sexta-feira, 22 de março de 2013

Nós não precisamos disso: Comissão de Direitos Humanos!

O dito cujo pastor Feliciano
Muito se tem dito sobre o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Todo um alvoroço está sendo feito para que o sujeito, que é pastor evangélico, renuncie ao cargo. Dizem que suas opiniões sobre negros, homossexuais, enfim, as minorias, são incompatíveis com o cargo. 

Nessa percepção, há uma ideia implícita bastante interessante: de que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias existe para favorecer as minorias. 

Isso significa, de fato, que, não bastasse o lobby das organizações feministas, de homossexuais, negros, indígenas, etc., atuando no Parlamento, o próprio Parlamento institucionalizou esse lobby de tal modo que os integrantes dessa Comissão, e mais ainda seu presidente, não devem ter somente o interesse em discutir projetos relacionados às chamadas minorias sociais, mas deve ter, a priori, uma posição favorável a todo e qualquer privilégio que essas organizações queiram alcançar às custas do restante da sociedade. De preferência, essa comissão deveria, na visão dessas organizações obscuras, ser integrada exclusivamente por representantes das mesmas e não por representantes do povo brasileiro. 

Isso nos leva a uma segunda questão. Os cartazes do tipo "sou isso ou aquilo e Feliciano não me representa". Isso mostra perfeitamente que a noção de "representação política" presente na atual Constituição nunca foi entendida ou aceita pelas pessoas; que, em geral, o brasileiro não entende o sistema da democracia representativa, pois nesse sistema o mandato concedido aos parlamentares não vincula a opinião desses aos dos seus eleitores e, menos ainda, à "opinião pública".

O que nos faz voltar ao problema do lobby das minorias e sua necessária incoerência: se alegam que o tal pastor não possui legitimidade política porque contraria a opinião das pessoas, o que dizer dos deputados gay, feministas ou racialistas, cujas posições contrariam a opinião de quase a totalidade dos brasileiros?

O que distingue um lobby de um movimento político é justamente isso: o lobby fará de tudo para fazer prevalecer sua posição, mesmo que isso signifique contestar a própria natureza do sistema político; ele não precisa ser coerente ou racional: para ele o querer, o poder e o dever são uma única e mesma coisas. Daí a preocupante situação do nosso Parlamento.

A pergunta relevante a ser feita seria: Nós precisamos de uma Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara?

Não, nós não precisamos disso!

PS: O Instituto Ludwig von Mises Brasil publicou hoje um artigo muito interessante de Thomas Sowell sobre   o discurso racialistas das elites intelectuais, mas que se aplica a todas as chamadas minorias sociais. Vale a penas conferir uma abordagem séria e sóbria dessas questões, pra variar um pouco. 

Shostak - O que há de errado com a econometria?


Nas ciências naturais, um experimento de laboratório pode isolar vários elementos e seus movimentos. Não há algo equivalente na disciplina de economia. O emprego da econometria e da modelagem econométrica é uma tentativa de reproduzir um laboratório onde experimentos controlados podem ser conduzidos.

A ideia de ter tal laboratório tem muito apelo para economistas e políticos. Uma vez que o modelo é construído e endossado como uma boa réplica da economia, políticos podem avaliar os resultados de várias políticas. Isso, eles argumentam, aumenta a eficácia de políticas governamentais e, portanto, leva a uma economia melhor e mais próspera. Também se sugere que o modelo pode servir como um árbitro para avaliar a validade de várias idéias econômicas. O outro propósito do modelo é o de prover uma indicação a respeito do futuro.

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Apesar da aura de importância e misteriosa sabedoria que a modelagem econométrica projeta, ela é, não obstante, um recipiente oco. O procedimento de modelagem econométrica emprega uma metodologia insustentável: ele tenta capturar o comportamento humano fazendo uso de métodos matemáticos e estatísticos.

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quinta-feira, 21 de março de 2013

Montaigne - Dos Canibais


Quando o Rei Pirro entrou na Itália, e verificou a formação de combate do exército romano, disse: “Não sei que espécie de bárbaros são estes (pois os gregos assim chamavam a todas as nações estrangeiras), mas a formação de combate, que os vejo realizar, nada tem de bárbaro”. A mesma coisa diziam os gregos do exército que a seu país Flamínio conduziu. E Filipe assim falou igualmente, ao perceber do alto de um outeiro a bela ordenação do acampamento daquele que, sob Públio Sulpício Galba, acabava de entrar em seu reino. Isso mostra a que ponto devemos desconfiar da opinião pública. Nossa razão, e não o que dizem, deve influir em nosso julgamento.

Durante muito tempo tive a meu lado um homem que permanecera dez ou doze anos nessa parte do Novo Mundo descoberto neste século, no lugar em que tomou pé Villegaignon e a que deu o nome de “França Antártica”. Essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e presta-se a sérias reflexões. Tantos personagens eminentes se enganaram acerca desse descobrimento que não saberei dizer se o futuro nos reserva outros de igual importância. Seja como for, receio que tenhamos os olhos maiores do que a barriga, mais curiosidade do que meios de ação. Tudo abraçamos mas não apertamos senão vento.

Platão mostra-nos Sólon afirmando ter ouvido dos Sacerdotes de Saís, no Egito, que antes do dilúvio existia em frente de Gibraltar uma grande ilha chamada Atlântica, mais extensa do que a África e a Ásia reunidas e que os reis dessa região não possuíam apenas a ilha mas exerciam igualmente sua autoridade tão longe, em terra firme, que ocupavam a África até o Egito e a Europa até a Toscana. Que haviam empreendido ir até a Ásia e subjugar as nações do Mediterrâneo até o golfo formado pelo mar Negro; que para tanto haviam atravessado a Espanha, a Gália, a Itália e chegado à Grécia onde os atenienses sustaram a arremetida; que algum tempo depois sobreviera o dilúvio que os afogara juntamente com os atenienses e sua ilha.

É muito provável que nesse cataclismo horrível as águas tenham provocado modificações inimagináveis em todos os países habitados da terra. Assim é que se atribui à ação das águas do mar a separação da Sicília com a Itália: “Dizem que essas regiões, outrora um só continente, foram violentamente separadas pela força das águas”; e a da ilha de Chipre com a Síria e a da de Negro ponto com a terra firme da  Beócia. Em compensação, alhures, o mar teria juntado terras separadas por estreitos queforam aterrados por limo e areia: “um pantanal há muito estéril, e que percorriam a remo, alimenta hoje as cidades vizinhas e conhece o arado fecundo do lavrador”

Não há muitos indícios entretanto de que seja a Atlântida o Novo Mundo que acabamos de descobrir, pois quase tocava a Espanha e seria efeito incrível da inundação tê-la transportado à distância, em que se encontra, de mais de mil e duzentas léguas. Ademais os navegadores modernos já verificaram não tratar-se de uma ilha, mas de um continente contíguo às Índias Orientais, por um lado, e por outro às terras dos pólos; e se destes se acha separada é por tão pequeno estreito que não se deve tampouco considerá-la uma ilha.

Creio que ocorreram nessas grandes massas movimentos semelhantes aos que se constatam em nossas regiões, naturais uns, acidentais e violentos outros. Quando observo a ação exercida pelo rio Dordonha, no decurso de minha existência, abaixo de casa, na margem direita; quando vejo quanto em vinte anos conquistou de terras, e o que solapou de alicerces das construções erguidas à sua margem, concluo que não se trata deum fato normal. Se, com efeito, assim tivesse sido sempre, ou que isso devessecontinuar, a configuração do mundo acabaria por mudar. Mas esses movimentos nãosão constantes: ora as águas se expandem por um lado, ora por outro; e ora param. Não falo aqui das cheias súbitas cujas causas conhecemos. Na região de Médoc, junto ao mar, tem meu irmão, Sr. De Arzac, uma de suas terras enterradas sob as areias que o mar lhe vai jogando em cima. Os telhados de algumas habitações se vêem ainda e essa  propriedade e suas culturas transformando-se em bem magras pastagens. Dizem os habitantes que de uns tempos para cá avança o mar tão rapidamente que já perderam quatro léguas de terras. Essas areias são seus arautos; como uma espécie de dunas movediças precedem-no de cerca de meia légua e conquistam insensivelmente a região.

Outro testemunho da antiguidade, que se quer aplicar a esse descobrimento, se encontraria em Aristóteles, se for de sua autoria a obra intitulada “Maravilhas Extraordinárias”. Nela se conta que alguns cartagineses, tendo-se aventurado pelo Atlântico afora, além do estreito de Gibraltar, teriam acabado, após uma longa navegação, por descobrir uma grande ilha fértil, coberta de bosques, regada por grandes e profundos rios, e muito afastada da terra firme. E que atraídos, eles e outros mais tarde, pela qualidade e fertilidade do solo, para ali teriam transportado suas mulheres e filhos, nela se fixando. De tal amplitude se revestira essa migração que as autoridades de Cartago teriam proibido expressamente e sob pena de morte que emigrassem quaisquer outros. E teriam expulso da ilha os que ali já residiam, com receio de que se multiplicassem a ponto de suplantar e arruinar o domínio da metrópole. Esta narrativa de Aristóteles, tal qual a de Sólon, não deve referir-se às nossas novas terras.

O homem que tinha a meu serviço, e que voltava do Novo Mundo, era simples e grosseiro de espírito, o que dá mais valor a seu testemunho. As pessoas dotadas de finura observam melhor e com mais cuidado as coisas, mas comentam o que vêem e, afim de valorizar sua interpretação e persuadir, não podem deixar de alterar um pouco a verdade. Nunca relatam pura e simplesmente o que viram, e para dar crédito à sua maneira de apreciar, deformam e ampliam os fatos. A informação objetiva nós a temos das pessoas muito escrupulosas ou muito simples, que não tenham imaginação para inventar e justificar suas invenções e igualmente que não sejam sectárias. Assim era o meu informante, o qual, ademais, me apresentou marinheiros e comerciantes que conhecera na viagem, o que me induz a acreditar em suas informações sem me preocupar demasiado com a opinião dos cosmógrafos. Fora preciso encontrar topógrafos que nos falassem em particular dos lugares por onde andaram. Mas, porque levam sobre nós a vantagem de ter visto a Palestina, reivindicam o privilégio de contar oque se passa no resto do mundo. Gostaria que cada qual escrevesse o que sabe e sem ultrapassar os limites de seus conhecimentos; e isso não só na matéria em apreço mas em todas as matérias. Há quem tenha algum conhecimento especial ou experiência do curso de um riacho, sem saber de resto mais do que qualquer um, e no entanto para valorizar sua pitada de erudição atira-se à tarefa de escrever um tratado acerca da configuração do mundo. Este defeito muito comum acarreta graves inconvenientes.

Mas, voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto. As qualidades e propriedades dos primeiros são vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido. Entretanto, em certas espécies de frutos dessas regiões, achamos um sabor e uma delicadeza sem par e que os torna dignos de rivalizar com os nossos. Não há razão para que a arte sobrepuje em suas obras a natureza, nossa grande e poderosa mãe. Sobrecarregamos de tal modo a beleza e riqueza de seus produtos com as nossas invenções, que a abafamos completamente. Mar, onde permaneceu intata e se mostra como é realmente, ela ridiculariza nossos vãos e frívolos empreendimentos: “a hera cresce ainda melhor sem cuidados; o medronheiro nunca se apresenta tão belo como nos antros solitários e o canto dos pássaros é assim tão suave porque natural”. Nem apelando para todas as nossas forças e os nossos talentos seríamos capazes de reproduzir o ninho do pássaro mais insignificantes, com sua contextura o sua beleza, nem de o tornar adequado ao uso a que se destina; e não saberíamos tampouco tecer a teia de uma mirrada aranha. Todas as coisas, disse Platão, produzem-nas a natureza ou o acaso, ou a arte. As mais belas e grandes são frutos das duas primeiras causas; as menores e mais imperfeitas, da última.

Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las. Lamento que Licurgo e Platão não tenham ouvido falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses povos, não somente ultrapassa as magníficas descrições que nos deu a poesia da idade de ouro, e tudo o que imaginou como suscetível de realizar a felicidade perfeita sobre a terra, mas também as concepções e aspirações da filosofia. Ninguém concebeu jamais uma simplicidade natural elevada a tal grau, nem ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade subsistir com tão poucos artifícios. É um país, diria eu a Platão, onde não há comércio de qualquer natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão, partilhas aí são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; o vestuário, a agricultura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho nem trigo; as próprias palavras que exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia, o perdão, só excepcionalmente se ouvem. Quanto a República que imaginava lhe parecia longe de tamanha perfeição! “São homens que saem das mãos dos deuses”. “Como essas, foram as primeiras leis da natureza”.

A região em que esses povos habitam é de resto muito agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo minhas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo. Afirmaram mesmo nunca terem visto algum epiléptico,8 remeloso, desdentado ou curvado pela idade. A região estende-se à beira-mar e é limitada do lado da terra por platôs e altas montanhas, a cerca de cem léguas, o que representa a profundidade de seus territórios. Têm peixe e carne em abundância, e de excelente qualidade, contentando-se com os grelhar para os comer. O primeiro indivíduo que viram a cavalo inspirou-lhes tal pavor que embora já houvesse estado com ele de outras feitas, o mataram a flechadas e só então o reconheceram. Suas residências constituem-se de barracões com capacidade para duzentas a trezentas pessoas, e são edificadas com troncos e galhos de grandes árvores enfiados no solo e se apoiando uns nos outros na cumeada, à semelhança de certos celeiros nossos cujos tetos descem até o chão fechando os lados. Possuem madeiras tão duras que com elas fabricam espadas e espetos para grelhar os alimentos. Seus leitos, formados de cordinhas de algodão, suspendem-se ao teto, como nos nossos navios. Cada qual tem o seu, dormindo as mulheres separadas dos maridos. Levantam se com o sol e logo merendam, não fazendo outra refeição durante o resto de dia. Não bebem ao se alimentarem, agindo nesse ponto, segundo Suidas, como outros povos. Fora das refeições, bebem quanto e quando querem. Sua bebida extrai-se de certa raiz; tem a cor de nossos claretes e só a tomam morna. Conserva-se apenas dois ou três dias, com um gosto algo picante, sem espuma. É digestiva e laxativa para os que não estão acostumados e muito agradável para quem se habitua a ela. Em lugar de pão, comem uma substância branca parecida com o coentro cozido. Experimentei, é doce e algo insosso. Passam o dia a dançar; os jovens vão à caça de animais grandes contra os quais empregam o arco unicamente. Enquanto isso, uma parte das mulheres diverte-se com preparar a bebida, o que constitui sua principal ocupação.

Todas as manhãs, antes que iniciem a refeição, um ancião percorre o barracão, que tem bem cem passos de comprimento, e prega aos ocupantes sem cessar as mesmas coisas: valentia diante do inimigo e amizade a suas mulheres. E nunca esquecem, ao fazer esta última recomendação, de lhes lembrar que são elas que fabricam a bebida e a conservam morna. Podem ver-se em muitos lugares, em particular em minha casa, esses leitos, cordas, espadas, pulseiras de madeira que lhes protegem o pulso no combate, e longos caniços furados de um lado que tocam para ritmar suas danças. Cortam os pêlos todos e se escanhoam melhor do que nós, usando apenas navalhas de madeira ou pedra. Acreditam na imortalidade da alma. As que mereceram aprovação dos deuses alojam-se no céu do lado do nascente; as amaldiçoadas do lado do poente.

Têm não sei que tipos de sacerdotes ou profetas que aparecem raramente e moram nas montanhas. Quando surgem, há grandes festas e realiza-se uma assembléia solene a que se apresentam todas as aldeias. Cada uma das habitações a que me referi forma uma aldeia10 e distam uma da outra cerca de uma légua de França. O profeta fala-lhes em público, exortando-os à virtude, e ao dever. Sua moral resume-se em dois pontos: valentia na guerra e afeição por suas mulheres. Prediz também o futuro e o que devem esperar de seus empreendimentos, incitando à guerra ou a desaconselhando. Mas importa que diga certo, pois do contrário, se o pegam, é condenado como falso profeta e esquartejado. Por isso não se revê jamais quem uma vez errou. Adivinhar é dom de Deus, enganar é uma impostura merecedora de castigo. Entre os citas, por exemplo, quando os adivinhos se enganavam em suas previsões, jogavam-nos, pés e mãos algemados, dentro de um carro de boi cheio de gravetos a que deitavam fogo. Os que têm a seu cargo dirigir os fatos cometidos à sagacidade humana, são desculpáveis se recorrerem a todos os meios a seu alcance. Mas não devem ser punidos os outros, pela sua impostura, os que nos iludem apresentando-se como donos de uma faculdade extraordinária e fora do nosso conhecimento?

Esses povos guerreiam os que se encontram além das montanhas, na terra firme. Fazem-no inteiramente nus, tendo como armas apenas seus arcos e suas espadas de madeira, pontiagudas como as nossas lanças. E é admirável a resolução com que agem nesses combates que sempre terminam com efusão de sangue e mortes, pois ignoram a fuga e o medo. Como troféu, traz cada qual a cabeça do inimigo trucidado, a qual penduram à entrada de suas residências. Quanto aos prisioneiros, guardam-nos durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo de que precisam até o dia em que resolvem acabar com eles. Aquele a quem pertence o prisioneiro convoca todos os seus amigos. No momento propício, amarra a um dos braços da vítima uma corda cuja outra extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço que fica entregue a seu melhor amigo, de modo a manter o condenado afastado de alguns passos e incapaz de reação. Isso feito, ambos o moem de bordoadas às vistas da assistência, assando-os em seguida, comendo-o e presenteando os amigos ausentes com pedaços da vítima. Não o fazem entretanto para se alimentarem, como o faziam os antigos citas, mas sim em sinal de vingança, e a prova está em que, tendo visto os portugueses, aliados de seus inimigos, empregarem para com eles, quando os aprisionavam, outro gênero de morte, que consistia em enterrá-los até a cintura, crivando de flechas a parte fora da terra e enforcando-os depois, imaginaram que essa gente da mesma origem daqueles seus vizinhos que haviam espalhado o conhecimento de tantos vícios, que essa gente, muito superior a eles no mal, não devia ter escolhido sem razão um tal processo de vingança, o qual por isso adotaram, porque o acreditavam mais cruel, e abandonaram seu sistema tradicional.

Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado.

Crisipo e Zenão, chefes da escola estóica, admitiam não haver mal em tirar partido de nossos cadáveres se necessário, nem mesmo em nos alimentarmos deles como o fizeram nossos antepassados que, assediados por César em Alésia, resolveram, a fim de prosseguir resistindo, matar a fome comendo os velhos, as mulheres e todos os que não fossem úteis ao combate: “dizem que os gascões prolongaram a vida valendo-se de semelhantes alimentos”. E os médicos não temem empregá-los em toda espécie de usos internos e externos em benefício de nossa saúde. Mas não se ouviu jamais ninguém que tivesse o julgamento moral assaz pervertido para desculpar a traição, a deslealdade, a tirania, a crueldade, nossos defeitos habituais. Podemos portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades.

Fazem a guerra de um modo nobre e generoso e ela é neles desculpável e bela na medida em que pode ser desculpável e bela essa doença da humanidade, pois não tem entre eles outra causa senão a da inveja da virtude. Não entram em conflito a fim de conquistar novos territórios, porquanto gozam ainda de uma uberdade natural que sem trabalhos nem fadigas lhes fornece tudo de que necessitam e em tal abundância que não um teriam motivo para desejar ampliar suas terras. Têm ademais a felicidade de limitar seus desejos ao que exige a satisfação de suas necessidades naturais, tudo o que as excede lhes parecendo supérfluo. Tratam-se mutuamente por irmãos quando são da mesma idade, e aos mais jovens chamam filhos; e pais aos velhos, indistintamente. Quando morrem estes, passam os seus bens aos herdeiros naturais; as heranças não são divididas, conservando todos os participantes a posse do todo, sem outro título que o que lhes dá a natureza ao criá-los. Se os povos vizinhos descem das montanhas para os atacar e são vitoriosos, o beneficio de sua vitória consiste unicamente na glória que auferem dela e na vantagem de se terem mostrado superiores em valentia e coragem, pois não saberiam que fazer dos bens dos vencidos. Voltam para suas terras onde nada lhes falta e onde podem gozar a felicidade de saber contentar-se com sua condição. Se são vencidos, seus inimigos procedem de igual maneira. Aos prisioneiros não se exige senão que se confessem vencidos. Mas não se encontra um só, em um século, que não
prefira a morte a assumir uma atitude ou a proferir uma palavra suscetíveis de desmentirem uma coragem que timbram em ostentar acima de tudo. Não se vê nenhum que não prefira ser matado e comido a pedir mercê. Dão-lhes inteira liberdade, a fim de que a vida lhes seja mais cara, e não cessam de entretê-los acerca da morte que os espera brevemente, das torturas que experimentarão, dos preparativos para o suplício, de seus membros decepados e do festim que farão com eles. Tudo isso no intuito de lhes arrancar alguma palavra de queixa ou fraqueza, ou de os levar à fuga, com o que mostram tê-los apavorado e triunfado de sua firmeza de ânimo. Nisso, em verdade, e só nisso consiste a vitória: “A vitória verdadeira é a que constrange o inimigo a confessar-se vencido.”

Os húngaros, que são muito belicosos, não prosseguiam na guerra senão até que o inimigo se rendesse; logo que se confessava vencido, deixavam-no ir sem o molestar, nem exigir resgate. Apenas queriam que prometesse não mais pegar em armas contra eles. Quando vencemos nossos inimigos, devemo-lo antes a vantagens ocasionais e não a nosso mérito exclusivo. Ter braços e pernas sólidos é apanágio do carregador e não da virtude; independente de nós, e é coisa toda física, ter boa saúde. E é golpe de sorte abalar o inimigo ou conseguir com que tenha o sol nos olhos e se ofusque. E é tãosomente prova de habilidade e treino, que pode oferecer igualmente um covarde ou um plebeu, saber manejar o florete. O valor de um homem, e a estima que nos inspira, medem-se pelo seu caráter e força de vontade. A valentia não decorre do vigor físico e sim da firmeza de ânimo e da coragem; não consiste na superioridade de nossa montaria e de nossas armas, mas na nossa. Quem sucumbe sem que sua coragem se abata; “quem, se cai, combate de joelho”; quem, apesar das ameaças de morte não perde sua altivez; quem, agonizante, permanece impassível e com o olhar desafia ainda o inimigo, não é por nós abatido e sim pelo destino. Morre mas sem ser vencido. Os mais valentes são por vezes os mais infelizes, o que faz com que haja derrotas mais gloriosas do que as vitórias. As quatro brilhantes vitórias de Salamina, Platéia, Mícale e Sicília, as mais belas que testemunhou o sol, serão mais gloriosas do que a que Conquistou o Rei Leônidas nas Termópilas? Quem jamais preparou a vitória com mais cuidado da glória e mais ardente desejo de vencer, do que Ischolas sua derrota? Quem preparou a sua salvação mais engenhosa e estranhamente do que ele a sua perda? Fora encarregado de
defender uma passagem do Peloponeso contra os árcades. Compreendendo que os não poderia rechaçar, em virtude da topografia local e da inferioridade numérica de suas forças; certo de que tudo o que se opusesse ao inimigo seria destruído; julgando por outro lado indigno de sua própria coragem e de sua grandeza de alma, tanto quanto de um lacedemônio, faltar ao dever, entre duas resoluções extremas escolheu uma que as conciliasse: dispensou os mais jovens e vigorosos da tropa, a fim de os conservar para a defesa do país, e, com os que menos falta deviam fazer, resolveu defender a passagem entregue a sua guarda, cobrando com a morte dos defensores o mais caro possível a vitória do inimigo. Foi o que aconteceu: logo cercados de todos os lados pelos árcades, Ischolas e os seus sucumbiram e foram levados ao fio de espada após verdadeira carnificina. Que troféu assinalado aos vencedores não fora antes devido a vencidos dessa ordem? A verdadeira vitória reside na maneira por que combatemos e não no resultado final. E não consiste a honra em vencer mas em combater.

Voltemos à nossa história. Com tudo isso que lhes fazem, não conseguem nem de longe que os prisioneiros cedam; ao contrário, durante os dois ou três meses que permanecem presos, afetam alegria e incitam seus senhores a se apressarem em submetê-los às provações com que os ameaçam. Desafiam-nos e os injuriam, censurando-lhes a covardia e lhes recordando os combates que perdera em outras ocasiões. Tenho em meu poder o canto de um desses prisioneiros. Eis o que diz: “Que se aproximem todos com coragem e se juntem para comê-lo; em o fazendo comerão seus pais e seus avós que já serviram de alimento a ele próprio e deles seu corpo se constituiu. Estes músculos, esta carne, estas veias, diz-lhes, são vossas, pobres loucos. Não reconheceis a substância dos membros de vossos antepassados que no entanto ainda se encontram em mim? Saboreai-os atentamente, sentireis o gosto de vossa própria carne.” Haverá algo bárbaro nesta composição? Os que lhes descrevem os suplícios e os representam no momento em que são esbordoados, pintam-nos cuspindo no rosto dos que os trucidam em meio a caretas. E, com efeito, até exalarem o último suspiro, não param de desafiar os inimigos tanto pelas atitudes como pelos propósitos. Por certo, em relação a nós são realmente selvagens, pois entre suas maneiras e as nossas há tão grande diferença que ou o são ou o somos nós.

Os homens têm várias mulheres, em tanto maior número quanto mais famosos e valentes. Particularidade que não carece de beleza, nesses lares o ciúme, que entre nós impele nossas esposas a impedir que busquemos a amizade e as boas graças de outras mulheres, entre eles as induz a arranjarem outras para seus maridos. A honra deste primando entre todas as demais considerações, põem elas todo o cuidado em ter o maior número possível de companheiras, pois esse número comprova a coragem do esposo. Entre nós falariam de milagre. Não se trata disso e sim da virtude matrimonial elevada ao máximo. Não nos mostra a Bíblia, Sara e as mulheres de Jacó, Lia e Raquel, pondo suas serventes à disposição de seus maridos? Não auxiliou Lívia, contra seu interesse, a satisfação dos desejos de Augusto? E Estratonice, mulher de Dejótaro, não somente emprestou ao marido uma de suas mais belas serventes, para que a usasse como entendesse, mas ainda educou os filhos da concubina e os ajudou a suceder ao pai. E não se imagine que se trate da observação servil de um costume, imposta pela autoridade dos costumes tradicionais, e que se aplique sem maior discussão, porquanto são os selvagens demasiado estúpidos para se rebelarem. Eis alguns traços que demonstram o contrário. Transcrevi aqui um de seus cantos guerreiros: pois tenho também uma canção de amor: “Serpente, pára; pára, serpente, a fim de que minha irmã copie as cores com que te enfeitas; a fim de que eu faça um colar para dar à minha amante; que tua beleza e tua elegância sejam sempre preferidas entre as das demais serpentes.” É a primeira estrofe e o estribilho da canção; ora, eu conheço bastante a poesia para julgar que este produto de sua imaginação nada tem de bárbaro, antes me parece de espírito anacreôntico. Aliás a língua que falam não carece de doçura. Os sons são agradáveis e as desinências das palavras aproximam-se das gregas.

Três dentre eles (e como lastimo que se tenham deixado tentar pela novidade e trocado seu clima suave pelo nosso!), ignorando quanto lhes custará de tranqüilidade e felicidade o conhecimento de nossos costumes corrompidos, e quão rápida será a sua perda, que suponho já iniciada, estiveram em Ruão quando ali se encontrava Carlos IX. Entreteve-se o rei com eles, longamente; mostraram-lhes como vivíamos no cotidiano; ofereceram-lhes grandes festas; ensinaram-lhes como era uma cidade grande. Alguém lhes havendo perguntado mais tarde o que pensavam da cidade e o que ela lhes tinha revelado, citaram três coisas. Esqueci a terceira, e o lamento, mas lembro-me das duas outras. Disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número de homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que se achavam junto do rei (provavelmente se referiam aos suíços da guarda) se sujeitassem em obedecer a uma criança e que fora mais natural se escolhessem um deles para o comando. Em segundo lugar observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam “metades”); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais.

Conversei longamente com um deles, mas meu intérprete compreendia tão mal e se mostrava tão embaraçado com as perguntas que, graças à sua estupidez, não pude obter algo mais sério de meu interlocutor. Tendo-lhe perguntado de onde provinha sua ascendência sobre os seus (era um chefe e nossos marinheiros o tratavam como rei), respondeu-me que tinha o privilégio de marchar à frente dos outros quando iam para a guerra. À minha pergunta: quantos homens o acompanhavam? mostrou um terreno como para dizer: o que cabia naquele espaço, cerca de cinco mil homens. Indaguei ainda se nas épocas de paz ele conversava alguma autoridade, e disse-me: “Quando visito as aldeias que dependem de mim, abrem-me caminhos no mato para que eu possa passar sem incômodo”. Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças!

terça-feira, 19 de março de 2013

Nós não precisamos disso!

Lendo a entrevista em que Jeorge Gerdau critica o assombro número de ministérios do Executivo federal, veio-me à lembrança o título da encíclica com que o Papa Pio (o XI, não o XII) condenou o fascismo: Non abbiamo bisogno (Nós não precisamos). Uma associação espontânea de ideias, por assim dizer. 

Mas, seria mesmo preciso? Seria mesmo preciso que um dos maiores empresários brasileiros viesse a público para afirmar o absurdo da estrutura do Executivo federal, do qual o próprio Gerdau é conselheiro? 

O Brasil tem hoje cerca de 39 ministérios. E digo "cerca" porque não é duvidoso que no momento que escrevo um novo ministério esteja sendo criado. Sei lá, o "Ministério dos direitos dos animais", o "Ministério dos ciclistas", o "Ministério dos pastores de esquerda"... as possibilidades são infinitas, como infinita é a estupidez humana, para lembrar um famigerado sábio.

O Brasil precisa de um Ministério da Micro-empresa? 

Mas, o Brasil precisava de uma Câmara de Políticas de Gestão?

E precisávamos esperar um membro do governo criticar a estupidez da governo? Onde está a oposição? Se é que há oposição; se é que ainda não chegamos ao estágio sonhado pelos petistas (e por muitos empresários) de um partido único. 

Não, nós não precisamos disso!

segunda-feira, 18 de março de 2013

Hülsmann - Explicando o verdadeiro significado do apriorismo

L.v.Mises
O ponto mais polêmico e controverso de toda a teoria econômica e filosófica desenvolvida por Ludwig von Mises é, sem dúvida, a sua afirmação de que existe uma teoria apriorística para a ação humana, isto é, que a ação humana pode ser explicada por um escopo de proposições desenvolvidas a priori, proposições que fornecem uma compreensão verdadeira sobre a realidade, e cuja veracidade pode ser confirmada independente de experimentos.

[...]


Quando Mises alegou que a ciência econômica era uma ciência apriorística, sua intenção não foi afirmar que não havia absolutamente nenhuma evidência empírica para as leis expressadas por esta ciência.  Mises de modo algum acreditava que a ciência econômica se baseava nas hipóteses fictícias criadas por uma comunidade de intelectuais acadêmicos e nem que o "apriorismo" significa a lealdade destes acadêmicos à sua fé comum.  Tampouco quis Mises dizer que a análise econômica dependia de algum arranjo arbitrário de hipóteses que não estava sujeito à verificação ou à falseabilidade, de modo que a ciência econômica seria "apriorística" no sentido de um mero trocadilho tautológico.

Immanuel Kant
Para Mises, a ciência econômica definitivamente é sobre fatos averiguáveis.  A questão, no entanto, é que tais fatos não podem ser conhecidos por meio da visão, da audição, do olfato ou do toque.  E proposições sobre estes fatos não podem, portanto, ser verificadas ou refutadas pela evidência dos sentidos.