margem a equívocos.

Sobre instintos e impulsos

O método utilizado pela sociologia dos instintos não favorece a compreensão dos problemas fundamentais da ação humana. Essa escola classifica os vários objetivos concretos da ação humana e atribui a cada classe um instinto específico como seu propulsor. O homem é considerado um ser guiado por vários instintos e propensões inatos. Supõe-se que esta explicação arrasa de uma vez por todas com os ensinamentos odiosos da economia e da ética utilitária. Entretanto, Feuerbach já observara corretamente que todo instinto é um instinto para a felicidade[3]. O método usado pela psicologia do instinto e pela sociologia do instinto consiste numa classificação arbitrária dos objetivos imediatos da ação e uma hipóstase de cada um deles. Onde a praxeologia diz que o objetivo de uma ação é remover algum desconforto, a psicologia do instinto o atribui à satisfação de um impulso instintivo.

Muitos defensores da escola do instinto estão convencidos de terem provado que a ação não é determinada pela razão, mas provêm das insondáveis profundezas das forças, impulsos, instintos e propensões inatas que não são passíveis de qualquer explicação racional. Estão certos de terem conseguido revelar a superficialidade do racionalismo e desacreditar a economia, comparando-a a um tecido de conclusões falsas extraídas de falsas pressuposições psicológicas[4]. No entanto, racionalismo, praxeologia e economia não lidam com as causas e objetivos finais da ação, mas com os meios usados para a consecução do fim pretendido. Por mais insondáveis que sejam as profundezas de onde emerge um impulso ou instinto, os meios que o homem escolhe para satisfazê-lo são determinados por uma consideração racional de custos e benefícios[5].

Quem age por impulso emocional também exerce uma ação. O que distingue uma ação emocional de outras ações é a avaliação do seu custo e do seu beneficio. Emoções perturbam as avaliações. Para quem age arrebatado pela paixão, o objetivo parece mais desejável e apreço a ser pago parece menos oneroso do que quando avaliado friamente. Ninguém contesta que, mesmo agindo emocionalmente, o homem avalia meios e fins e dispõe-se a pagar um preço maior pela obediência ao impulso apaixonado. Punir de forma mais suave ofensas criminais cometidas num estado de excitação emocional ou de intoxicação do que se punem outras ofensas equivale a encorajar tais excessos. A ameaça de severa retaliação não deixa de frear mesmo as pessoas guiadas por uma paixão aparentemente irresistível.

Interpretamos o comportamento animal com a pressuposição de que o animal cede aos impulsos que prevalecem no momento. Como observamos que o animal se alimenta, coabita e ataca outros animais ou os homens, falamos de instintos de alimentação, de reprodução e de agressão. Supomos que esses instintos sejam inatos e requeiram satisfação.

Mas o mesmo não ocorre com o homem. O homem não é um ser que não possa abster-se de ceder ao impulso que mais urgentemente lhe exija satisfação. O homem é um ser capaz de subjugar seus instintos, emoções e impulsos: que pode racionalizar seu comportamento. É capaz de renunciar à satisfação de um impulso ardente para satisfazer outros desejos. O homem não é um fantoche de seus apetites. Um homem não violenta qualquer mulher que excite seus sentidos; não devora qualquer pedaço de comida que lhe apeteça; não agride qualquer pessoa que gostaria de matar. O homem organiza suas aspirações e desejos numa escala e escolhe; em resumo, ele age. O que distingue o homem de uma besta é precisamente o fato de que ele ajusta seu comportamento deliberadamente. O homem é o ser que tem inibições, que pode controlar seus impulsos e desejos, que tem o poder de reprimir desejos e impulsos instintivos.

Pode ocorrer que um impulso apresente-se com tal veemência que nenhum ônus provocado por sua satisfação pareça suficientemente forte para impedir o indivíduo de satisfazê-lo. Neste caso, também há escolha: o homem decide por ceder ao impulso em questão.[6]

3. Ação humana como um dado irredutível

Desde tempos imemoriais os homens têm manifestado ansiedade por saber qual é a fonte de toda energia, a causa de todos os seres e de toda mudança, a substância última da qual tudo deriva e que é a causa de si mesmo. A ciência é mais modesta. Tem consciência dos limites da mente humana e da sua busca de conhecimento. Procura investigar cada fenômeno ate as suas causas. Mas compreende que esses esforços esbarram inevitavelmente em muros intransponíveis. Existem fenômenos que não podem ser analisados nem ter sua origem rastreada até outros fenômenos. Estes são os dados irredutíveis. O progresso da pesquisa científica pode conseguir demonstrar que algo ate então considerado como um dado básico pode ser subdividido em componentes. Mas haverá sempre alguns fenômenos irredutíveis, indivisíveis, algum dado irredutível.

O monismo ensina que existe apenas uma substância básica; o dualismo diz que existem duas; o pluralismo, que existem muitas. Não tem sentido discutir tais questões. São meras disputas metafísicas insolúveis. O presente estado do nosso conhecimento não nos proporciona os meios de resolvê-las com uma explicação que um homem razoável considerasse satisfatória.

O monismo materialista afirma que vontades e pensamentos humanos é o produto do funcionamento dos órgãos, das células do cérebro e dos nervos. O pensamento, a vontade e a ação são produzidos apenas por processos materiais que um dia serão completamente explicados pela investigação no campo da física ou da química. Essa também é uma hipótese metafísica, embora seus adeptos a considerem como uma verdade científica inegável e inabalável.

Várias doutrinas têm sido formuladas para explicar a relação entre corpo e mente. São meras conjecturas sem qualquer referência a fatos reais. Tudo o que se pode afirmar com certeza é que existem relações entre processos mentais e fisiológicos. Quanto à natureza e ao funcionamento desta conexão, sabemos muito pouco, se é que sabemos alguma coisa.

Julgamentos concretos de valor e ações humanas definidas não são passíveis de maiores análises. Podemos honestamente supor ou acreditar que sejam inteiramente dependentes de (ou condicionados por) suas causas. Mas, uma vez que não sabemos como fatos exteriores — físicos ou fisiológicos — produzem na mente humana pensamentos e vontades definidas que resultam em atos concretos, temos de enfrentar um insuperável dualismo metodológico. No estado atual de nosso conhecimento, os postulados fundamentais do positivismo, do monismo e do panfisicalismo são meros postulados metafísicos, desprovidos de qualquer base científica, sem sentido e sem utilidade na pesquisa científica. A razão e a experiência nos mostram dois mundos diferentes: o mundo exterior dos fenômenos físicos, químicos e fisiológicos e o mundo interior do pensamento, do sentimento, do julgamento de valor e da ação propositada. Até onde sabemos hoje, nenhuma ponte liga esses dois mundos. Idênticos eventos exteriores resultam, às vezes, em respostas humanas diferentes, enquanto que eventos exteriores diferentes produzem, às vezes, a mesma resposta humana. Não sabemos por quê.

Em face desta realidade, não podemos deixar de apontar a falta de bom senso dos postulados essenciais do monismo e do materialismo. Podemos acreditar ou não que as ciências naturais conseguirão um dia explicar a produção de ideias definidas, julgamentos de valor e ações, da mesma maneira como explicam a produção de um composto químico: o resultado necessário e inevitável de certa combinação de elementos. Até que chegue esse dia, somos obrigados a concordar com o dualismo metodológico.

Ação humana é um dos instrumentos que promovem mudança. É um elemento de atividade e transformação cósmica. Portanto, é um tema legítimo de investigação científica. Como — pelo menos nas condições atuais — não pode ser rastreada até suas origens, tem de ser considerada como um dado irredutível e como tal deve ser estudada.

É verdade que as mudanças produzidas pela ação humana são insignificantes quando comparadas com a ação das poderosas forças cósmicas. Do ponto de vista da eternidade e do universo infinito, o homem é um grão infinitesimal. Mas, para o homem, a ação humana e suas vicissitudes são a coisa real. Ação é a essência de sua natureza e de sua existência, seu meio de preservar a vida e de se elevar acima do nível de animais e plantas. Por mais perecível e evanescente que todo esforço humano possa ser, para o homem e para sua ciência é de fundamental importância.

4. Racionalidade e irracionalidade; subjetivismo e objetividade da investigação praxeológica

Ação humana é necessariamente sempre racional. O termo "acho racional" é, portanto, pleonástico e, como tal deve ser rejeitado. Quando aplicados aos objetivos finais da ação, os termos racional e irracional são inadequados e sem sentido. O objetivo final da ação é sempre a satisfação de algum desejo do agente homem. Uma vez que ninguém tem condições de substituir os julgamentos de valor de um indivíduo pelo seu próprio julgamento, é inútil fazer julgamentos dos objetivos e das vontades de outras pessoas. Ninguém tem condições de afirmar o que faria outro homem mais feliz ou menos descontente. Aquele que critica está informando-nos o que imagina que faria se estivesse no lugar do seu semelhante, ou então está proclamando, com arrogância ditatorial, o comportamento do seu semelhante que lhe seria mais conveniente.

É usual qualificar uma ação como irracional se ela visa a obter satisfações ditas "ideais" ou "elevadas" à custa de vantagens tangíveis ou "materiais". Neste sentido, as pessoas costumam dizer — algumas vezes aprovando, outras vezes desaprovando — que um homem que sacrifica sua vida, saúde ou riqueza para atingir objetivos "elevados" (como a fidelidade, as suas convicções religiosas, filosóficas ou políticas, ou a libertação e florescimento de sua nação) está movido por considerações irracionais. Não obstante, a tentativa de atingir esses objetivos elevados não é mais nem menos racional ou irracional do que aquela feita para atingir outros objetivos humanos. É um erro admitir que a vontade de satisfazer as necessidades mais simples da vida e da saúde é mais racional, mais natural ou mais justificado, que a tentativa para obter outros bens ou amenidades. É claro que o apetite por comida e abrigo é comum aos homens e a outros mamíferos e que, como regra, um homem, ao qual falta comida e abrigo, concentra seus esforços na satisfação dessas necessidades urgentes e não se importa muito com outras coisas. O impulso para viver, para preservar sua própria vida e para aproveitar as oportunidades de fortalecer suas forças vitais é característica primordial da vida, presente em todo ser vivo. Entretanto, ceder a este impulso não é — para o homem — uma necessidade inevitável.

Enquanto todos os animais são incondicionalmente guiados pelo impulso de preservação de sua própria vida e pelo de proliferação, o homem tem o poder de comandar até mesmo esses impulsos. Ele pode controlar tanto seus desejos sexuais, como sua vontade de viver. Pode renunciar à sua vida quando as condições para preservá-la parecem insuportáveis. O homem é capaz de morrer por uma causa e de suicidar-se. Viver, para o homem, é o resultado de uma escolha, de um julgamento de valor.

O mesmo se passa com o desejo de viver com fartura. A simples existência de ascetas e de homens que renunciam a ganhos materiais por amor e fidelidade, as suas convicções, a preservação de sua dignidade e respeito próprio, é uma evidência de que a luta por amenidades tangíveis não é inexorável, mas, sobretudo, fruto de uma escolha. Naturalmente, a imensa maioria prefere a vida à morte, e a riqueza à pobreza.

É uma arbitrariedade considerar apenas a satisfação das necessidades fisiológicas do organismo como "natural" e, portanto, "racional", e tudo mais como "artificial", e, portanto, "irracional". O traço característico da natureza humana é o de buscar não apenas comida, abrigo e coabitação, como outros animais, mas, também, o de buscar outros tipos de satisfação. O homem tem desejos e necessidades especificamente humanos, que podemos chamar de "mais elevados" do que aqueles que têm em comum com outros mamíferos.[7]

Quando aplicados aos meios escolhidos para atingir os fins os termos racional e irracional implicam um julgamento sobre a oportunidade e a adequação do procedimento empregado. O crítico aprova ou desaprova um método conforme seja ou não mais adequado para atingir o fim em questão.

É fato que a razão não é infalível e que o homem frequentemente erra ao selecionar e utilizar meios. Uma ação inadequada ao fim pretendido fracassa e decepciona. Embora não consiga atingir o fim desejado, é racional, ou seja, é o resultado de uma deliberação sensata — ainda que defeituosa -, é uma tentativa de atingir um objetivo determinado — embora uma tentativa ineficaz. Os médicos que há cem anos empregavam certos métodos no tratamento do câncer, métodos esses rejeitados pelos médicos contemporâneos, estavam, do ponto de vista da patologia de nossos dias, mal informados e eram consequentemente ineficientes. Mas eles não agiam irracionalmente; faziam o melhor possível. É provável que daqui a cem anos os médicos tenham à sua disposição métodos mais eficientes para o tratamento dessa doença. Serão, então, mais eficientes, mas não mais racionais que os médicos atuais.

O oposto de ação não é comportamento irracional, mas a resposta automática aos estímulos por parte dos órgãos e instintos do organismo que não podem ser controlados pela vontade de uma pessoa. Ao mesmo estimulo o homem pode, sob certas condições, reagir tanto por uma resposta automática como pela ação. Se um homem absorve um veneno, os órgãos reagem organizando a sua defesa; além disso, pode haver a interferência da sua ação pela administração de um antídoto.

Quanto ao problema contido na antítese racional e irracional, não há diferença entre as ciências naturais e as ciências sociais. A ciência sempre é, tem de ser, racional. É um esforço para conseguir um domínio mental dos fenômenos do universo, através da organização sistemática de todo o conjunto de conhecimento disponível. Entretanto, conforme já foi assinalado anteriormente, a decomposição de qualquer conhecimento em seus elementos constituintes tem necessariamente de, mais cedo ou mais tarde, atingir um ponto alem do qual não pode prosseguir. A mente humana nem mesmo é capaz de conceber um tipo de conhecimento que não seja limitado por um dado irredutível, inacessível a uma maior análise e ao desdobramento. O método científico que conduz a mente até esse ponto é racional. O dado irredutível pode ser considerado um fato irracional.

É moda, nos dias de hoje, criticar as ciências sociais por serem meramente racionais. A objeção mais frequente levantada contra a economia é a de que ela negligencia a irracionalidade da vida e da realidade e tenta confinar a variedade infinita de fenômenos em áridos esquemas racionais ou em abstrações insípidas. Nenhuma censura podia ser mais absurda. Como todo ramo do conhecimento, a economia vai até onde pode ser conduzida por métodos racionais. Em determinado momento para reconhecendo o fato de que está diante de um dado irredutível, isto é, diante de um fenômeno que não pode ser mais desdobrado ou analisado — pelo menos no presente estágio do nosso conhecimento.[8]

Os ensinamentos da praxeologia e da economia são válidos para qualquer ação humana, independentemente de seus motivos, causas ou objetivos subjacentes. Os julgamentos finais de valor e os objetivos finais da ação humana são dados para qualquer tipo de investigação científica; não são passíveis de maior análise. A praxeologia lida com os meios e recursos escolhidos para a obtenção de tais objetivos finais. Seu objeto são os meios, não os fins.

É neste sentido que nos referimos ao subjetivismo da ciência geral da ação humana. Esta ciência considera os objetivos finais escolhidos pelo agente homem como dados, é inteiramente neutra em relação a eles e se abstém de fazer julgamentos de valor. O único padrão que utiliza é o de procurar saber se os meios escolhidos para a obtenção dos fins pretendidos são ou não os mais adequados. Se o eudemonismo fala em felicidade, se o utilitarismo e a economia falam em utilidade, devemos interpretar estes termos subjetivamente, como sendo aquilo que o agente homem procura obter porque, a seu juízo, considera desejável. É neste formalismo que consiste o progresso do significado moderno do eudemonismo, do hedonismo e do utilitarismo, contrapondo-se ao seu antigo significado materialista, bem como o progresso da moderna teoria subjetivista de valor, que contrasta com a teoria objetivista de valor como é interpretada pela economia política clássica. Ao mesmo tempo, é neste subjetivismo que se assenta a objetividade da nossa ciência. Por ser subjetivista e considerar os julgamentos de valor do agente homem como dados irredutíveis não passíveis de qualquer outro exame crítico, coloca-se acima de disputas de partidos e facções, é indiferente aos conflitos de todas as escolas de dogmatismo ou doutrinas éticas, é livre de valorações e de ideias ou julgamentos preconcebidos, é universalmente válida e absoluta e simplesmente humana.

5. Causalidade como um requisito da ação

O homem tem condições de agir porque tem a capacidade de descobrir relações causais que determinam mudanças e transformações no universo. Ação requer e pressupõe a existência da causalidade. Só pode agir o homem que percebe o mundo à luz da causalidade. Neste sentido é que podemos dizer que a causalidade é um requisito da ação. A categoria, meios e fins pressupõe a categoria causa e efeito. Num mundo sem causalidade e sem a regularidade dos fenômenos, não haveria campo para o raciocínio humano nem para a ação humana. Um mundo assim seria um caos no qual o homem estaria perdido e não encontraria orientação ou guia. O homem nem é capaz de imaginar um universo caótico de tal ordem.

O homem não pode agir onde não percebe nenhuma relação causal.

A recíproca desta afirmativa não é verdadeira. Mesmo quando conhece a relação causal, o homem também pode deixar de agir, se não tiver condições de influenciar a causa. O arquétipo da pesquisa da causalidade era: onde e como devo interferir de forma a mudar o curso dos acontecimentos, do caminho que eles seguiriam na ausência da minha interferência, para uma direção que melhor satisfaça meus desejos? Neste sentido, o homem levanta a questão: quem ou o que está na origem das coisas? Ele procura a regularidade ou a "lei", porque quer interferir. Só mais tarde é que esta procura foi mais extensivamente interpretada pela metafísica como uma procura da causa final da vida e da existência. Foram necessários séculos para fazer retornar ideias extravagantes e exageradas à questão bem mais modesta: de que modo alguém deve interferir ou deveria ser capaz de interferir para conseguir atingir este ou aquele fim.

O tratamento dado ao problema da causalidade nas últimas décadas foi bastante insatisfatório, graças à confusão provocada por alguns físicos eminentes. Esperemos que este desagradável capítulo da história da filosofia seja uma advertência para futuros filósofos.

Existem mudanças cujas causas são desconhecidas para nós, pelo menos no momento atual. Algumas vezes conseguimos adquirir um conhecimento parcial que nos permite afirmar: em 70% de todos os casos, resulta em B; nos casos remanescentes, resulta em C, ou mesmo em D, E, F e assim por diante. A fim de substituir esta informação fragmentada por informação mais precisa, seria necessário decompor A em seus componentes. Enquanto isto não for conseguido, temos de aquiescer com o que é conhecido como lei estatística. Mas isso não afeta o significado praxeológico da causalidade. Ignorância total ou parcial em algumas áreas não elimina a categoria da causalidade.

Os problemas filosóficos, epistemológicos e metafísicos da causalidade e da indução imperfeita estão fora do escopo da praxeologia. Devemos simplesmente estabelecer o fato de que, para poder agir, o homem precisa conhecer a relação causal entre eventos, processos ou situações. E, somente se conhecer essa relação, sua ação pode atingir os objetivos pretendidos. Temos consciência de que ao fazer esta afirmativa, estamo-nos movendo num círculo. Porque a evidência de que percebemos corretamente uma relação causal só é estabelecida quando a ação guiada por este conhecimento conduz ao resultado esperado. Mas não podemos evitar este círculo vicioso precisamente porque a causalidade é um requisito da ação. E por ser um requisito, a praxeologia não pode deixar de dedicar alguma atenção a esse problema fundamental da filosofia.

6. O alter ego

Se estivermos preparados para utilizar o termo causalidade no seu lato sensu, a teleologia pode ser denominada uma espécie de investigação das causas. Causas finais são, antes de tudo, causas. A causa de um evento é entendida como uma ação ou quase ação que procura atingir algum fim.

Tanto o homem primitivo como a criança, numa ingênua atitude antropomórfica, considera bastante plausível que toda mudança ou evento seja o resultado da ação de um ser agindo da mesma maneira que eles. Acreditam que animais, plantas, montanhas, rios e fontes, e até mesmo pedras e corpos celestes são, como eles, seres que agem, sentem e têm propósitos. Somente num estágio mais avançado do desenvolvimento cultural é que o homem renuncia a essas ideias animistas e as substitui por uma visão mecanicista do mundo. O mecanicismo se revela um principio de conduta tão satisfatório que as pessoas acabam por acreditá-lo, capaz de resolver todos os problemas do pensamento e da pesquisa cientifica. O materialismo e o panfisicalismo proclamam o mecanicismo como a essência de todo conhecimento e os métodos experimentais e matemáticos das ciências naturais como a única forma científica de pensamento. Todas as mudanças devem ser compreendidas como movimentos sujeitos às leis da mecânica.

Os defensores do mecanicismo não se preocupam com os problemas ainda não resolvidos da base lógica e epistemológica dos princípios da causalidade e da indução amplificante. Para eles, esses princípios são corretos porque funcionam. O fato de que experiências em laboratório conseguem obter os resultados previstos pelas teorias e de que nas fábricas as máquinas funcionam da maneira prevista pela tecnologia prova — assim dizem eles — a confiabilidade dos métodos e conclusões da ciência natural moderna. Sendo certa que a ciência não nos pode dar a verdade — e quem sabe realmente o que é a verdade? -, não se pode negar que ela consegue conduzir-nos ao sucesso.

Mas justamente quando aceitamos este ponto de vista pragmático é que o vazio do dogma panfisicalista se toma manifesto. A ciência, como já foi assinalada acima, não conseguiu resolver os problemas da relação mente/corpo. Os panfisicalistas certamente, não podem sustentar que os procedimentos que recomendam tenham, em algum momento, solucionado os problemas das relações inter-humanas e das ciências sociais. No entanto, é fora de dúvida que o principio segundo o qual um ego lida com todo ser humano como se fosse um ser que pensa e age como ele mesmo já evidencia sua utilidade tanto no dia a dia como na pesquisa científica. Não se pode negar que este princípio é correto.

É fora de dúvida que a prática de considerar os semelhantes como seres que pensam e agem como eu, o ego, tem dado certo; por outro lado, parece ser impossível fazer uma verificação prática equivalente para um postulado que determine que os seres devam ser tratados da mesma maneira que os objetos das ciências naturais. Os problemas epistemológicos que são suscitados pela compreensão do comportamento de outras pessoas não são menos complicados do que os suscitados pela causalidade e pela indução amplificante. Pode-se admitir que fosse impossível apresentar evidência conclusiva para a proposição de que a minha lógica é a lógica de todas as outras pessoas e, certamente, a única lógica humana; que as categorias da minha ação são as categorias da ação de todas as pessoas e, certamente, também as categorias de toda ação humana. Não obstante, o pragmático deve lembrar-se de que essas proposições funcionam tanto na prática como na ciência, e o positivista não deve esquecer que, ao dirigir-se a seus semelhantes, pressupõe — tácita e implicitamente — a validade intersubjetiva da lógica e, portanto, a realidade da existência do pensamento e ação do alter ego e de seu caráter eminentemente humano.[9]

Pensar e agir são características próprias do homem. São privilégios exclusivos de todos os seres humanos. Caracterizam o homem, independentemente de sua qualidade de membro da espécie zoológica, mesmo como homo sapiens. Não é propósito de a praxeologia investigar a relação entre pensar e agir. Para a praxeologia, é suficiente estabelecer o fato de que há somente um modo de ação que é humano e que é compreensível para a mente humana. Se existem, ou podem existir, em algum lugar, outros seres — super-humanos ou subumanos — que pensam e agem de maneira diferente, é algo que está fora do alcance da mente humana. Devemos restringir nossos esforços ao estudo da ação humana.

Esta ação humana, inextricavelmente ligada ao pensamento humano, está condicionada pela necessidade da lógica. É impossível à mente humana conceber relações lógicas diferentes da sua estruturação lógica. É impossível à mente humana conceber um modo de ação cujas categorias sejam diferentes das categorias que determinam suas próprias ações.

O homem só dispõe de dois princípios para apreensão mental da realidade: a teleologia e a causalidade. O que não puder ser colocado em qualquer destas duas categorias é inacessível à mente humana. Um evento que não possa ser interpretado por um desses dois princípios é, para o homem, inconcebível e misterioso. Uma mudança pode ser concebida como consequência de uma causalidade mecanicista ou de um comportamento propositado; para a mente humana, não há outra hipótese disponível.[10] Na realidade, como já foi mencionado, a teleologia pode ser considerada uma espécie de causalidade. Mas assinalar este fato não anula as diferenças essenciais entre essas duas categorias.

A visão pan-mecanicista do mundo está comprometida com um monismo metodológico; admite apenas a causalidade mecanicista porque lhe atribui todo valor cognitivo ou, pelo menos, um valor cognitivo maior do que a teleologia. Isto é uma superstição metafísica. Ambos os princípios da cognição — causalidade e teleologia — são, por força das imitações da razão humana, imperfeitos e não implicam conhecimento definitivo. A causalidade nos leva a um regressus in infiniturn[11] que a razão nunca consegue exaurir. A teleologia quer saber, tão logo se coloca a questão, qual é a fonte da energia primeira. Os dois métodos logo esbarram num dado irredutível que não pode ser analisado ou interpretado. O raciocínio e a investigação científica nunca podem proporcionar uma completa tranquilidade de espírito, uma certeza apodítica ou uma cognição perfeita de todas as coisas. Quem pretende isso tem de recorrer à fé e tentar acalmar sua consciência adotando um credo ou uma doutrina metafísica.

Se não transcendermos o uso da razão e a experiência, temos de admitir que nossos semelhantes agem. Não podemos negar este fato em favor de um preconceito ou de uma opinião arbitrária. A experiência do dia a dia não prova apenas que o único método adequado para estudar as condições do nosso meio ambiente não é o fornecido pela categoria da causalidade; prova ainda, convincentemente, que nossos semelhantes são seres agentes, como nós também o somos. O único processo viável para interpretação e análise da ação humana é o proporcionado pela compreensão e análise do nosso próprio comportamento propositado.

O problema do estudo e análise da ação das outras pessoas não está de forma alguma ligado ao problema da existência de uma alma ou de uma alma imortal. Enquanto as objeções do empirismo, behaviorismo e positivismo forem dirigidas contra qualquer espécie de teoria da alma, não têm nenhum valor para a análise do nosso problema. A questão que temos de enfrentar é a de saber se é possível compreender intelectualmente a ação humana se nos recusarmos a compreendê-la como comportamento propositado, que procura atingir determinados fins. O behaviorismo e o positivismo querem aplicar à realidade da ação humana os métodos empíricos das ciências naturais. Interpretam a ação como uma resposta aos estímulos. Mas esses estímulos, em si mesmos, não são passíveis de descrição pelos métodos das ciências naturais. Qualquer tentativa de descrevê-los tem de se referir ao significado que o agente homem lhes dá. Podemos chamar de estímulo a oferta de uma mercadoria à venda. Mas o que é essencial nesta oferta e a distingue de outras ofertas não pode ser explicado sem que se considere o significado que os agentes atribuem a essa situação. Não há artifício dialético que possa negar o fato de que o homem é movido pelo desejo de atingir determinados fins. É este comportamento propositado — ação — que é o objeto de nossa ciência. Não podemos abordá-lo, se negligenciarmos o significado que o agente homem associa a uma situação, ou seja, a uma dada conjuntura, e ao seu próprio comportamento diante da mesma.

Não é apropriado ao físico buscar causas finais, porque não há indicação de que os eventos que são o objeto do estudo da física possam ser interpretados como o resultado da ação de um ser que quer atingir fins a maneira humana. Tampouco é apropriado ao praxeologista desconsiderar a existência da vontade e da intenção dos seres agentes; são fatos inquestionáveis. Quem desconsiderá-los não estará mais estudando a ação humana. Algumas vezes — mas não sempre os eventos em questão podem ser investigados tanto pelo ângulo da praxeologia como pelo ângulo das ciências naturais. Mas quem lida com a descarga de uma arma de fogo, sob o ângulo da física ou da química, não é um praxeologista. Negligencia o próprio problema que a ciência do comportamento propositado do homem procura esclarecer.

Sobre a utilidade dos instintos

A prova do fato de que só existem duas vias para a pesquisa humana — causalidade ou teleologia — é fornecida pelos problemas relacionados com a utilidade dos instintos. Existem tipos de comportamento que, por um lado, não podem ser interpretados pelos métodos das ciências naturais e, por outro lado, não podem ser considerados como ação humana propositada. Para compreender esses tipos de comportamento, temos de recorrer a um artifício. Atribuímos-lhes o caráter de uma quase ação; estamo-nos referindo aos instintos úteis.

Destacamos duas observações: primeira, a tendência, inerente a um organismo vivo, de responder a um estímulo, de acordo com um mesmo padrão; segunda, os efeitos favoráveis deste tipo de comportamento para o fortalecimento ou a preservação das forças vitais do organismo. Se pudéssemos interpretar tal comportamento como o resultado de ação propositada visando a determinados fins, poderíamos qualificá-lo como ação e lidar com ele de acordo com os métodos teleológicos da praxeologia. Mas como não encontramos nenhum vestígio de uma mente consciente por trás desse comportamento, supomos que um fator desconhecido — chamamo-lo instinto — o provocou. Dizemos que o instinto dirige este quase propositado comportamento animal, bem como, as respostas úteis, embora inconscientes, dos músculos e nervos do homem. Entretanto, o simples fato de hipostasiar o elemento inexplicado desse comportamento como uma força e chamá-lo de instinto, não aumenta nosso conhecimento. Não devemos esquecer que apalavra instinto é apenas um marco divisório que indica um ponto além do qual somos incapazes, pelo menos até o presente momento, de prosseguir com nossa investigação.

A biologia conseguiu descobrir uma explicação "natural", isto é, mecanicista, para vários processos que anteriormente eram atribuídos ao funcionamento dos instintos. Não obstante, muitos outros subsistem que não podem ser interpretados como respostas mecânicas ou químicas a estímulos mecânicos ou químicos. Os animais manifestam atitudes que não podem ser compreendidas, a não ser pela suposição da existência de um fator atuante.

O intuito do behaviorismo de estudar a ação humana, exteriormente, com os métodos da psicologia animal, é ilusório. Tão logo o comportamento animal vai além dos simples processos fisiológicos, como a respiração e o metabolismo, só pode ser investigado com a ajuda dos conceitos desenvolvidos pela praxeologia. O behaviorista aborda o objeto de suas investigações com as noções humanas de propósito e êxito. Aplica inadvertidamente ao objeto de seus estudos os conceitos humanos de utilidade e perniciosidade. Ilude-se ao excluir qualquer referência verbal à consciência e à busca de objetivos. Na verdade, sua mente procura por objetivos em toda parte e mede cada atitude com o gabarito de uma noção deturpada de utilidade. A ciência do comportamento humano — a não ser a fisiologia — não pode deixar de se referir a significado e propósito. Não pode aprender nada da psicologia animal nem da observação das reações inconscientes de crianças recém-nascidas. Ao contrário, é a psicologia animal e a psicologia infantil que não podem rejeitar a ajuda proporcionada pela ciência da ação humana. Sem as categorias praxeológicas, não teríamos condições de conceber e compreender o comportamento tanto de animais como de crianças.

A observação do comportamento instintivo de animais enche o homem de espanto e levanta questões às quais ninguém pode responder satisfatoriamente. No entanto, o fato de animais e até mesmo plantas reagirem de uma maneira quase propositada não é mais nem menos milagroso do que a capacidade do homem para pensar e agir, do que o fato de prevalecerem, no universo inorgânico, as correspondências funcionais descritas pela física, ou do que o fato de ocorrerem processos biológicos no universo orgânico. Tudo isso é milagroso no sentido de que é um dado irredutível para a nossa mente perscrutadora.

O que chamamos instinto é também um dado irredutível. Como os conceitos de movimento, força, vida, consciência, o conceito de instinto também é, simplesmente, um termo para designar um dado básico. Com toda certeza, não "explica" nada nem indica uma causa ou uma causa final.[12]

O objetivo absoluto

Para evitar qualquer possível mal-entendido quanto às categorias praxeológicas, parece ser necessário enfatizar um truísmo.

A praxeologia, como as ciências históricas da razão humana, lida com a ação propositada do homem. Se mencionar fins, o que tem em vista são os fins que o agente homem procura atingir. Falar de significado, referir-se ao significado que o agente homem atribui às suas ações.

A praxeologia e a história são manifestações da mente humana e, como tal, estão condicionadas pela aptidão intelectual dos homens mortais. A praxeologia e a história não pretendem saber nada sobre as intenções de uma mente superior e objetiva, sobre um significado objetivo inerente ao curso dos acontecimentos e a evolução histórica; nem sobre os planos que Deus ou a Natureza ou Weltgeist ou o destino está tentando realizar ao dirigir o universo e os negócios humanos. Não têm nada em comum com o que se chama de filosofia da história. Não pretendem revelar informações sobre o verdadeiro, objetivo e absoluto significado da vida e da história, como pretendem fazê-lo Hegel, Comte, Marx e muitos outros autores.[13]

O homem vegetativo

Algumas filosofias aconselham o homem a buscar como objetivo final de sua conduta a renúncia completa a qualquer ação. Encaram a vida como um mal, cheia de dor, sofrimento e angústia, e apoditicamente negam que qualquer esforço humano possa tomá-la tolerável. A felicidade só pode ser alcançada pela completa extinção da consciência, da vontade e da vida. A única maneira de alcançar a glória e a salvação é tornar-se perfeitamente passivo, indiferente, inerte como as plantas. O bem supremo é o abandono do pensamento e da ação.

Esta é a essência dos ensinamentos de várias filosofias indianas, especialmente do budismo, e de Schopenhauer. A praxeologia não tem nada a comentar sobre elas. É neutra em relação a todos os julgamentos de valor e à escolha de objetivos finais. Sua tarefa não é a de aprovar ou desaprovar, mas a de descrever o que é.

O objeto do estudo da praxeologia é a ação humana. Lida com o homem e não com o homem transformado numa planta e reduzido numa existência meramente vegetativa.



[1] A expressão acting man é freqüente em toda esta obra de Ludwig von Mises. Por seu poder de síntese - que facilita a sintaxe sem trair a semântica - preferimos  traduzi-la literalmente por "agente homem", em vez de utilizar as formas "homem em ação" ou "homem que age" como fizeram as traduções francesa e espanhola (N.'I'.)
[2] LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding, Oxford, Fraser,1894, vol. 1, p. 331-333; Leibniz, Nouveaux essais sur l'entendement humain,  Fammarion, p. 119.
[3] Cf. Feuerbach, Siimmtliche Werke, Bolin and Jodo. Stuttgart, 1907, vol. 10, p. 231.
[4] Cf. William McDougall, An Introduction to Social Psychology, 14 ed. Boston, 1921, p. 11.
[5] Cf. Mises, Epistemological Problems of Economics. Trad.  G. Reisman (New York, 1960), p. 52 e segs.
[6] Nestes casos,  tem especial  importância a circunstância de que as duas satisfações em questão — aquela esperada se cedermos e aquela que teríamos se evitássemos suas consequências desagradáveis — não são simultâneos. Ver adiante p. 485- 496

[7] Sobre os erros na lei de ferro dos salários veja adiante p. 608; sobre o mal entendido acerca da teoria de Malthus, ver adiante p. 675-680.
[8] Veremos mais adiante (p.51-60) como as ciências sociais empíricas lidam com o dado irredutível
[9] Cf. Alfred Schütz, Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt .Viena. 1932), p. 18.
[10] Cr. Karel Englis, Begründung der Teleologie als Form des empirischen Erkennens .Brünn, 1930, p. 15 e segs.
[11] Processo de procurar indefinitivamente em cada situação à etapa precedente. (N.T.)
[12] "La vie est une cause premiere qui nous échappe comme toutes les causes premiéres et dont la science expérimentale n'a pas à se préoccuper." Claude Bernard, Law Science expérimentale (Paris, 1878), p. 137.
[13] Sobre filosofia de a história ver Mises, Theory and History, New Haven, 1957, p. 159 e segs.