segunda-feira, 28 de maio de 2012

Introdução ao pensamento de F.W. Nietzsche


Nota Biográfica

Friedrich Wilhem Nietzsche nasceu em Röchen, Alemanha, a 15 de Novembro de 1844. Estudou Letras Clássicas na Escola de Pforta e na Universidade de Lepzig. Aos vinte e quatro anos torna-se professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia e em 1870 participa da guerra Franco-Prussiana como enfermeiro. Por este tempo, torna-se amigo de Richard Wagner e escreve O Nascimento da Tragédia, seu primeiro livro. Devido a problemas de saúde, que o acompanhariam pelo resto da vida, e que o impossibilitavam de lecionar, recebe aposentadoria da Universidade em 1879 e daí segue uma vida errante em lugarejos da Suíça, França e Itália. Perde a razão no início de 1889 e é levado para um hospital psiquiátrico de Weimar onde vive até 1900, em estado de demência e progressiva paralisia.


Introdução


Desde a última década do século XIX, quando suas obras começaram a ser lidas e seu pensamento difundido, o nome de Nietzsche tem sido ligado às mais diversas correntes de pensamento filosófico, estético e político-ideológico. Partindo de uma primeira difusão na comunidade artística e literária, passando pela questionável apropriação pelo nacional-socialismo, o pensamento de Nietzsche chegou ao século XXI através de apropriações, comentários e influências sobre pensadores tão diversos como Freud, Heidegger, Wittgenstein e Foucault; e correntes de pensamento tão dispares quanto a psicanálise, a filosofia analítica e o existencialismo.
            O próprio caráter assistemático da obra de Nietzsche parece não ter permitido que ele formasse uma “escola” como a de Hegel, de modo que a repercussão de sua filosofia assumiu um caráter disperso e fragmentário, porém cada vez mais ostensivo. Suas diferentes fase e momentos tem se dispersado de modo diverso no pensamento contemporâneo, tornando difícil situar o que, naquilo que hoje pensamos, devemos a esse pensador. Daí a necessidade, para a maior parte dos comentadores, de situar o pensamento de Nietzsche em fases de acordo com os interesses e conceitos diversos que nele emergem. Assim, a periodização mais aceita da obra de Nietzsche é a seguinte:

1ª Fase (1869-1876): Inclui a obra inaugural O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo e as quadro Considerações Extemporâneas, além dos escritos particulares, anotações e projetos inacabados e nunca publicados.  “Temos a arte para não perecer pela verdade” – é a grande máxima desse momento do pensamento nietzscheano. Ao homem teórico e metafísico, Nietzsche opõe a potência criadora da arte; localiza na prevalência do socratismo a razão da decadência do ocidente e deposita no renascimento da arte trágica (que reconhecia na obra de Wagner) sua maior esperança.

2ª Fase (1876-1882): Em cujo escopo estão as obras Humano, Demasiado Humano, Aurora e A Gaia Ciência. Do mesmo modo que anterior, inclui também as anotações particulares do filósofo nesse período. Por este tempo, afasta-se de Richard Wagner e da filosofia pessimista de Schopenhauer. As questões que mais lhe parecem ocupar são as da ciência ao ponto de os comentadores por vezes se referirem a esta fase como de cunho “positivista”. É nessa fase também que a reflexão de Nietzsche começa a se direcionar para o âmbito da moral. Nietzsche agora acredita que a atividade científica poderia ser o principal instrumento para desembaraçar o homem moderno dos padrões religiosos e metafísicos.

3ª Fase (1882-1889): Considerada a fase do pensamento maduro do filósofo e para alguns como Heidegger, a única que apresenta um desenvolvimento filosófico realmente consistente, a terceira e última fase do pensamento de Nietzsche se inaugura com Assim falou Zaratustra, seguido por Para-além do Bem e do Mal, Para a Genealogia da Moral, O caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, Nietzsche contra Wagner, O Anticristo e Ditirambos de Dionísio – acrescidos de vasta produção privada. Quanto aos fragmentos póstumos desse período é digna de nota a publicação no início do século XX de uma compilação dos mesmos com o título A Vontade de Poder, realizada sob os auspícios de sua irmã. A obra hoje se encontra desacreditada, mas exerceu vasta influência sobre a compreensão do pensamento nietzscheano no século XX, vindo a ser utilizada mesmo por Gilles Deleuze, embora tivesse esse filósofo acesso aos “Arquivos Nietzsche” de Weimar. De todo modo, os fragmentos póstumos correspondentes continuam a ser, para os estudiosos, uma dos melhores recursos para lançar luz sobre os textos publicados, geralmente escritos em linguagem mais estilizada.

A seguir apresentamos um resumo dos principais temas e conceitos da filosofia de Nietzsche, tendo como referência principal os escritos de maturidade.


A morte de Deus

A questão do sagrado esteve presente na reflexão nietzscheana desde O Nascimento da Tragédia, mas é com o anúncio da “morte de Deus”, que o filósofo consegue condensar seu diagnóstico da cultura e do homem moderno, do cristianismo, da metafísica e da moral num único e mesmo momento de crise. Pois, de fato, a morte de Deus representa a crise que constitui o fundamento da modernidade e a conduz ao impasse da ausência dos fundamentos. “Fim da metafísica”, descrédito da moral e da fé cristã, desencantamento e mal-estar diante da ausência do transcendente – todos esses temas têm sido ligados, conforme a perspectiva de interpretação, ao anúncio da morte de Deus.
De modo sucinto, pode-se dizer que com o anúncio da morte de Deus, Nietzsche chega ao cerne do problema da condição humana na modernidade, impondo a si mesmo a necessidade de sua resolução. Kant antevira muito bem que na ausência de um Juiz e vigia supremo se perderia o fundamento não só da moral tradicional religiosa, como sobretudo, a moralidade racional se encontraria ameaçada. Mas não é apenas a ausência do transcendente o conteúdo desse pensamento de Nietzsche. A morte de Deus é um assassinato e, portanto, obra humana; obra da vontade de verdade, instaurada pelo socratismo e pela moral escrava. A morte de Deus coloca em questão a própria racionalidade do homem ocidental, o caráter corrosivo de sua vontade de verdade. Daí que a morte de Deus só possa ser anunciada, aos crentes e descrentes, pela figura invertida da razão:

O homem louco – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele estão perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para one nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuía sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará o sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então.” (GC, § 121)


O niilismo

            Com a morte de Deus o homem moderno é posto diante do niilismo. Não se trata mais de um estágio final de uma decadência cultural, mas de um ponto crítico de acabamento, como diria Heidegger: a busca da verdade e do fundamento revela o não fundado da condição humana, de sua moral, de seu conhecimento, pois o conhecimento já não leva à Verdade, embora permita o domínio técnico sobre o mundo; a moral já não conduz ao Bem, que deveria ser recompensado; nem mesmo a arte pode mais se guiar por uma idéia do Belo. Se os homens assassinaram a Deus é porque na própria cultura ocidental, uma vontade de nada já estava inscrita no âmbito da vontade de verdade, instauradora do pensamento racional e da ciência, que o Ocidente herda da Grécia Clássica. Assim, o platonismo e o cristianismo – Nietzsche não distingue os dois, considerando apenas o cristianismo como um platonismo para o povo – fruto dessa vontade racionalizadora, acabam por ser destruídos por ela.


Transvaloração dos Valores


            Embora o tema da moral apareça com maior clareza na segunda fase do pensamento de Nietzsche, pode-se dizer que a questão dos valores morais o atravessa inteiramente. Na fase madura, os problemas fundamentais da genealogia serão a instauração, manutenção e destruição dos valores morais. Nietzsche não pretende que o Bem e o Mal sejam relativos, como já suspeitava Montaigne, mas que sejam construídos historicamente, emergindo em um contexto de disputa entre modos de valoração diferentes. Para o filósofo, a moral judaica, da qual o cristianismo é herdeiro, representa um modo de avaliação dos escravos, dos debilitados fisiologicamente, em relação ao modo guerreiro de avaliar dos povos bárbaros. A própria difusão do cristianismo em Roma significará uma “revolta escrava” na moral, uma inversão valorativa na qual prevalecem o ressentimento e a má-consciência. Essa moral, negadora da vida por excelência, encontra contudo na morte de Deus seu momento terminal. A emergência do niilismo, a corrosão da moral cristã, impõe agora que uma nova instauração de valores seja feita: a superação do niilismo significa, assim, em primeiro lugar, a constituição de um novo modo de valoração.

A Vontade de Poder

            Conceito de difícil interpretação, a vontade de poder foi concebida como fundamento metafísico por Heidegger e como caráter intrínseco de um mundo de forças em perpetuo combate por Deleuze. De modo inicial, podemos entender que com esse conceito Nietzsche busca superar velhas dicotomias metafísicas tais como da alma/corpo, espírito/matéria, animado/inanimado; consciente/inconsciente, etc. Inspirado na Biologia de sua época, Nietzsche procura inicialmente conceber a vida como uma potência de auto-superação e expansão; posteriormente estende o conceito para elidir a diferença entre a matéria animada e a inanimada: concebe a própria natureza como um caos de forças animado pela dinâmica da apropriação.
            Em relação ao problema do niilismo e da transvaloração dos valores, o conceito de vontade de poder responde por ser o fundamento de toda e qualquer valoração, já que toda valoração expressa um modo de vida e cada modo de vida é uma expressão diversa do caráter da vida que é vontade de poder. A superação do niilismo é, neste segundo sentido, afirmação da vida através da afirmação do caráter de auto-superação próprio de sua dinâmica.


Eterno Retorno do Mesmo


            O pensamento do Eterno Retorno, que domina quase que inteiramente o poema filosófico Assim falou Zaratustra, recebe dos comentadores duas interpretações principais: como tese cosmológica ou como imperativo ético. No primeiro sentido, subsidiado por um considerável volume de manuscritos que atestam reflexões nietzscheanas sobre a física do fim do século, o eterno retorno é decorrente do argumento, relativamente simplório, acerca da eternidade do tempo e da limitação da matéria do universo: sendo o tempo infinito – pois para Nietzsche seria inconcebível pensar que o próprio tempo pudesse ter um começo – e a matéria do universo limitada e indestrutível, resta que quaisquer que sejam as transformações a que dá lugar, seu número há de ser sempre limitado; mesmo os eventos particulares de cada vida humana teriam que se repetir eternamente, já que a existência humana prolonga a vida biológica, e esta a interação química, que por sua vez é somente uma escala ulterior da interação física da matéria. É discutível se se trata aqui de uma tese científica, do mesmo patamar da hipótese hoje largamente aceita do “Big Bang” ou, se na verdade, trata-se de uma doutrina eminentemente metafísica. Se consideramos a ciência do ponto de vista da possibilidade de experimentação controlada, verificação ou falseamento de teses, certamente a doutrina do eterno retorno não pode valer como hipótese científica. Seu caráter metafísico se expressaria pela impossibilidade de corroboração ou falseamento: é impossível verificar-se se o universo e o próprio tempo têm um início ou se existem desde sempre.
            E entretanto, Nietzsche considerava tal hipótese mais “científica” que qualquer outra hipótese cosmológica. Isso porque, a doutrina da eternidade do universo exclui a idéia de um Deus criador, ou pelo menos a torna desnecessária. Os antigos gregos, que tinham seus deuses uma cosmogonia, concebiam que o universo mesmo não podia ter início nem fim. E é neles que Nietzsche se inspira para construir sua doutrina.

Se podemos imaginar o mundo como uma quantidade determinada de força e como um número determinado de centros de força – qualquer outra representação permanece indeterminada e portanto “inutilizável” – daí se conclui que o mundo deve atravessar um número avaliável de combinações no grande jogo de dados da existência. Num tempo finito, cada uma das combinações possíveis deverá uma vez realizar-se, ainda mais deverá realizar-se também um infinito de vezes. E como entre cada uma das combinações e seu retorno próximo, todas as combinações possíveis deverão ser percorridas e que cada uma dessas combinações condiciona toda a sucessão de combinações na mesma ordem, demonstraríamos, assim, um movimento circular de séries absolutamente idênticas: demonstraríamos que o mundo é um movimento circular que já se repetiu uma infinidade de vezes e que realiza o seu destino até o infinito. (VP, 384)

            É, contudo, do ponto de vista moral que a doutrina do eterno retorno parece mais fundamental. Se cada vida deve se repetir (e na verdade, já é uma repetição), e se em cada vida cada ato deve ser repetido novamente infindáveis vezes, o pensamento dessa repetição pesa, como o maior dos pesos, sobre o mais ínfimo ato de vontade:

O maior dos pesos – e se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (GC, §341)