Nietzsche |
A tese de Heidegger pode ser expressa, salvo alguma imprecisão, da seguinte forma: a metafísica é a determinação do ente enquanto tal e em sua totalidade; o desenvolvimento da metafísica equivale ao abandono da preocupação com o Ser mesmo; Platão é o fundador da metafísica na medida em que estabelece a diferença entre essência e existência do ente, aquela posta como Idea, Eidos; Nietzsche é, por seu lado, o filósofo que leva a metafísica ao seu acabamento uma vez que, invertendo a prerrogativa da essência sobre a existência e do mundo e do mundo verdadeiro das formas sobre o mundo do ente simplesmente dado, leva ao extremo limite a preocupação com o ente e consequentemente o “esquecimento” do Ser.
Em O nascimento da tragédia Nietzsche acusa Sócrates de haver, por meio de seu amigo-discípulo Eurípides, envenenado a tragédia introduzindo nela a dialética. Para Nietzsche, tal fato leva ao acabamento do processo de corrosão da essência do trágico[1]: a supressão da música. Isso porque na interpretação nietzscheana da tragédia, o coro é a manifestação da metade dionisíaca do drama trágico, resquício dos ditirambos dos quais a tragédia se originou.
Por mal aceito que seja esse “dionisismo” na comunidade helenística – e isso desde a época em que o livro foi lançado – a um aspecto da questão no qual os helenistas contemporâneos vêm em apoio ao argumento de Nietzsche: o caráter anti-trágico da filosofia platônica. Claro, não se trata de nenhuma unanimidade. Havelock, por exemplo, busca minimizar a oposição do filósofo grego à arte trágica. Concentrando-se sobre o papel pedagógico do drama, considera que: “Não se trata de um papel que ele [Platão] aprovasse: ele diz que a tragédia desempenha mal suas funções pedagógicas”[2].
Outra é a posição de Jean-Pierre Vernant, mais perspicaz, penso eu. A propósito da investida de Platão contra a tragédia, endossa ele a tese de Victor Goldschmidt: “A ‘imoralidade dos poetas não basta para explicar a hostilidade de Platão com a tragédia. Pelo simples fato de que a tragédia representa ‘uma ação e a vida’, ela é contrária à verdade”[3]. Ora, para Vernant é preciso esclarecer que essa contrariedade se dá ao nível do regime de verdade instaurado pelos filósofos, ou seja, a tragédia é:
Contrária à verdade filosófica, bem entendido. E talvez também a essa lógica filosófica em que, dentre duas proposições contraditórias, se uma é verdadeira, a outra é necessariamente falsa. Sob esse ponto de vista, o homem trágico aparece como solidário com uma outra lógica que não estabelece um corte tão nítido entre o verdadeiro e o falso: lógica dos retores, lógica sofística que, na própria época em que floresce a tragédia, ainda concede lugar à ambiguidade, pois, sobre as questões que examina, não procura demonstrar a validade absoluta de uma tese, mas construir dissoi logoi, discursos duplos que, em sua oposição, lutam entre si sem se destruir mutuamente, cada uma das argumentações contrárias podendo vencer a outra graças ao sofisma e à força do verbo.[4]
Ora, uma vez que o pensamento platônico exclui toda uma multitude de modos de pensar com ele inconciliáveis (o mito, a tragédia, a primeira navegação[5], a sofística), é lícito considerar que por “inversão do platonismo” podemos estar diante não de uma teoria contraditória, mas de um modo inverso de pensar. Este modo inverso, chamado por Nietzsche “perspectivismo”, deve ter por essência a negação da univocidade da verdade. Pergunta-se, agora, se o perspectivismo não é capaz de reativar esses modos de pensar que a metafísica exclui por princípio. São as seguintes nossas hipóteses: (I) a obra Assim falou Zaratustra, que compreende a doutrina positiva de Nietzsche, possui certos caracteres isomórficos à tragédia ática; (II) tal isomorfia corresponde a determinado modo de pensar que pode ser caracterizado como trágico, portanto antiplatônico; (III) de modo geral, o pensamento filosófico nietzscheano é trespassado por esse caráter trágico na medida em que incorpora ou reativa dispositivos cognitivos comuns à tragédia grega.
[1] Para Nietzsche o papel cada vez mais crescente do herói trágico, a introdução de novos personagens e a prevalência do aspecto dramático, elementos já encontráveis em Sófocles quando comparado a Ésquilo, implicam um desequilíbrio cada vez maior entre o dionisíaco e o apolíneo, em favor deste, no interior da tragédia ática.
[2] Havelock. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais, São Paulo, 1996.
[3] Goldschmidt. “Le probleme de la tragédie d’aprés Platon” in: Questions platoniciennes. Paris, 1970, pp. 103-140 apud Vernant. “Tensões e ambiguidades na tragédia grega” in: Mito e Tragédia, São Paulo, 2005, p. 7.
[4] Vernant. op. cit. p. 7.
[5] Todo o pensamento filosófico que se desenvolve antes dele, chamado por vezes pré-socrático outras “pré-platônico”. A expressão se deve, pois, à alegoria da “segunda navegação” na qual Platão esboça um conceito rudimentar de método.
2 comentários:
etúlio, Para superar qualquer bestialidade é mister transitar por ela, não usá-la, propriamente. A metafísica é a projeção ideológica do introdutor visando conduzir o rebanho que ambiciona submeter. Não há como separar a essencia do ser, tanto quanto não se pode separar o calor do sol. O que Nietzsche fez foi demontrar que o ser humano pode deixar de ser macaco, que sabe o que vê, mas não tem a menor idéia como se processam as coisas.
Grata sempre por suas visitas e comentários ao meu humilde espaço poético,filosófico e pensador...
=)
Abraços.
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