Há algum tempo publiquei o
primeiro capítulo da obra A Ação Humana de L.v. Mises, como parte de meus esforços no sentido de compreender melhor a Escola Austríaca de Economia. Recentemente, o Sr. Barlavento do blog
Meus FAQs, respondendo a tal postagem, indicou-me um texto, de sua autoria, no qual contesta, de forma um tanto quanto temerária, penso, os princípios da praxeologia expostos pelo filósofo austríaco. Isso posto, é preciso responder ao nosso amigo crítico no intuito de esclarecer o significado do pensamento de von Mises, a parte concordâncias ou discordância de ordem político-ideológica, as quais tomo a liberdade de por de lado, detendo-me tão só na correta compreensão do texto.
Assim, publicarei respostas às suas interrogações como um esforço de subsidiar a leitura de tal tratado, detendo-me somente na questão da significação das teses, deixando para o leitor a avaliação de sua correção ou incorreção, segundo o bom senso de que todos são igualmente providos, como dizia Descartes. Embora me dirija especialmente ao nosso amigo crítico, tais textos representam um esforço pessoal de aprendizado, o qual, espero, possa ser compartilhado por outros que por aqui passarem.
Dito isso, consideremos a primeira questão. Nosso amigo Barlavento, citando a Introdução do tratado, elabora interessantes interrogações e objeções contra a ideia básica ali exposta, i.e., a existência de uma ciência formal da ação humana, cujas proposições devem ser estabelecidas dedutivamente. Retomemos somente os trechos mais importantes citados por nosso crítico:
“A descoberta da inevitável interdependência dos fenômenos do mercado destronou essa opinião. Desnorteadas, as pessoas tiveram de encarar uma nova visão da sociedade.” [Mises, 1990, p. 6]
“Na ocorrência de fenômenos sociais prevalecem regularidades as quais o homem tem de ajustar suas ações, se deseja ser bem-sucedido.” [Id., Ibid., p. 6-7.]
“(...) Toda decisão humana representa uma escolha. Ao fazer sua escolha, o homem escolhe não apenas entre diversos bens materiais e serviços. Todos os valores humanos são oferecidos para opção” [Id., Ibid., p. 7]
Vejamos o que anota nosso crítico:
“Porquê o homem tem que ajustar suas ações às regularidades? Que regularides são estas? e, porquê a interdependência alegada seria inevitável? E ainda, o que seria ser "bem sucedido" dentro do "juízo de valores" do autor? Sendo necessária uma "nova visão da sociedade", é um tanto contraditório alegar sobre "regularidades as quais o homem tem de ajustar suas ações". Ora, se existem "regularidades" já identificadas, é certo que alguma "visão" às enxergou, portanto, é falho tentar ajustar comportamentos dentro de regularidades a partir desta visão viciada e clamar por uma "nova visão da sociedade". Qual seria a origem de tais "regularidades"? Se são regularidades, possuem padrão, consequentemente possuem características, as quais podem ser alteradas, aperfeiçoadas, etc....”
Analisemos suas questões:
1) Por que o homem tem de ajustar suas ações às regularidades?
2) Que regularidades são essas?
3) O que significa ser “bem-sucedido” nesse contexto?
4) Alegação de contradição: regularidades X “nova visão da sociedade”;
5) Qual a origem dessas regularidades?
As duas primeiras questões são básicas: ao compreender o que von Mises chama de “regularidades” temos a chave para a compreensão do propósito e natureza do tratado. Aqui é preciso resgatar uma antiga mas crucial distinção filosófica: todos sabemos o que seja uma ciência empírica e todos compreendemos que a Matemática e a Lógica não são ciências empíricas. O que são então? A resposta é clara: são conjuntos de tautologias (juízos analíticos), como alegava Wittgenstein, ou ciências formais. A Lógica tem a característica adicional de ser uma “ciência normativa”, i.e., uma ciência que não se ocupa em descrever fatos, mas em ordenar as regras de direito do correto raciocínio. Há ciências normativas que não sejam também ciências formais? É questão difícil. Pode-se alegar que a epistemologia o seja e os antigos, junto a Lógica, acrescentavam a Ética e a Estética como ciências normativas. Mas não necessitamos entrar no mérito dessa questão muito complexa. De fato há uma ciência, a Lógica, que é puramente formal (destituída de todo conteúdo empírico passível de verificação experimental) e ao mesmo tempo normativa.
Nesse ponto, é fundamental compreender a noção de “norma”, “regra” e, decorrentemente, “regularidade”. As leis lógicas (como a “lei distributiva”, o princípio de não-contradição ou o “tertium non datur”) são regularidades da estrutura cognitiva humana (se outra estrutura é possível não o podemos saber) ou da linguagem humana, conforme nos expressemos na terminologia da epistemologia mentalista ou linguística. Tais regras, são leis as quais o pensamento “tem de” necessariamente se ajustar: “Não podemos pensar nada de ilógico, pois isso significaria pensar ilogicamente” – diz Wittgenstein.
Desde o século XIX, contudo, há os que contestam essa evidência, reclamando que indivíduos ou grupamentos humanos poderiam não compartilhar da mesma estrutura lógica. Essa crença é chamada “polilogismo” – sendo, obviamente destituída de sentido, reduz-se a alegações vazias. É inútil argumentar longamente contra tal tese: se o leitor supõe que possa haver estruturas cognitivas distintas, a mera possiblidade de que seja esse o caso, impossibilita, de iuris, a vigência da linguagem comunicativa. Ademais, alguém que não acredite na correção absoluta dos princípios lógicos não pode ser persuadido de qualquer tese, visto que não se pode convencer ou ser convencido de qualquer tese sem recorrer aos mesmos, ainda que como critério negativo de verdade.
Nesse ponto, e por analogia à Lógica formal, espero que o leitor já tenha compreendido o significado de “ter de seguir uma regra”. Passemos à noção derivada de regularidade. Nesse ponto, von Mises usa o termo exatamente do mesmo modo que Kant o usou: a Natureza apresenta regularidades, isso é evidente, a questão é justamente a natureza desses regularidades. Quanto à praxeologia, portanto, devemos fazer duas interrogações distintas: 1) há regularidades na ação humana? 2) qual o fundamento de tais regularidades? A primeira questão, já tendo sido há muito resolvida no âmbito das ciências naturais permanece um problema no confuso universo das chamadas ciências sociais ou humanas; a segunda só pode ser resolvida depois de se resolver a primeira.
Qual a posição de von Mises? Muito clara: assim como vigem regularidades na Natureza, o universo da ação e interação humana apresenta regularidades apreensíveis, que apenas precisariam ser descobertas. Tal descoberta é dedutiva, na medida em que espera-se que todas as regularidades da ação humana possam ser derivadas, por análise, da própria categoria de “ação humana”, tal como, por análise, as propriedades do numero natural são dedutíveis da noção de numero natural ou as constantes geométricas são dedutíveis de poucos axiomas sobre as propriedades basilares do espaço. Mises pretende que a praxeologia seja a ciência formal e normativa da ação humana, uma ciência que sempre existiu desde que a primeira regularidade da ação humana foi verificada.
Quais são essas regularidades? Toda regularidade, no sentido da praxeologia, se expressa por uma tautologia (ou juízo analítico) decorrente das categorias envolvidas na ação humana, revelando o modo (forma) como se dá a ação humana, independente dos conteúdos empíricos que ela possa envolver. Assim, como exemplo, a definição de “bem” de Carl Menger [Princípios de Economia, capítulo I, §1]:
“As coisas capazes de serem colocadas em nexo causal com a satisfação de nossas necessidades humanas denominam-se ufãdades: denominam-se bens na medida em que reconhecemos esse nexo causal e temos a possibilidade e capacidade de utilizar as referidas coisas para satisfazer efetivamente às nossas necessidades”
envolve um raciocínio puramente analítico e formal. Um bem é algo capaz de prover nosso bem-estar satisfazendo alguma necessidade. Tal definição é dedutível do fato de que os homens têm de agir, da qual decorre que tem de escolher por essa ou aquela coisa; o que escolhem é, para o que escolhe, um bem, e um bem preferível a outros. Ora, não pertence ao escopo da praxeologia dizer que bem seria preferível ou porque as pessoas preferem isso ou aquilo. A praxeologia lida somente com a forma da ação humana: ao agir as pessoas manifestam uma preferência. Portanto, as regularidades com que lida a praxeologia são sempre formas da ação humana desprovidas de qualquer conteúdo empírico. O fato de que todos “tem de ajustar” suas ações a tais formas é tão intrigante quanto o fato de que temos de ajustar nosso pensamento aos princípios lógicos. É impossível não agir, não preferir, não avaliar, tal como é impossível pensar ilogicamente.
Isso responde às duas primeiras questões. A terceira questão diz respeito a expressão “ser bem-sucedido”. Mises diz que a ação para ser bem sucedida deve ajustar-se às regularidades praxeológicas. Isso implica introduzir a possibilidade do erro e da incerteza objetiva. Ora, embora os primeiros postulados praxeológicos implicam em formas gerais da ação humana, há teoremas decorrentes que implicam o sucesso ou o fracasso da ação. Isso pode parecer surpreendente à primeira vista, uma vez que se admitiu que as ações se ajustam necessariamente as leis praxeológicas. Mas tal como se pode errar um cálculo matemático ou argumentar com base em sofisma, de fato, ao agir, é possível fracassar em decorrência das próprias leis que regem a ação. Um exemplo: suponho que o ouro seja um bom investimento [assim manifesto uma preferência, faço um juízo de valor e uma escolha] e invisto todo meu dinheiro em ouro. De um momento para o outro, porém, grandes jazidas de ouro são descobertas e exploradas, fazendo preço do metal despencar. Resultado: o preço do ouro cai e fico mais pobre do que era antes do investimento, fracassando no intento de melhorar meu bem-estar. O futuro é incerto, uma incerteza objetiva, e as preferências subjetivas das pessoas são incognoscíveis. Logo, em qualquer empreendimento humano, em qualquer ação é possível o fracasso, que no fim se expressa pelo fato de que eu não tenha conseguido melhorar meu bem-estar, mas, o contrário.
Juízos de valor são sempre subjetivos. Isso significa que embora eu possa dizer com absoluta convicção que todos os seres humanos querem sair de uma situação menos favorável para uma mais favorável, eu não posso a priori saber o que cada pessoa avalia como uma situação mais favorável, ou o que, para ela, é um bem. Nisso está a diferença entre um conhecimento formal e um conhecimento material da ação humana: o conhecimento formal é dedutível, mas vazio; o conhecimento material é significativo mas só se pode adquiri-lo a posteriori.
A última questão diz respeito a origem das regularidades. Creio que o que se disse até o momento é suficiente para deixar claro como ela é destituída de sentido: as regularidades que caracterizam a estrutura formal da ação humana, são condições formais da ação para os seres racionais, tal como os princípios lógicos. Se por origem se entende uma gênese psicofísica a questão da origem é irrelevante. Caso se entenda uma derivação transcendental, isso seria um problema crítico ou fenomenológico, que, em todo caso, não afeta o fato de que tais leis permanecem válidas. Nesse último caso, é preciso primeiro admitir a validade universal e necessária (a apodicticidade) dessas leis, para então interrogar-se por suas condições – o que torna o problema tão relevante para o praxeólgo quanto para o matemático ou o lógico.
Passamos por sobre a quarta questão. Trata-se somente de um erro de leitura: Mises se refere ao fato de que desde há muito tempo as pessoas encaram os fenômenos sociais como passíveis de conhecimento objetivo, portanto regidos por regularidades cognoscíveis, ao invés de serem aleatórios, fatais ou determinados por uma entidade metafísica (Deus, Providência, etc). O que se deve reter disso: só se pode falar de ciências sociais e humanas, se se admite que os fenômenos humanos obedecem a certas regularidades cognoscíveis. Do contrário não há qualquer ciência humana ou social.
Entretanto, nosso crítico, repetindo um princípio básico do relativismo contemporâneo afirma:
“a verdadeira objetividade é impossível, e mesmo as mais rigorosas análises racionais fundamentam-se no conjunto dos valores aceitos no curso da análise.”
Ora, como toda proposição relativista, tal opinião não é apenas falsa, mas destituída de sentido: se não há objetividade, tal proposição não é objetiva e não se vê porque se deveria acreditar que não haja objetividade; logo, deve haver uma objetividade. É óbvio que há objetividade: as ciências não são conjuntos de crenças, mas reais conhecimentos sobre o mundo. Se queremos entrar no complexo universo da epistemologia é preciso já atentar para a mais simplória das distinções: o fato de que uma proposição possa ser falsa não significa que ela seja em algum grau “subjetiva”. Para Karl Popper, por exemplo, é justamente isso que a torna objetiva, significativa e, portanto científica. Quanto as proposições da matemática, da lógica e, aceitando-se a tese de von Mises, da praxeologia, elas não são objetivas nesse sentido: são tautologias e como tais não podem estar incorretas e não podem ser refutadas, já que não possuem qualquer conteúdo material.
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