quinta-feira, 26 de maio de 2011

O direito “constitucional” inconstitucional

 



De jabuticaba em jabuticaba, o Brasil vai se tornando cada vez mais um país interessante para se viver. Interessante, é claro, para aqueles que apreciam as sutilezas do nonsense, pois para os que apreciam a simplicidade do bom senso, o Estado brasileiro é um Frankenstein com pretensões a Leviatã. Pois seja. Recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu pela equiparação da união estável homossexual à união estável heterossexual. Mas, o que temos a ver com isso? Absolutamente nada se quisermos pensar a questão nos termos em que os fanáticos (movimento gay X movimentos religiosos) a tem colocado e é certo que a discussão entre gays militantes e religiosos conservadores é um daqueles embates nos quais “um ordenha o bode e o outro segura a peneira”, como dizia Kant. De importância é somente constatar o quanto tal decisão, entre outras, mas com maior intensidade, é sintomática quanto ao estado atual do constitucionalismo.

A questão mesma analisada pelo STF é bastante simplória. Desde o golpe militar de 1889 e a dita separação entre Estado e Igreja, instituiu-se o casamento civil que nada mais é que uma série de privilégios sociais concedidos aos consortes em vista do fim adverso da união familiar. Adicionalmente, a Carta Constitucional de 1988, fruto de outra das nossas jabuticabas políticas (a elevação do Congresso constituído à Assembléia Constituinte), estabeleceu a equiparação entre o casamento civil e a união estável:

“Para efeitos da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (CRFB, art. 226, §3°)

A união estável, portanto, não é para a Carta de 88 uma instituição jurídica, mas uma situação de fato cujos efeitos são equiparados ao casamento civil – este sim considerado instituição jurídica. Tivessem que se manter no âmbito da “Constituição” os muito sábios ministros do STF deveriam ter raciocinado mediante um silogismo muito simples, em que o art. 226 seria a Maior, a situação de fato (união entre pessoas do mesmo sexo) seria a Menor e a decisão decorreria natural e logicamente. É muito evidente que a decisão deveria ser denegatória para os que pleiteavam a equiparação, vez que a situação de fato julgada era bastante distinta dos termos do artigo em questão.

Isso não significa que por alguma deficiência mental os senhores (as) ministros do Supremo tenham errado ao construir um raciocínio tão simples. O que fizeram  foi uma série de “reinterpretações” que escapam completamente da prerrogativa de um Tribunal Constitucional[1]:

Reinterpretação da questão. Não contentes em interpretar a questão em termos da “Constituição” e do Direito, os ministros do STF julgaram uma questão de “Justiça”. Podemos discutir se a decisão foi ou não foi justa, mas é inegável que essa mesma discussão só é possível porque o STF julgou em termos de Justiça e não em termos do Direito estabelecido. 

Reinterpretação dos termos. Outra condição necessária da decisão é que a união estável deixa de ser uma situação de fato e passa a ser uma instituição jurídica. Caso permaneça como situação de fato, não se vê impedimento para que outras associações eróticas duradouras não devam ser reconhecidas sob o idêntico argumento (o que, não sendo também impossível, tornará os cartórios lugares muito interessantes para se visitar)[2].

Reinterpretação dos princípios. Finalmente, toda a decisão do STF é baseada numa singular interpretação do princípio de isonomia (CRFB, art. 5°, caput). Justiça seja feita ao STF, aqui ele somente dá mais um passo numa direção já aberta pela própria Carta Constitucional. O princípio de equidade, tão antigo quanto o constitucionalismo moderno, é, como todo direito individual, algo de muito simples: todos os homens são equivalentes frente aos poderes do Estado, não cabendo a este estabelecer discriminações, atribuir privilégios ou nutrir perseguições arbitrárias. A sutil diferença introduzida pela “Constituição” de 1988, ao dizer que a igualdade se dá “nos termos dessa Constituição” foi suficiente para desfigurar completamente o princípio. Primeiro, porque a relativização de um direito equivale a sua completa destruição: um direito relativo não é um direito, mas prerrogativa que se exerce até certo limite; segundo, porque, sendo uma prerrogativa, o direito se converte em concessão dos poderes do Estado, quando originalmente o Estado, contra si mesmo, apenas o reconhecia; terceiro, porque estende o princípio que originalmente regia a relação do indivíduo com o super-poder do Estado, para as relações entre indivíduos. De tal desfiguração decorre que o Estado outorga para si a prerrogativa discriminatória que proíbe ao cidadão, reservando-se a faculdade de traçar os limites nos quais o “direito” será exercido. Muito pior do que essa insensatez dos fazedores da “Constituição” foi a extensão posterior dessa prerrogativa, pois não muito tempo depois de outorgada a nova Carta, reconheceu-se que a prerrogativa discriminatória do Estado não era matéria constitucional, mas poderia ser estabelecida infraconstitucionalmente (daí todas as leis que concedem privilégios sociais às chamadas “minorias sociais”). Finalmente, a decisão do STF torna o princípio de igualdade material, como é chamada essa versão deturpada da equidade, um super-princípio com o poder de alterar, limitar e reescrever todos os restantes artigos da “Constituição”.

De modo que não havendo mais qualquer limitador ao poder do STF de criar “direitos” através da reinterpretação da Carta Constitucional, nos encontramos agora numa situação de completo arbítrio. Isso não é espantoso em vista da “baixa origem” da Lei Fundamental de 1988 e da relação predatória entre os Poderes da República, cuja independência e harmonia só existem na fantasia dos juristas. Menos espantosa ainda é tal decisão para os que já perceberam que o constitucionalismo clássico foi a muito tempo abandonado em favor da doutrina arbitrária dos direitos humanos que para cada indíviduo do planeta reserva potencialmente um lugar  no banco dos réus de Nuremberg[3].


[1] Claro, essa observação só tem valor se considerássemos que o STF é verdadeiramente um Tribunal Constitucional e que a Lei Fundamental de 1988 é uma Constituição, o que não é evidentemente o caso tendo em vista a origem dos mesmos.
[2] Isso decorre logicamente da constatação de que os elementos que configuram a união passível de reconhecimento pelo estado (afetividade da relação, espaço e tempo) são suficientemente gerais para envolver as mais estranhas “uniões”. Claro que o reconhecimento de uniões incestuosas ou bizarras muito provavelmente não vai acontecer e não é necessário esperar consequências lógicas de uma decisão ilógica. Muito mais simples é claro seria opiniar de modo lógico como o fez o procurador do Rio Grande do Sul Lenio Streck.
[3] Cf. Maurice Bardèche. Nuremberg ou la Terre Promise. Paris: Les Sept Couleurs, 1948.

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