sábado, 18 de fevereiro de 2012

Direito Natural X Direito Positivo




1. Introdução

Aristóteles
A polêmica que opõe jusnaturalismo e juspositivismo já se estende desde os primórdios da formulação do pensamento jurídico ocidental. Variando, contudo, a relação entre as duas perspectivas. Pode-se dizer que até o século XIX, o Ocidente foi dominado por uma concepção dualista do Direito: de um lado, as leis naturais ou direito natural (lex naturalis), conjunto de princípios gerais pré-normativos; de outro lado, as leis positivas ou direito positivo, conjuntos das normas efetivamente existentes de âmbito prático.
           
Em seu tratado Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue perfeitamente o direito natural (nomikón physikón) e o direito legal (nomikón díkaion), que podem ser entendidos como equivalendo à distinção moderna entre direito natural e positivo. Na concepção de Aristóteles o direito natural é aquele cuja eficácia se faz valer em qualquer parte independe do corpo social, de sua vontade própria ou das normas por ele estabelecidas. As normas emanadas do direito natural são a própria vontade dos deuses, cujo principal atributo é serem boas em si mesmas. Do outro lado, o direito positivo é aquele que prescreve normas segundo a vontade específica de determinada sociedade. Ora, segundo essa concepção, o direito positivo não pode ser dito “bom em si mesmo” como no caso do direito natural, mas de todo modo, uma vez estabelecido exige sua observância. Há de se acrescentar, outrossim, que, tanto para Aristóteles quanto posteriormente para São Tomás de Aquino, a dualidade direito natural/direito positivo não implicava uma hierarquia, muito embora o filósofo medieval admitisse uma superioridade do direito natural sobre o positivo, tese posteriormente adotada pelos jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII.
           
É de se ressaltar, já desde início, que o jusnaturalismo implica necessariamente um dualismo: o direito natural, qualquer que seja a posição hierárquica ou nível de distinção, deve conviver com o direito positivo, ora com seu complemento, ora como seu fundamento. Já o juspostivismo se concebe contrariamente como uma “teoria da exclusão do direito natural”, ou seja, a concepção positivista se baseia no monismo ou, na formulação de Bobbio, o postitivismo é justamente “ aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, 1996, p. 26). Nesse sentido, pertence intrinsecamente á concepção positivista a exclusividade do direito positivo contra o pseudo-direito natural de tal modo que “o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito”. (BOBBIO, 1996, p.26).
           
Enquanto o jusnaturalismo se caracteriza fortemente pela busca do “direito justo” ao ponto de degradar o injusto em um não direito, os positivistas em geral se recusaram a estender a discussão sobre o direito para além da esfera da própria normatividade. Para estes últimos, o próprio conceito de justiça é extremamente equívoco, vez que, desde Platão, não foi possível dar-lhe um significado unívoco.
           
Nesse sentido, à margem do problema metodológico do monismo e do dualismo, se desdobra esse outro mais filosófico centralizado sobre o problema da justiça. Quando, pois, o positivismo recusa a vincular o direito a qualquer outra esfera, recusando o conceito de justiça para além da normatividade efetiva, parece também ele não escapar de uma aporia: se o direito é esfera independente, donde pode originar-se? Veremos que esta é uma das grandes objeções contra a teoria escalonada de Kelsen.

2. A doutrina dos direitos naturais: origem e desdobramentos

           
Como afirmamos de início, a concepção jusnaturalista pode ser rastreada até os primórdios do pensamento jurídico ocidental na Grécia clássica. Assim, conforme elaborou Bobbio (1996), há três categorias de direito natural, conforme do período de seu desenvolvimento: o direito natural fundado sobre a distinção entre a natureza e o mundo da praxis humana, formulado na Antiguidade Clássica; o direito natural identificado com o direito divino, oriundo das Sagradas Escrituras, que prevaleceu na Idade Média; e o direito natural identificado com a natureza racional do homem, formulado na Idade Moderna.
           
À concepção do direito natural formulada pela antiguidade greco-latina, pode-se com justeza chamar “direito natural cosmológico”, vez que fundado na idéia de que os direitos naturais encontrariam correspondência na dinâmica do próprio universo, a refletir as leis perenes que regem o ordenamento do cosmos. Trata-se de uma concepção que se enraíza no solo da própria cultura grega, mesmo antes do surgimento da especulação filosófica nos moldes como hoje a reconhecemos. Conforme assinala Danilo Marcondes (1997, p 26-35), no período anterior ao século VI a.C (período cosmológico) já despontava um pensamento que pregava a dependência entre a ordem humana e a ordem natural, entre a legalidade da natureza, com seus movimentos eternos, e a lei humana. Em Sófocles, por exemplo, encontramos o confronto entre a lei natural perene e divina e a lei humana, mediante o qual se desdobra a tragédia de Antígona. Tratava-se então de compreende o fundamento último da justiça que fora a necessidade humana para Homero, o valor da comunidade e do trabalho para Hesíodo, a igualdade para Sólon, a segurança para Píndaro, a retribuição para Ésquilo, e assim por diante. Mas desse período, coube justamente a Antígona materializar o primeiro confronto entre o direito natural e o direito positivo. Se por um lado, Antígona teve que pagar por descumprir o decreto legal do reino de Tebas em favor da lei divina que a obrigava para com seu irmão falecido, por outro, Creonte, então governante de Tebas, promete ao fim da obra passar a respeitar o direito natural. A resolução portanto se dá por um compromisso entre o direito natural e o direito positivo. De interesse também para a questão é o fato de que na Orestia de Ésquilo, que narra a fundação mítica dos Tribunais, é o direito positivo, representado pelos tribunais que supre e resolve a antinomia dos direitos naturais antagônicos, muito embora o “voto de Minerva”, deixe claro que a justiça humana não se desgarra da dimensão supra-humana. Nesse sentido, anteriormente ao nascimento da filosofia, pode-se notar já uma concepção do direito natural ligado à ordem da natureza, portanto um direito cosmológico, muito embora frequentemente este venha associado ao plano numênico.

Com o advento dos primeiros filósofos, àqueles aos quais Aristóteles chama “Físicos” por sua preocupação quase exclusiva com o princípio original da physis (natureza), tem-se a consolidação da correlação entre o direito e a ordem da natureza.  Não há aqui entretanto, o desenvolvimento de um pensamento jusnaturalista propriamente falando. Os primeiros filósofos pouco se interessavam pelo direito, ética ou política, estando todo o seu pensamento centrado nas questões cosmológicas.

Assim, o desenvolvimento seguinte do jusnaturalismo se deu a partir do humanismo socrático[1], que se desdobra no idealismo platônico e no realismo aristotélico. Com Sócrates, o pensamento grego se volta para o homem de modo consideravelmente diverso daquele promovido pelos sofistas. Mas muito embora sejam de relevo as contribuições de Sócrates e Platão, principalmente quanto ao conceito de justiça, é com Aristóteles, o terceiro dos grandes filósofos clássicos, que se tem uma teoria do direito e, concomitantemente, uma distinção entre o direito natural e o direito positivo.

Aplicando seu método analítico, Aristóteles distingue entre o justo natural e o justo legal, sendo que o justo natural expressaria a justiça objetiva imutável, pois que não depende da interferência humana. Por outro lado, o justo legal expressaria a lei positiva que se origina da vontade do legislador sofre uma variação espaço-temporal: cada comunidade política institui suas próprias leis conforme seus critérios particulares. 

No período posterior, pós-socrático ou helênico, tem-se a consubstanciação do jusnaturalismo aristotélico, muito embora as preocupações metafísicas tenham dado lugar ao problema da felicidade do homem. Trata-se, como afirmou Reale (1994, p. 627-630) de um pensamento que acaba por fundar uma concepção cosmopolita do homem, consolidando a noção de direito natural que será adotada pela Roma antiga. É pois, a partir da matriz helênica que se desenvolve o pensamento jurídico romano orientado pelo jusnaturalismo.

Com a queda do Império Romano tem início a Idade Média, quando é elaborado e predomina o pensamento cristão. A filosofia cristão medieval foi elaborada a partir de duas matrizes básicas: as Sagradas Escrituras e a filosofia grega. Assim, o jusnaturalismo herdado do pensamento clássico prevalecerá no medievo, porém sob nova formulação, adaptado as exigências da doutrina cristã. Assim, na Idade Média, o jusnaturalismo ser caracteriza por seu conteúdo teológico, cujos fundamentos eram a vontade divina, o credo religioso e o predomínio da fé. Para o jusnaturalismo teológico, o fundamento dos direitos naturais é a vontade de Deus, enquanto que o direito positivo deve guardar concordância com as exigências perenes da divindade.

Agostinho de Hipona
Pode-se identificar duas grandes correntes do pensamento medieval: a patrística, assim chamada por ter sido desenvolvida pelos Padres da Igreja Católica a fim de explicar os dogmas da religião, e a escolástica cujo grande marco é conciliação entre razão e fé. Santo Agostinho, o maior dos patrísticos, elaborou uma distinção entre a lei eterna (lex aeterna) e a lei natural (lex naturalis), sendo a primeira emanação do próprio Deus e por isso absolutamente imutável e a segunda sendo a manifestação da primeira no homem. Trata-se de um desdobramento do conceito clássico de lei natural análogo desdobramento do conceito de Estado em cidade terrena e cidade celeste. Nesse sentido, a lei natural passa a ser a lei eterna manifesta no coração dos homens, enquanto que a lei humana deve de todo modo derivar diretamente dessa lei natural, sendo defeso elabora-se preceitos em contrário sob pena de serem tidos como injustos e ilegítimos.

Já os escolásticos, entre eles o maior, São Tomás de Aquino, procuraram demonstrar que a fé e a razão são diferentes caminhos que levam ao verdadeiro conhecimento. São Tomás, na Suma Teológica, admite uma diversidade de leis (lei divina revelada ao homem, lei humana, lei eterna e a lei natural), mas concebe-as como dependentes umas das outras: A lei eterna é a razão oriunda do divino que coordena todo o universo, incluindo o homem. A natural, o reflexo da lei divina existente no homem. Afirma ele a necessidade da complementação desta pelas leis divina e humana, a fim de se conseguir a certeza jurídica e a paz social, bem como facilitar a interpretação dos julgadores.

Segundo Bobbio (1996) a noção de que o direito natural é superior ao direito positivo constitui uma herança da formulação medieval de tal modo que “desta concepção do direito natural como inspiração cristã derivou a tendência permanente no pensamento jusnaturalista de considerar tal direito como superior ao positivo” (BOBBIO, 1996, p.26)

A partir do renascimento, a concepção do jusnaturalismo teológico foi gradativamente substituída por uma doutrina jusnaturalista subjetiva e racional, fundamentada na razão humana universal. Esse processo consolida-se com a Ilustração, na qual a razão humana pretende fundar um código de ética universal. A razão passa a ser a ordenadora da natureza e da vida social, resultando numa doutrina jusnaturalista que pregava direitos naturais e inatos, titularizados por todo e qualquer indivíduo. Segundo Maria Helena Diniz (2005, p. 38-43), emergem nesse contexto duas concepções de natureza humana: uma, genuinamente social, pregada por pensadores como Grotius, Pufendorf e Locke e outra, individualista, na visão de Rousseau, Hobbes, entre outros.

"O ius naturale já não seria identificado com a natureza cósmica, como fizeram os filósofos estóicos e a jurisprudência romana, nem imaginado como produto da vontade divina. A valorização da pessoa,  que se registrou com a Renascença , atingiu o âmbito da Filosofia Jurídica, quando então o Direito Natural passou a ser reconhecido como emanação da natureza humana." (NADER, 1995, p. 131)


Cesare Beccaria
Compreende-se que no contexto jusnaturalista moderno é a concepção prévia e filosoficamente estabelecida da natureza humana que funda a distinção entre o justo e o injusto, independentemente das leis positivas. Assim, mesmo as leis positivas e o próprio Estado, serão injustos na medida em que contrariam ou extrapolam os limites do justo natural. Consideremos o exemplo de Beccaria, escrevendo no na secunda metade do século XVIII. Para ele, o Estado só aparece em vista da necessidade comum de sobrevivência dos homens, e “as leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independêntes e isolados” (BECCARIA, 1959, p.32). Desse modo, o conceito de justiça se acha circunscrito exclusivamente na esfera das condições de manutenção da sociedade, de tal modo que o direito de punir deve ser considerado como um “mínimo” derivado da menor parcela de liberdade da qual o indivíduo abdica para integrar o corpo social. Nesse sentido, conclui o filósofo: “As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza” BECCARIA, 1959, p.34).

Entretanto, é com a obra de Kant que o jusnaturalismo atinge sua máxima sofisticação. Kant inverte a relação entre a racionalidade e a natureza humana a fim de destacar a racionalidade de outros atributos tradicionalmente considerados sob esta. Para o filósofo alemão, a razão transcendental, dimensão das condições de possibilidade do conhecimento, funda a própria realidade do mundo tal como é conhecido e experimentado. Assim, tanto o conhecimento teórico quanto o conhecimento prático (moral) não se funda na experiência, mas é determinado por leis inerentes à própria racionalidade. Trata-se, no domínio da moralidade, de fundar o agir humano sob um lei racional intrínseca ao próprio conceito de racionalidade, o imperativo categórico, considerando-se a razão prática como legisladora de si e a autonomia como a faculdade racional de impor os limites da ação e da conduta humana.

A doutrina do direito em Kant implica que a justiça se compreende como imperativo da razão, de modo a que, nessa versão do jusnaturalismo, o conhecimento jurídico passa a ser construído pela sistemática da razão, conforme sua capacidade dedutiva e compreende-se como uma crítica da realidade a partir da avaliação crítica do direito em nome de padrões éticos contidos em princípios reconhecidos pela razão humana. Se a razão humana é capaz de se dar sua própria lei de conduta, então não apenas os princípios morais, mas também os princípios jurídicos e o próprio direito positivo não teriam outra fonte de legitimidade senão essa lei inerente à racionalidade.

A ascensão do positivismo jurídico se faz a partir de uma crítica ao jusnaturalismo. De modo geral, a doutrina jusnaturalista pode ser resumida em dois pontos: dualidade do direito natural e positivo, superioridade daquele em face deste. Afora esses dois princípios gerais, o jusnaturalismo se desdobra em um sem número de teorias e visões diferentes. Para melhor se compreender as críticas positivistas a doutrina dos direitos naturais é útil fazer uso da classificação de Bobbio que a divide em três formas: escolástica, racionalista e hobbesiana.

Na forma escolástica, o direito natural é definido como conjunto de princípios gerais éticos que servem ao legislador de inspiração para elaborar o direito positivo. As leis positivas, então, derivam dos princípios éticos naturais quer por conclusão, à semelhança da operação do silogismo, quer a partir de determinação, quando cabe ao direito positivo estabelecer de modo concreto a aplicação dos princípios gerais do direito natural.

A crítica positivista a esta forma de direito natural se deve ao fato dos positivistas não aceitarem a existência de princípios éticos universais. Considerando-se que não há uma ética universal, os positivistas se recusam a reconhecer que quaisquer princípios conformariam leis imutáveis, válidas por si mesmas independente do tempo, da sociedade e das transformações culturais.

Sob a forma racionalista, o direito natural é concebido como um conjunto de princípios racionais que fornecem o conteúdo para a regulamentação das normas. Assim, cabe ao direito natural fornecer conteúdo às normas do direito positivo. Nesse caso, o direito positivo é o próprio direito natural (seu conteúdo) somado á coação. O que é próprio ao direito positivo é a forma coativa mediante a qual ele vige entre os homens, enquanto que seu conteúdo permanece como que emanado diretamente dos ditames da racionalidade. O direito é, por isso, todo natural e sua positivação serve apenas à possibilidade de aplicação do mesmo. Do direito natural ao positivo, conforme assinala Bobbio, o que muda é meramente a possibilidade de seu exercício:

O estado civil nasce não para anular o direito natural, mas para possibilitar seu exercício através da coação. O direito estatal e o direito natural não estão numa relação de antítese, mas de integração. O que muda na passagem não é a substância, mas a forma; não é, portanto, o conteúdo da regra, mas o modo de fazê-la valer.
           

À esta segunda forma, os postivistas opõe o argumento de que o que torna uma conduta uma regra não é o seu conteúdo, mas o modo de criação ou execução. Assim, o conteúdo não pode fundar a legitimidade da forma, mas é a forma que determina a judicialidade do conteúdo.

A terceira forma de jusnaturalismo, cognominada por Bobbio de hobbesiana é aquela que aponta o direito natural como fundamento do direito positivo e do pode de legislar. O direito natural garante a legitimidade do poder de legislar para que este estabeleça o ordenamento positivo. Trata-se de uma visão diametralmente oposta à racionalista. Se naquela o direito positivo é todo natural, nesta o direito natural é todo positivo, uma vez que este é fundamento do poder de legislar.

Por fim, a esta terceira via naturalista, os positivistas não admitem que o fundamento das normas jurídicas possa ser encontrado em outra forma de direito, mas que deriva do princípio de efetividade. Para eles, as normas jurídicas emanam da própria ordem jurídica e não de um elemento ou ordem exterior. É a própria ordem positiva que funda a necessidade de obediência da norma.

Conforme conclui Auto de Castro (1954, p. 28), a doutrina jusnaturalista não é capaz de oferecer nenhuma teoria apropriada para definir o direito justo. As correlações entre direito, legitimidade e justiça permanecem precárias em todas elas, de tal modo que deve sempre recorrer a postulados metafísicos inaceitáveis para a epistemologia contemporânea.

A primeira razão para se rejeitar o jusnaturalismo seria a constatação de que este confunde os planos do ser e do dever-ser, implicando o direito injusto como um não-direito. O direito positivo só poderia ser aceito, na maior parte das concepções naturalistas, se estivesse em perfeita consonância com a justiça, do contrário, configuraria mera imposição de força por um poder constituído.

Para os críticos o jusnaturalistas não seria capazes de visualizar a bipolariadade axiológica, dado o fato aceito epistemologicamente de que juízos de valor e juízos de fato estão em planos diverso de apreensão cognitiva. Daí a assertiva naturalista de que o direito injusto não é direito de modo algum.

Mas a principal dificuldade do jusnaturalismo está na caracterização do conceito de justiça. Em que pese a reformulação do mesmo pelos teóricos contemporâneos, tal conceito permaneceria ainda arraigado numa concepção metafísica a-histórica, a-temporal e a-espacial.

Hans Kelsen
A crítica de Kelsen ao juspositivismo não é menos radical. Segundo o grande jurista a impossibilidade de se falar em direitos naturais deriva do caráter precário da teorização nesses termos que, de qualquer modo, só seria capaz de estabelecer um juízo de valor altamente subjetivo. Ainda segundo ele, tais juízos não se fundariam senão em uma necessidade de auto-ilusão:

... a justificação racional de um postulado baseado num julgamento de valor, ou seja, num desejo como, por exemplo, o de que os homens devem ser livres, ou de que todos os homens devem ser tratados igualmente, é uma auto-ilusão ou – o que equivale a dizer a mesma coisa – uma ideologia. (Kelsen, 200, p.12)

3. O positivismo jurídico


O positivismo jurídico pode ser definido como um desdobramento do próprio ideário iluminista em torno da razão. Trata-se de dar um estatuto científico ao direito proclamando sua independência de todas as demais esferas. É, de todo modo, um desenvolvimento do racionalismo moderno, o mesmo que, culminando em Kant, funda o direito natural sobre a natureza da razão humana.  

O direito positivo tem sua base ideológica no Positivismo de Comte, constituindo o direito obrigatório, promulgado, garantido por sanções e cuja aplicabilidade é exercida por órgãos institucionais:
           
Direito positivo tem dimensão temporal, pois é o direito promulgado (legislação) ou declarado (precedente judicial, direito anglo-americano), tendo vigência a partir de determinado momento histórico, perdendo-a quando revogado em determinada época. Reflete valores, necessidades e ideais históricos. É o direito que tem ou teve vigência. Tem também dimensão especial ou territorial, pois vige e tem eficácia em determinado território ou espaço geográfico em que impera a autoridade que o prescreve ou o reconhece, apesar de haver a possibilidade de ter eficácia extraterritorial. Por exemplo, nosso Código Civil, válido em todo o território nacional. (GUSMÃO, 2006, p. 54)


Positivistas por excelência, Hans Kelsen, Alf Ross, e Hebert Hart desenvolveram pensamentos que ajudaram para a evolução do Iuspositivismo. Hart interpretou o Direito como um sistema de regras primárias – regras de comportamento – e regras secundárias – regras que conferem poderes ou se referem a outras normas. Kelsen, no entanto, limitou o Direito a noções meramente ideológicas e conceituou a norma fundamental, considerada por ele uma norma suprema; embora não pertencendo ao Direito Positivo. Para Ross, membro da Escola Escandinava4, essa norma está presente na constituição formal; é ela quem permite instituição de emendas e a reforma da Constituição

A partir da compreensão de Bobbio, pode-se falar de três formas básicas de positivismo compreendido ora como ideologia, ora como teoria do direito, ora como metodologia.

Segundo a primeira caracterização, as leis válidas devem ser obedecidas incondicionalmente, independentemente do conteúdo das normas. O justo aí se concebe meramente como o que emana da validez da norma, tal como é concebido pelo formalismo ético.

De acordo com a noção do positivismo como teoria do direito, o direito reduz-se ao direito estatal, ou seja, a todo produto da conduta humana produzido pelo Estado, uma vez que o Estado detém a forma de criação das leis através da atividade legislativa. Tem-se aqui o formalismo científico. O positivista, então, quanto a teoria do direito, realiza uma operação lógico-semântica: as regras são derivadas do legislativo, independente do seu conteúdo. Conforme afirma Bobbio:

Por positivismo jurídico como teoria entendo aquela concepção particular do direito que vincula o fenômeno jurídico a formação de um poder soberano capaz de exercer a coação: o Estado. Trata-se daquela comum identificação do positivismo jurídico com a teoria estatal do direito. (BOBBIO, 1965, p. 43)


Kelsen é explícito na conceituação de sua “Teoria pura”: “A teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo, é uma teoria do direito em geral, não uma teoria sobre uma ordem jurídica específica. É uma teoria geral sobre a lei.

Kelsen concebe o direito como uma ordem, como um conjunto de normas que guardam entre si relações específicas. Não apenas um conjunto qualquer, mas uma ordem normativa. Ademais, a norma funciona como esquema de interpretação dos atos. Conforme assinala Ordónez:

O que faz deste evento um acto lícito (ou contrário à lei) não está na sua realidade, no seu habitat natural - ou seja, em que será determinada por leis causais, contidos no sistema de Natureza - mas o sentido objetivas relacionadas a ele, o siginificación com essa conta. Em causa o evento atinge seu sentido especificamente jurídico, o seu próprio significado na lei, através de uma regra que se aplica a ele com seu conteúdo, o que lhe dá sentido na lei, para que o ator pode ser interpretada como uma norma.
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Do que se depreende que o mundo jurídico e o mundo natural estão em esferas absolutamente distintas, tendo o direito, em sua própria dimensão, as condições mesmas de sua significação e legitimidade. É o ordenamento jurídico que, por fim, sustenta e origina a norma e sua interpretação, não uma instância externa ou outra forma de direito.

Por fim, de acordo com Bobbio, tem-se o positivismo como uma atitude científica, uma metodologia da ciência do direito:

“En esta primeira acepción de positivismo jurídico, positivista es, por conseguinte, aquel que asume frente al derecho uma actitud a-valorativa o objetiva o éticamente neutral;” (BOBBIO, 1965, p. 42 )

Essa distinção é relevante na medida em que as acepções metodologica, teórica e ideológica não estão necessariamente vinculadas logicamente. Conforme assinala, Bobbio:

A assunção do método positivista não implica também na assunção da teoria juspositivista. A relação de conexão entre o primeiro e a segunda é uma relação puramente histórica, não lógica (...) Do mesmo modo, a assunção do método e da teoria juspositivista não implica a assunção da ideologia do positivismo ético”. (BOBBIO, 1996, pp. 233-238)


Ora, o juspositivismo vem sofrendo severas críticas desde a segunda metade do século passado. De modo especial, a ideologia positivista que implica na obrigatoriedade do direito estatuído tornou-se passível de grande desconfiança frente à ascensão do totalitarismo e de ditaduras das mais diversas índoles. É fato notório que o Terceiro Reich de Hitler foi sustentado sobre a constituição da República de Weimar e que a maior parte dos atos estatais desse governo se desdobrou em atos jurídicos positivados. Do mesmo modo, as ditaduras anti-comunistas que emergiram em diversas partes do mundo no contexto da Guerra Fria instauraram ordenamentos jurídicos próprios que judicializaram o modo de atuação dos governos contra a resistência de setores ditos “subversivos”. Nesse sentido, o respeito absoluto às leis, às regras do jogo, pode tanto resguardar o cidadão do arbítrio como solapar suas possibilidades de resistência. "Nós nos encontramos, assim, na melhor situação para nos dar conta da extrema instabilidade das ideologias jurídicas, cujo valor progressista ou reacionário depende das circunstâncias históricas em que são sustentadas" (BOBBIO, 1965, p. 8-9)

É certo que o positivismo contemporâneo se apresenta principalmente sob a forma teórica, podendo-se descatar os aspectos metodológicos e ideológicos. Nesse sentido, a polêmica jusnaturalismo versus juspositivismo se dará, fundamentalmente, ao nível da teoria do direito a partir do ressurgimento do jusnaturalismo e da reformulação do juspositivismo, decalcado de seu viés ideológico.

4. Jusnaturalismo versus juspositivismo: polêmica e alternativas


Conforme nos informa Paulo Gusmão (1985, 30-32), o jusnaturalismo que sob as críticas positivistas havia sofrido um refluxo no século XIX, retorna durante o século XX, principalmente depois da Segunda Guerra em torno da renovação do debate sobre a justiça. O autor destaca as obras de Rudolf Stammler e Giorgio Del Vecchio. Para o primeiro, o jusnaturalismo teria um conteúdo variável, portanto não vinculado ao conceito de natureza humana. O segundo, procura fundar o direito natural sob uma base idealista depurada, tornando compatíveis os conteúdos históricos com o ideal do justo.

Assim, o jusnaturalismo contemporâneo procuraria incorporar as críticas positivistas a fim de reconhecer a relatividade do conceito de justiça, sustentando que cada cultura valora ao seu modo. A Justiça deixa de ser um conceito perene e imutável para se apresentar como possibilidade de configuração de um direito justo. Em cada sociedade haverá uma forma de vivenciar o direito justo, enquanto a própria justiça se reduz a um anseio fundamental do ser humano.

Assim, a primeira alternativa à polêmica se dá por uma reformulação da doutrina dos direitos naturais, na tentativa de afastá-la de seu viés metafísico, incorporando e tentando superar as principais críticas desenvolvidas pelos positivistas. O jusnaturalismo assistiu, assim, a um renascimento em nossos tempos e, contudo, apesar de ter-se empreendido com sucesso uma crítica à posição positivista, o conceito de direitos naturais está longe de ser bem aceito no mundo acadêmico. Esse fato, facilmente explicado pela natureza intrinsecamente metafísica do conceito, contudo, não impede que o pensamento jurídico atual venha a retomá-lo sob a forma da doutrina dos direito humanos, centralizada sobre a convicção de que todos os seres humanos têm igualmente o direito de serem respeitados pelo simples fato de sua humanidade.

Nesse sentido, de acordo com D’agostini, a atual noção de direitos humanos permanece tributária da velha aspiração jusnaturalista pela constituição de uma ordem jurídica calcada na justiça:

Os direitos humanos, com efeito, nada mais são que o modo no qual se apresentam em nosso tempo – e de uma forma particularmente aguda – as instâncias mais profundas do jusnaturalismo. Os direitos humanos não são benévolas concessões que os Estados ou suas Constituições fazem aos cidadãos (...); constituem na verdade a maturação definitiva no nosso tempo da ideia - tipicamente jurídica - do primado da justiça no mundo humano. (D’AGOSTINI, 2004, p. 27-28)


Para o estudioso supracitado, a conversão do jusnaturalismo na doutrina dos direitos humanos, conserva o princípio fundamental do direito justo, exigência essa escola de pensamento. Pode-se considerar que a própria Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 promulgada no âmbito da Revolução Francesa já traz as marcas indeléveis do jusnaturalismo racionalista da mordernidade, principalmente de Locke e de Rousseau.

Assim, a própria concepção de direitos do homem já nasceria no interior da corrente jusnaturalismo, marcando a passagem entre a doutrina teológica para a doutrina racionalista. Nesse caso, segundo a noção propagada pela Declaração, o homem seria titular de certos direitos pelo simples fato de ser homem. Fato este que nos autoriza a compreender que as expressões “direitos humanos” e “direitos naturais” passam a ser intercambiáveis. De fato, a Declaração não visa estabelecer direitos, mas reconhecê-los, donde se deduz que os direitos mesmos já se consideravam estabelecidos. Entretanto, o dimensionamento internacional dos direitos humanos é um fenômeno relativamente recente, remontando ao fim da Segunda Guerra Mundial e das tragédias que a sucederam na segunda metade do século XX, levando a uma revisão das condições jurídicas sob as quais se tornaram possíveis.

Contudo, a conceituação dos direitos humanos enfrenta desafio análogo ao do reconhecimento de direitos naturais pré-existentes. Isso porque os conceitos não se fixa definitivamente sobre um rol de direitos imediatamente reconhecíveis e depende, em grande parte, do mesmo esforço teórico para fazer derivar um conteúdo jurídico da natureza e condição humana. A teoria dos direitos humanos esbarra aqui justamente na crítica que os positivistas dirigiam ao jusnaturalismo escolástico: não há critério para se reconhecer uma ética universal acima das condições particulares de cada cultura. Assim, o primeiro desafio teórico da doutrina dos direitos humanos deve ser a superação da dicotomia universalismo/relativismo que enseja tal dificuldade.

É preciso reconhecer aos direitos humanos um caráter universal, vez que derivam da própria condição humana. Isso, contudo, não significaria um retorno ás concepções teológicas ou mesmo racionalistas dos direitos pré-existentes. Segundo Lima Benvenuto (2001, p. 57):

Há pelo menos duas concepções para o termo universalidade dos direitos humanos. A primeira, surgida na Antiguidade e que teve seu apogeu com a consagração da Revolução Francesa, atribui validade absoluta, portanto eterna aos direitos humanos. Por conta de sua natureza humana, todos os homens teriam certos direitos garantidos, seja por uma força cósmica, por Deus ou pela razão. O segundo sentido para o termo universalidade refere-se a um processo histórico pelo qual os direitos humanos são válidos e exigíveis em toda parte, num determinado tempo, em função das lutas sociais vivenciadas ao longo dos séculos. Neste sentido, o acúmulo de uma consciência de humanidade, pela qual o ser humano buscaria melhorar (...). Esta segunda acepção da universalidade dos direitos humanos parece ser apropriada ao entendimento atual da questão.


Impossível, pois, não reconhecer na doutrina dos direitos humanos, hoje tão difundida, um desdobramento da escola do direito natural. Há de fato uma conexão histórica e, ademais, lógica entre tais conceitos de tal modo que resta incompreensível o conteúdo conceitual específico da expressão “direitos humanos” se dela afastarmos sua matriz naturalista. Contudo, a construção teórica em torno dos direitos humanos pode, hoje, abdicar das teses mais fortes do jusnaturalismo, justamente aquelas que lhe traziam maiores dificuldades frente aos positivistas.

5. O positivismo inclusivo e a questão da moralidade


Uma vez que, principalmente no âmbito da filosofia do direito alemão pós-guerra, o positivismo tornou-se alvo de muitas críticas, a segunda alternativa de superação da polêmica se dá por uma reformulação da doutrina do direito positivo a fim de assegurar em seu âmbito um espaço para a moralidade. Surge, assim, no contexto do debate Raz-Dworkin, uma terceira via que se pode nominar “positivismo inclusivo”. Dworkin defendeu a tese de que o direito válido não poderia ser reconhecido a partir da remissão a fatos sociais, vez que certos parâmetros utilizados pelos juízes fundam sua validade em razão de sua correção moral. Nesse sentido, o direito estaria necessariamente ligado a moral, sendo que a interpretação do direito se daria à luz dos parâmetros morais. Por outro lado, Raz afirmava que a validade de qualquer norma jurídica só pode ser determinada por fatos sociais independes de quaisquer conteúdos morais, concebendo o direito e a moral como esferas absolutamente distintas. Encontra-se, assim, instaurada uma polêmica interna no positivismo entre a versão inclusiva e a versão exclusiva.

A síntese entre as duas concepções se dá a partir do reconhecimento de que, muito embora, nos sistemas jurídicos atuais o direito e a moral estejam interligados, este fato não implica uma conexão lógica, mas somente empírica e circunstancial, não sendo contraditório imaginar um sistema jurídico no qual estas esferas estejam perfeitamente segregadas. Estando de acordo sobre a tese central do positivismo teórico: a existência do direito depende de fatos sociais, i. e., práticas realizadas por membros de determinada comunidade, os positivistas inclusivos e exclusivos divergirão aqui quanto a necessidade de recorrer-se a uma esfera exterior para a interpretação da norma.

Vale lembra que na construção escalonada de Kelsen, cada norma jurídica retira sua validade de uma norma que lhe é hierarquicamente superior e, sucessivamente, até a norma fundamenta, pressuposto de validade de todo o sistema. Todas as normas jurídicas válidas se estabeleceriam a partir de sua promulgação em conformidade com a norma fundamental. Evidentemente essa concepção está sujeita a uma crítica imediata: tendo que deter o regressus ad infinitum pelo estabelecimento de uma norma fundamental, não se pode mais razoavelmente apresentar um fundamento de validade dessa mesma norma, nem explicar sua autoridade.

A dependência do direito em relação aos fatos sociais, portanto, não é somente a tese central do positivismo, é também seu “calcanhar de Aquiles”, o ponto no qual a teoria se fragiliza e dá margem a divergências entre os próprios juspositivistas. Nesse sentido, os positivistas exclusivos, adotam uma variação forte da tese e, como Kelsen, advogam que todas as normas jurídicas, primárias ou secundárias, dependem unicamente dos fatos sociais. Já os positivistas inclusivos, reconhecem que certas normas primárias podem fundar sua validade sobre a correção moral, desde que isso seja previsto pela norma de reconhecimento. Para estes últimos a tese da derivação dos fatos sociais é ainda válida plenamente quanto à regra de reconhecimento do direito, mas não o seria quanto a certas normas jurídicas primárias reconhecidas por ela.

De fundamental importância para a questão é a tese da separabilidade entre direito e moral, segundo a qual não há conexão entre as duas esferas e qualquer coincidência nesse sentido deve ser compreendida como um fato contingente. Trata-se de um corolário da tese da dependência dos fatos sociais, uma vez que se direito deriva unicamente dos fatos sociais, não há de ser possível conectá-lo logicamente com uma esfera exterior.

Entretanto, é fato que os positivistas reconhecem que são frequentes as coincidência entre as normas morais e as normas jurídicas. O que distingue aqui os positivistas inclusivos dos exclusivos é que estes últimos adotam uma teoria estrita da independência: as normas jurídicas são sempre independentes conceitualmente das normas morais, na medida em que se pode teoricamente fundar a autonomia dos sistemas jurídicos. De outro modo, os positivistas inclusivos, afirmam uma tese mais fraca, qual seja, de que é possível, mas não necessário, estabelecer a autonomia do sistema jurídico em face da normatividade moral. Assim, a tese da separação dá lugar a uma tese da separabilidade, de modo a que o fato empírico, frequentemente verificado, da convergência entre a norma moral e a norma jurídica não é capaz de solapar o fundamento da tese.

Nesse sentido, para os teóricos do positivismo jurídico inclusivo, a rejeição da tese da conexão entre direito e moral é de ordem analítica, ou conceitual, mas nada impede que, em uma contingência histórica, critérios morais sejam incorporados a um ordenamento jurídico específico, de maneira que o estabelecimento do direito válido e a realização de sua interpretação passem a depender não apenas de elementos formais de validade, como também de parâmetros substanciais de justiça. Desse modo, é acertado dizer que o positivismo jurídico inclusivo, como qualquer teoria positivista, pressupõe a tese da separabilidade conceitual entre direito e moral, mas admite a conexão eventual entre direito e moral, a depender de questões de natureza fática, diferenciando-se, por conseguinte, do positivismo jurídico exclusivo, que, conforme anteriormente salientado, não admite qualquer papel desempenhado por normas morais no exame da validade jurídica das normas de um dado ordenamento jurídico.

Compreende-se, portanto, que a versão “inclusiva” do positivismo jurídico constitui um conjunto de versões enfraquecidas das principais teses juspositivistas, de tal modo a que arrisca-se a desfigurar o próprio núcleo teórico do positivismo. Por outro lado, a tese não parece ser suficiente para conciliar o positivismo e o naturalismo, de modo a que a aproximação permanece precária e insuficiente em face das exigências da doutrina dos direitos naturais, uma vez que relega a convergência entre normas morais e normas jurídicas ao plano meramente factual, desdobrando ainda uma versão rigorosa do positivismo no plano teórico.

Desse modo, não acreditamos que o chamado “positivismo inclusivo” logre superara sustentavelmente a polêmica entre jusnaturalismo e juspositivismo. Na verdade, configurando-se como uma versão enfraquecida do positivismo jurídico, tal tendência uma versão suficientemente decalcada do positivismo para escapara às principais críticas ao mesmo, sem, contudo, tornar admissível, sequer em parte, a noção de direitos naturais. O apelo à moralidade, empiricamente sustentada, não se concebe como um acordo como o naturalismo hobbesiano, uma vez que o fundamento da regra de reconhecimento permanece vinculado à tese da derivação dos fatos sociais.

A nosso ver, o principal obstáculo à superação da polêmica está no fato de que, enquanto, o naturalismo é necessariamente dualista, o positivismo é, ao menos conceitualmente, monista. Mesmo o positivismo inclusivo não abandona o monismo ao conceder um espaço fático à moralidade. A teoria permanece monista uma vez que a convergência entre normas morais e jurídicas se dá tão somente no âmbito empírico. Assim, afirmar-se que certas regras primárias, reconhecíveis positivamente, podem receber seu fundamento de validade da correção moral, ao nível de sua interpretação, é ainda muito diferente de afirmar que tais normas valem por sua correção moral. Se no primeiro caso, temos somente uma versão enfraquecida do próprio positivismo, no segundo dificilmente se reconheceria uma tese positivista.

De fato, devido ao núcleo epistemológico da confrontação (monismo versus dualismo) não parece possível uma plena síntese entre as duas doutrinas, havendo de se considerar os compromissos das versões recentes como demonstração da insuficiência de ambas em vista da satisfatória teorização do fenômeno jurídico. Há de se reconhecer que tanto o naturalismo na versão relativista quanto o positivismo na versão inclusiva só podem se aproximar porque constituem versões enfraquecidas das teses centrais de cada doutrina.

De acordo com Massini Correas (1994, p. 207-208), a confrontação entre jusnaturalismo e juspositivismo constitui, do ponto de vista lógico, uma oposição de contradição, o que implica dizer que se uma é falsa a outra é verdadeira e vice-versa. De fato, o núcleo da polêmica (monismo X dualismo) não pode ser contornado, nem esta apto a ensejar uma síntese. Donde se conclui, logicamente, que a superação da polêmica só pode dar-se pela aceitação de uma das teses fundamentais e recusa da outra, ou, em outras palavras: ou se admite a existência de princípios metapositivos para além da normatividade efetiva ou nega-se os mesmos. Segundo o princípio lógico do tertium non datur, não pode haver uma terceira alternativa. Deste modo, fundada a polêmica sobre uma contradição lógica, sua superação não pode se dar por uma síntese ao modo dialético, mas pela eleição de uma nova doutrina fundada quer no monismo quer no dualismo.


5. Considerações Finais



Que resposta haveremos de dar a questão fundamental com a qual nos ocupamos no presente trabalho, a saber, como superar a polêmica entre jusnaturalismo e juspositivismo? Concluímos que a oposição entre tais doutrinas é de contradição, de modo a que inevitavelmente deve-se fazer uma escolha entre o monismo defendido pelos positivistas e o dualismo defendido pelos naturalistas.

Ao nosso ver, o monismo se mostra intrinsecamente deficitário frente aos desafios estabelecidos para a ciência do direito ao longo do século XX. Por mais que o positivismo inclusivo esclareça a coincidência entre certas normas jurídicas e normas morais,tal coincidência factual é insuficiente do ponto de vista teórico uma vez que deixa intacto o fundamento da tese positivista da derivação dos fatos sociais.

Entretanto, é precisamente o fato de que o positivismo em qualquer de suas versões, não assegure que a ordem jurídica possa ser agenciada por regimes de tirania, voltados contra os indivíduos que mais dificuldade traz à aceitação atual dessa doutrina. De fato, exige-se, frente as catástrofes do século XX, que a ordem jurídica se coordene com a dignidade da pessoa humana e não possa ser voltada contra ela.

Desse modo, no atual contexto do debate acadêmico e das perspectivas políticas, a aceitação, em princípio, do dualismo naturalista nos parece inevitável. Isso porque, à medida que os chamados direitos humanos ganham grande espaço na discussão jurídica e moldam a formação dos ordenamentos jurídicos, é necessário reconhecer em tal doutrina o antigo anseio jusnaturalista por um direito justo. O que no caso atual se converte no anseio por um ordenamento jurídico que se acomode às garantias de preservação da dignidade humana.



REFERENCIAS 

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone editora, 1996.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.54.

CASTRO, Auto de. A ideologia jusnaturalista: dos estóicos à O.N.U. Salvador: S. A. 

LIMA JÚNIOR, Jayme Benvenuto. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia do direito natural. Salvador: Progresso, 1957.

MASSINI CORREAS, Carlos Ignacio. Los derechos humanos en el pensamiento actual. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994.

______. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994.

NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1995, 4. ed, p. 131




[1] Cf. Machado Neto , 1987, pp. 339-342

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Como anda o movimento pelo voto distrital?

Como o leitor já deve ter reparado, este blog apoia o movimento Eu Voto Distrital. Mas como anda o movimento? Ao fim do ano passado, os responsáveis divulgaram a seguinte nota:

"Olá apoiadores do #EuVotoDistrital,
Gostaríamos de agradecer o apoio de todos vocês neste ano de 2011! Foi muito especial para todos nós. Nele, iniciamos essa incrível jornada para mudar a política brasileira e construir um país melhor.  Esperávamos cumprir com nossa missão em 2011, mas os desafios foram maiores e por isso a luta pelo voto distrital continua em 2012.

Somos quatro jovens engajados nessa mudança e investimos grande parte do nosso tempo em 2011 para fazer esse sonho acontecer. Demos o nosso melhor em cada momento e queremos em 2012 agir de forma mais profissional ainda. Mas nós só iniciamos isso. Vocês foram os responsáveis em tornar o movimento do tamanho que ele é hoje.

RETROSPECTIVA

Em março o movimento começou a ganhar corpo quando lançamos o site e com o boca à boca das redes sociais na Web. Ao longo de 2011 nos tornamos protagonistas no debate sobre reforma política. Aos poucos, conseguimos alcançar os maiores meios de comunicação do país – sites, jornais e até até mesmo capa de revista.

Diversas ações foram realizadas visando educar a população sobre voto distrital e reforma eleitoral e assim conseguimos mais de 120 mil apoiadores/assinaturas. Pode não parecer muito, comparado a outros movimentos que surgiram na Internet, mas a nossa causa precisa mais do que um clique, ela precisa da interação entre as pessoas sobre um tema não muito presente em nosso cotidiano: uma proposta clara de reforma política.

Nós buscamos uma mudança estrutural em como se faz política no país, e para isso precisaremos que VOCÊ faça uma mudança na maneira como interage politicamente com as pessoas. São tarefas desafiadoras? São! Para todos nós. E é ultrapassando esses obstáculos que faremos uma política melhor se transformar em realidade.

Nossa comunidade entendeu que o movimento pertence a todos. Cada um pode agir e contribuir para o crescimento desta história. E isto de fato aconteceu. Mobilizadores captaram recursos para fazer eventos, se juntaram para coletar assinaturas, fizeram entrevistas e palestras. Em 2012, trabalharemos para que você tenha mais ferramentas e informação para participar muito mais.

PLANOS PARA 2012

Neste final de ano, chegamos a conclusão que é fundamental profissionalizar mais nossas atividades para obter um maior resultado. Em janeiro, buscaremos a sustentabilidade financeira da parte central do movimento para mantermos o site, conteudos, contato com os embaixadores e com a imprensa, materiais, articulação de redes entre outras coisas que demandarem maior tempo e esforço. Precisaremos de sua contribuição ao longo de todo o processo e contamos com a ajuda de cada um de vocês.

No ano que vem acontecem as Eleições Municipais e o sistema eleitoral ficará mais em evidência do que ficou neste ano. Será uma excelente oportunidade para o movimento se destacar e ganhar novos apoiadores! Estamos elaborando estratégias e ações para atuar com mais força. Você poderá participar nesse processo, no início do ano, interagindo nas comunidades do Facebook ou no blog e compartilhando suas habilidades, contatos, recursos, conhecimentos com foco direto nas ações das eleições. Aguarde.

Nosso grande objetivo é a aprovação do voto distrital. Os políticos só votarão nesse tema se a sociedade se mostrar organizada e mobilizada! Não há saída! A responsabilidade é de cada um de nós! A sua capacidade de mover a si mesmo e sua comunidade determinará o sucesso do #EuVotoDistrital.

Mais uma vez, agradecemos a cada um de vocês por ter colocado esse movimento de pé. A nossa carta é mais que uma carta de conclusão de ciclo, é também um enorme: PARABÉNS! Sem cada um que compõe essa rede, não teríamos chegado aqui.

Contamos com vocês em 2012!
Vamos que vamos!

Beatriz, Emygdio, Pablo e Vinicius."

***
Bem, é esperar pra ver. Espero que os organizadores do movimento consigam estruturar uma estratégia de médio prazo, já que a resposta pública a curto prazo parece ter ficado aquém do desejado. Isso não é surpreendende, com todas as grandes forças políticas contra a proposta será preciso muito esforço para colocar a idéia na pauta de uma reforma eleitoral - a própria reforma eleitoral (chamada equivocadamente "reforma política") já parece ter dado sinais de que não será seriamente discutida tão cedo.

Continuamos apoiando a proposta e divulgando essa ideia.