Quando o Rei Pirro entrou na Itália, e
verificou a formação de combate do exército romano, disse: “Não sei que espécie
de bárbaros são estes (pois os gregos assim chamavam a todas as nações
estrangeiras), mas a formação de combate, que os vejo realizar, nada tem de
bárbaro”. A mesma coisa diziam os gregos do exército que a seu país Flamínio
conduziu. E Filipe assim falou igualmente, ao perceber do alto de um outeiro a
bela ordenação do acampamento daquele que, sob Públio Sulpício Galba, acabava
de entrar em seu reino. Isso mostra a que ponto devemos desconfiar da opinião pública.
Nossa razão, e não o que dizem, deve influir em nosso julgamento.
Durante muito tempo tive a meu lado um
homem que permanecera dez ou doze anos nessa parte do Novo Mundo descoberto
neste século, no lugar em que tomou pé Villegaignon e a que deu o nome de
“França Antártica”. Essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance
e presta-se a sérias reflexões. Tantos personagens eminentes se enganaram
acerca desse descobrimento que não saberei dizer se o futuro nos reserva outros
de igual importância. Seja como for, receio que tenhamos os olhos maiores do
que a barriga, mais curiosidade do que meios de ação. Tudo abraçamos mas não
apertamos senão vento.
Platão mostra-nos Sólon afirmando ter
ouvido dos Sacerdotes de Saís, no Egito, que antes do dilúvio existia em frente
de Gibraltar uma grande ilha chamada Atlântica, mais extensa do que a África e
a Ásia reunidas e que os reis dessa região não possuíam apenas a ilha mas
exerciam igualmente sua autoridade tão longe, em terra firme, que ocupavam a
África até o Egito e a Europa até a Toscana. Que haviam empreendido ir até a
Ásia e subjugar as nações do Mediterrâneo até o golfo formado pelo mar Negro;
que para tanto haviam atravessado a Espanha, a Gália, a Itália e chegado à
Grécia onde os atenienses sustaram a arremetida; que algum tempo depois
sobreviera o dilúvio que os afogara juntamente com os atenienses e sua ilha.
É muito provável que nesse cataclismo
horrível as águas tenham provocado modificações inimagináveis em todos os
países habitados da terra. Assim é que se atribui à ação das águas do mar a
separação da Sicília com a Itália: “Dizem que essas regiões, outrora um só
continente, foram violentamente separadas pela força das águas”; e a da ilha de
Chipre com a Síria e a da de Negro ponto com a terra firme da Beócia. Em compensação, alhures, o mar teria
juntado terras separadas por estreitos queforam aterrados por limo e areia: “um
pantanal há muito estéril, e que percorriam a remo, alimenta hoje as cidades
vizinhas e conhece o arado fecundo do lavrador”
Não há muitos indícios entretanto de que
seja a Atlântida o Novo Mundo que acabamos de descobrir, pois quase tocava a
Espanha e seria efeito incrível da inundação tê-la transportado à distância, em
que se encontra, de mais de mil e duzentas léguas. Ademais os navegadores
modernos já verificaram não tratar-se de uma ilha, mas de um continente
contíguo às Índias Orientais, por um lado, e por outro às terras dos pólos; e
se destes se acha separada é por tão pequeno estreito que não se deve tampouco
considerá-la uma ilha.
Creio que ocorreram nessas grandes
massas movimentos semelhantes aos que se constatam em nossas regiões, naturais
uns, acidentais e violentos outros. Quando observo a ação exercida pelo rio
Dordonha, no decurso de minha existência, abaixo de casa, na margem direita;
quando vejo quanto em vinte anos conquistou de terras, e o que solapou de
alicerces das construções erguidas à sua margem, concluo que não se trata deum
fato normal. Se, com efeito, assim tivesse sido sempre, ou que isso
devessecontinuar, a configuração do mundo acabaria por mudar. Mas esses movimentos nãosão
constantes: ora as águas se expandem por um lado, ora por outro; e ora param.
Não falo aqui das cheias súbitas cujas causas conhecemos. Na região de Médoc,
junto ao mar, tem meu irmão, Sr. De Arzac, uma de suas terras enterradas sob as
areias que o mar lhe vai jogando em cima. Os telhados de algumas habitações se
vêem ainda e essa propriedade e suas
culturas transformando-se em bem magras pastagens. Dizem os habitantes que de
uns tempos para cá avança o mar tão rapidamente que já perderam quatro léguas
de terras. Essas areias são seus arautos; como uma espécie de dunas movediças
precedem-no de cerca de meia légua e conquistam insensivelmente a região.
Outro testemunho da antiguidade, que se
quer aplicar a esse descobrimento, se encontraria em Aristóteles, se for de sua
autoria a obra intitulada “Maravilhas Extraordinárias”. Nela se conta que
alguns cartagineses, tendo-se aventurado pelo Atlântico afora, além do estreito
de Gibraltar, teriam acabado, após uma longa navegação, por descobrir uma
grande ilha fértil, coberta de bosques, regada por grandes e profundos rios, e
muito afastada da terra firme. E que atraídos, eles e outros mais tarde, pela
qualidade e fertilidade do solo, para ali teriam transportado suas mulheres e filhos,
nela se fixando. De tal amplitude se revestira essa migração que as autoridades
de Cartago teriam proibido expressamente e sob pena de morte que emigrassem
quaisquer outros. E teriam expulso da ilha os que ali já residiam, com receio
de que se multiplicassem a ponto de suplantar e arruinar o domínio da
metrópole. Esta narrativa de Aristóteles, tal qual a de Sólon, não deve referir-se
às nossas novas terras.
O homem que tinha a meu serviço, e que
voltava do Novo Mundo, era simples e grosseiro de espírito, o que dá mais valor
a seu testemunho. As pessoas dotadas de finura observam melhor e com mais
cuidado as coisas, mas comentam o que vêem e, afim de valorizar sua
interpretação e persuadir, não podem deixar de alterar um pouco a verdade.
Nunca relatam pura e simplesmente o que viram, e para dar crédito à sua maneira
de apreciar, deformam e ampliam os fatos. A informação objetiva nós a temos das
pessoas muito escrupulosas ou muito simples, que não tenham imaginação para inventar
e justificar suas invenções e igualmente que não sejam sectárias. Assim era o meu
informante, o qual, ademais, me apresentou marinheiros e comerciantes que conhecera
na viagem, o que me induz a acreditar em suas informações sem me preocupar
demasiado com a opinião dos cosmógrafos. Fora preciso encontrar topógrafos que
nos falassem em particular dos lugares por onde andaram. Mas, porque levam
sobre nós a vantagem de ter visto a Palestina, reivindicam o privilégio de
contar oque se passa no resto do mundo. Gostaria que cada qual escrevesse o que
sabe e sem ultrapassar os limites de seus conhecimentos; e isso não só na
matéria em apreço mas em todas as matérias. Há quem tenha algum conhecimento
especial ou experiência do curso de um riacho, sem saber de resto mais do que
qualquer um, e no entanto para valorizar sua pitada de erudição atira-se à
tarefa de escrever um tratado acerca da configuração do mundo. Este defeito
muito comum acarreta graves inconvenientes.
Mas, voltando ao assunto, não vejo nada
de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual
considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só
podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela
idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a
melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente
chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz
sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por
processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que
deveríamos aplicar o epíteto. As qualidades e propriedades dos primeiros são
vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las
nos outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido. Entretanto, em
certas espécies de frutos dessas regiões, achamos um sabor e uma delicadeza sem
par e que os torna dignos de rivalizar com os nossos. Não há razão para que a
arte sobrepuje em suas obras a natureza, nossa grande e poderosa mãe.
Sobrecarregamos de tal modo a beleza e riqueza de seus produtos com as nossas
invenções, que a abafamos completamente. Mar, onde permaneceu intata e se
mostra como é realmente, ela ridiculariza nossos vãos e frívolos
empreendimentos: “a hera cresce ainda melhor sem cuidados; o medronheiro nunca
se apresenta tão belo como nos antros solitários e o canto dos pássaros é assim
tão suave porque natural”. Nem apelando para todas as nossas forças e os nossos
talentos seríamos capazes de reproduzir o ninho do pássaro mais
insignificantes, com sua contextura o sua beleza, nem de o tornar adequado ao
uso a que se destina; e não saberíamos tampouco tecer a teia de uma mirrada
aranha. Todas as coisas, disse Platão, produzem-nas a natureza ou o acaso, ou a
arte. As mais belas e grandes são frutos das duas primeiras causas; as menores
e mais imperfeitas, da última.
Esses povos não me parecem, pois,
merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito
pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada
perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda
pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão
puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando
havia homens capazes de apreciá-las. Lamento que Licurgo e Platão não tenham
ouvido falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses povos,
não somente ultrapassa as magníficas descrições que nos deu a poesia da idade
de ouro, e tudo o que imaginou como suscetível de realizar a felicidade
perfeita sobre a terra, mas também as concepções e aspirações da filosofia.
Ninguém concebeu jamais uma simplicidade natural elevada a tal grau, nem
ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade subsistir com tão poucos
artifícios. É um país, diria eu a Platão, onde não há comércio de qualquer
natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um
magistrado; onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos e
pobres. Contratos, sucessão, partilhas aí são desconhecidos; em matéria de
trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam
a todos; o vestuário, a agricultura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não
usam vinho nem trigo; as próprias palavras que exprimem a mentira, a traição, a
dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia, o perdão, só excepcionalmente se
ouvem. Quanto a República que imaginava lhe parecia longe de tamanha perfeição!
“São homens que saem das mãos dos deuses”. “Como essas, foram as primeiras leis
da natureza”.
A região em que esses povos habitam é de
resto muito agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo minhas testemunhas,
raramente se encontrar um enfermo. Afirmaram mesmo nunca terem visto algum
epiléptico,8 remeloso, desdentado ou curvado pela idade. A região estende-se à
beira-mar e é limitada do lado da terra por platôs e altas montanhas, a cerca
de cem léguas, o que representa a profundidade de seus territórios. Têm peixe e
carne em abundância, e de excelente qualidade, contentando-se com os grelhar
para os comer. O primeiro indivíduo que viram a cavalo inspirou-lhes tal pavor
que embora já houvesse estado com ele de outras feitas, o mataram a flechadas e
só então o reconheceram. Suas residências constituem-se de barracões com
capacidade para duzentas a trezentas pessoas, e são edificadas com troncos e
galhos de grandes árvores enfiados no solo e se apoiando uns nos outros na
cumeada, à semelhança de certos celeiros nossos cujos tetos descem até o chão
fechando os lados. Possuem madeiras tão duras que com elas fabricam espadas e
espetos para grelhar os alimentos. Seus leitos, formados de cordinhas de
algodão, suspendem-se ao teto, como nos nossos navios. Cada qual tem o seu,
dormindo as mulheres separadas dos maridos. Levantam se com o sol e logo
merendam, não fazendo outra refeição durante o resto de dia. Não bebem ao se
alimentarem, agindo nesse ponto, segundo Suidas, como outros povos. Fora das
refeições, bebem quanto e quando querem. Sua bebida extrai-se de certa raiz;
tem a cor de nossos claretes e só a tomam morna. Conserva-se apenas dois ou
três dias, com um gosto algo picante, sem espuma. É digestiva e laxativa para
os que não estão acostumados e muito agradável para quem se habitua a ela. Em
lugar de pão, comem uma substância branca parecida com o coentro cozido.
Experimentei, é doce e algo insosso. Passam o dia a dançar; os jovens vão à
caça de animais grandes contra os quais empregam o arco unicamente. Enquanto
isso, uma parte das mulheres diverte-se com preparar a bebida, o que constitui
sua principal ocupação.
Todas as manhãs, antes que iniciem a
refeição, um ancião percorre o barracão, que tem bem cem passos de comprimento,
e prega aos ocupantes sem cessar as mesmas coisas: valentia diante do inimigo e
amizade a suas mulheres. E nunca esquecem, ao fazer esta última recomendação,
de lhes lembrar que são elas que fabricam a bebida e a conservam morna. Podem
ver-se em muitos lugares, em particular em minha casa, esses leitos, cordas,
espadas, pulseiras de madeira que lhes protegem o pulso no combate, e longos
caniços furados de um lado que tocam para ritmar suas danças. Cortam os pêlos
todos e se escanhoam melhor do que nós, usando apenas navalhas de madeira ou
pedra. Acreditam na imortalidade da alma. As que mereceram aprovação dos deuses
alojam-se no céu do lado do nascente; as amaldiçoadas do lado do poente.
Têm não sei que tipos de sacerdotes ou
profetas que aparecem raramente e moram nas montanhas. Quando surgem, há
grandes festas e realiza-se uma assembléia solene a que se apresentam todas as
aldeias. Cada uma das habitações a que me referi forma uma aldeia10 e distam
uma da outra cerca de uma légua de França. O profeta fala-lhes em público,
exortando-os à virtude, e ao dever. Sua moral resume-se em dois pontos:
valentia na guerra e afeição por suas mulheres. Prediz também o futuro e o que
devem esperar de seus empreendimentos, incitando à guerra ou a desaconselhando.
Mas importa que diga certo, pois do contrário, se o pegam, é condenado como
falso profeta e esquartejado. Por isso não se revê jamais quem uma vez errou.
Adivinhar é dom de Deus, enganar é uma impostura merecedora de castigo. Entre
os citas, por exemplo, quando os adivinhos se enganavam em suas previsões, jogavam-nos,
pés e mãos algemados, dentro de um carro de boi cheio de gravetos a que
deitavam fogo. Os que têm a seu cargo dirigir os fatos cometidos à sagacidade
humana, são desculpáveis se recorrerem a todos os meios a seu alcance. Mas não
devem ser punidos os outros, pela sua impostura, os que nos iludem
apresentando-se como donos de uma faculdade extraordinária e fora do nosso
conhecimento?
Esses povos guerreiam os que se
encontram além das montanhas, na terra firme. Fazem-no inteiramente nus, tendo
como armas apenas seus arcos e suas espadas de madeira, pontiagudas como as
nossas lanças. E é admirável a resolução com que agem nesses combates que
sempre terminam com efusão de sangue e mortes, pois ignoram a fuga e o medo.
Como troféu, traz cada qual a cabeça do inimigo trucidado, a qual penduram à
entrada de suas residências. Quanto aos prisioneiros, guardam-nos durante algum
tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo de que precisam até o dia em que
resolvem acabar com eles. Aquele a quem pertence o prisioneiro convoca todos os
seus amigos. No momento propício, amarra a um dos braços da vítima uma corda
cuja outra extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço
que fica entregue a seu melhor amigo, de modo a manter o condenado afastado de
alguns passos e incapaz de reação. Isso feito, ambos o moem de bordoadas às
vistas da assistência, assando-os em seguida, comendo-o e presenteando os
amigos ausentes com pedaços da vítima. Não o fazem entretanto para se
alimentarem, como o faziam os antigos citas, mas sim em sinal de vingança, e a
prova está em que, tendo visto os portugueses, aliados de seus inimigos,
empregarem para com eles, quando os aprisionavam, outro gênero de morte, que
consistia em enterrá-los até a cintura, crivando de flechas a parte fora da
terra e enforcando-os depois, imaginaram que essa gente da mesma origem
daqueles seus vizinhos que haviam espalhado o conhecimento de tantos vícios,
que essa gente, muito superior a eles no mal, não devia ter escolhido sem razão
um tal processo de vingança, o qual por isso adotaram, porque o acreditavam
mais cruel, e abandonaram seu sistema tradicional.
Não me parece excessivo julgar bárbaros
tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à
cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do
que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e
tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de
devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos
conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem
previamente executado.
Crisipo e Zenão, chefes da escola
estóica, admitiam não haver mal em tirar partido de nossos cadáveres se
necessário, nem mesmo em nos alimentarmos deles como o fizeram nossos
antepassados que, assediados por César em Alésia, resolveram, a fim de
prosseguir resistindo, matar a fome comendo os velhos, as mulheres e todos os
que não fossem úteis ao combate: “dizem que os gascões prolongaram a vida
valendo-se de semelhantes alimentos”. E os médicos não temem empregá-los em
toda espécie de usos internos e externos em benefício de nossa saúde. Mas não
se ouviu jamais ninguém que tivesse o julgamento moral assaz pervertido para
desculpar a traição, a deslealdade, a tirania, a crueldade, nossos defeitos
habituais. Podemos portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando
apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os
excedemos em toda sorte de barbaridades.
Fazem a guerra de um modo nobre e
generoso e ela é neles desculpável e bela na medida em que pode ser desculpável
e bela essa doença da humanidade, pois não tem entre eles outra causa senão a
da inveja da virtude. Não entram em conflito a fim de conquistar novos
territórios, porquanto gozam ainda de uma uberdade natural que sem trabalhos
nem fadigas lhes fornece tudo de que necessitam e em tal abundância que não um
teriam motivo para desejar ampliar suas terras. Têm ademais a felicidade de
limitar seus desejos ao que exige a satisfação de suas necessidades naturais,
tudo o que as excede lhes parecendo supérfluo. Tratam-se mutuamente por irmãos
quando são da mesma idade, e aos mais jovens chamam filhos; e pais aos velhos,
indistintamente. Quando morrem estes, passam os seus bens aos herdeiros
naturais; as heranças não são divididas, conservando todos os participantes a
posse do todo, sem outro título que o que lhes dá a natureza ao criá-los. Se os
povos vizinhos descem das montanhas para os atacar e são vitoriosos, o
beneficio de sua vitória consiste unicamente na glória que auferem dela e na
vantagem de se terem mostrado superiores em valentia e coragem, pois não
saberiam que fazer dos bens dos vencidos. Voltam para suas terras onde nada
lhes falta e onde podem gozar a felicidade de saber contentar-se com sua
condição. Se são vencidos, seus inimigos procedem de igual maneira. Aos
prisioneiros não se exige senão que se confessem vencidos. Mas não se encontra
um só, em um século, que não
prefira a morte a assumir uma atitude ou
a proferir uma palavra suscetíveis de desmentirem uma coragem que timbram em
ostentar acima de tudo. Não se vê nenhum que não prefira ser matado e comido a
pedir mercê. Dão-lhes inteira liberdade, a fim de que a vida lhes seja mais
cara, e não cessam de entretê-los acerca da morte que os espera brevemente, das
torturas que experimentarão, dos preparativos para o suplício, de seus membros
decepados e do festim que farão com eles. Tudo isso no intuito de lhes arrancar
alguma palavra de queixa ou fraqueza, ou de os levar à fuga, com o que mostram
tê-los apavorado e triunfado de sua firmeza de ânimo. Nisso, em verdade, e só
nisso consiste a vitória: “A vitória verdadeira é a que constrange o inimigo a
confessar-se vencido.”
Os húngaros, que são muito belicosos,
não prosseguiam na guerra senão até que o inimigo se rendesse; logo que se
confessava vencido, deixavam-no ir sem o molestar, nem exigir resgate. Apenas
queriam que prometesse não mais pegar em armas contra eles. Quando vencemos
nossos inimigos, devemo-lo antes a vantagens ocasionais e não a nosso mérito
exclusivo. Ter braços e pernas sólidos é apanágio do carregador e não da virtude;
independente de nós, e é coisa toda física, ter boa saúde. E é golpe de sorte
abalar o inimigo ou conseguir com que tenha o sol nos olhos e se ofusque. E é
tãosomente prova de habilidade e treino, que pode oferecer igualmente um
covarde ou um plebeu, saber manejar o florete. O valor de um homem, e a estima
que nos inspira, medem-se pelo seu caráter e força de vontade. A valentia não
decorre do vigor físico e sim da firmeza de ânimo e da coragem; não consiste na
superioridade de nossa montaria e de nossas armas, mas na nossa. Quem sucumbe
sem que sua coragem se abata; “quem, se cai, combate de joelho”; quem, apesar
das ameaças de morte não perde sua altivez; quem, agonizante, permanece
impassível e com o olhar desafia ainda o inimigo, não é por nós abatido e sim
pelo destino. Morre mas sem ser vencido. Os mais valentes são por vezes os mais
infelizes, o que faz com que haja derrotas mais gloriosas do que as vitórias.
As quatro brilhantes vitórias de Salamina, Platéia, Mícale e Sicília, as mais
belas que testemunhou o sol, serão mais gloriosas do que a que Conquistou o Rei
Leônidas nas Termópilas? Quem jamais preparou a vitória com mais cuidado da
glória e mais ardente desejo de vencer, do que Ischolas sua derrota? Quem
preparou a sua salvação mais engenhosa e estranhamente do que ele a sua perda?
Fora encarregado de
defender uma passagem do Peloponeso
contra os árcades. Compreendendo que os não poderia rechaçar, em virtude da
topografia local e da inferioridade numérica de suas forças; certo de que tudo
o que se opusesse ao inimigo seria destruído; julgando por outro lado indigno
de sua própria coragem e de sua grandeza de alma, tanto quanto de um
lacedemônio, faltar ao dever, entre duas resoluções extremas escolheu uma que
as conciliasse: dispensou os mais jovens e vigorosos da tropa, a fim de os
conservar para a defesa do país, e, com os que menos falta deviam fazer,
resolveu defender a passagem entregue a sua guarda, cobrando com a morte dos
defensores o mais caro possível a vitória do inimigo. Foi o que aconteceu: logo
cercados de todos os lados pelos árcades, Ischolas e os seus sucumbiram e foram
levados ao fio de espada após verdadeira carnificina. Que troféu assinalado aos
vencedores não fora antes devido a vencidos dessa ordem? A verdadeira vitória
reside na maneira por que combatemos e não no resultado final. E não consiste a
honra em vencer mas em combater.
Voltemos à nossa história. Com tudo isso
que lhes fazem, não conseguem nem de longe que os prisioneiros cedam; ao
contrário, durante os dois ou três meses que permanecem presos, afetam alegria
e incitam seus senhores a se apressarem em submetê-los às provações com que os
ameaçam. Desafiam-nos e os injuriam, censurando-lhes a covardia e lhes
recordando os combates que perdera em outras ocasiões. Tenho em meu poder o
canto de um desses prisioneiros. Eis o que diz: “Que se aproximem todos com
coragem e se juntem para comê-lo; em o fazendo comerão seus pais e seus avós
que já serviram de alimento a ele próprio e deles seu corpo se constituiu.
Estes músculos, esta carne, estas veias, diz-lhes, são vossas, pobres loucos.
Não reconheceis a substância dos membros de vossos antepassados que no entanto
ainda se encontram em mim? Saboreai-os atentamente, sentireis o gosto de vossa
própria carne.” Haverá algo bárbaro nesta composição? Os que lhes descrevem os
suplícios e os representam no momento em que são esbordoados, pintam-nos
cuspindo no rosto dos que os trucidam em meio a caretas. E, com efeito, até
exalarem o último suspiro, não param de desafiar os inimigos tanto pelas
atitudes como pelos propósitos. Por certo, em relação a nós são realmente
selvagens, pois entre suas maneiras e as nossas há tão grande diferença que ou
o são ou o somos nós.
Os homens têm várias mulheres, em tanto
maior número quanto mais famosos e valentes. Particularidade que não carece de
beleza, nesses lares o ciúme, que entre nós impele nossas esposas a impedir que
busquemos a amizade e as boas graças de outras mulheres, entre eles as induz a
arranjarem outras para seus maridos. A honra deste primando entre todas as
demais considerações, põem elas todo o cuidado em ter o maior número possível
de companheiras, pois esse número comprova a coragem do esposo. Entre nós
falariam de milagre. Não se trata disso e sim da virtude matrimonial elevada ao
máximo. Não nos mostra a Bíblia, Sara e as mulheres de Jacó, Lia e Raquel,
pondo suas serventes à disposição de seus maridos? Não auxiliou Lívia, contra
seu interesse, a satisfação dos desejos de Augusto? E Estratonice, mulher de
Dejótaro, não somente emprestou ao marido uma de suas mais belas serventes,
para que a usasse como entendesse, mas ainda educou os filhos da concubina e os
ajudou a suceder ao pai. E não se imagine que se trate da observação servil de
um costume, imposta pela autoridade dos costumes tradicionais, e que se aplique
sem maior discussão, porquanto são os selvagens demasiado estúpidos para se
rebelarem. Eis alguns traços que demonstram o contrário. Transcrevi aqui um de
seus cantos guerreiros: pois tenho também uma canção de amor: “Serpente, pára;
pára, serpente, a fim de que minha irmã copie as cores com que te enfeitas; a
fim de que eu faça um colar para dar à minha amante; que tua beleza e tua
elegância sejam sempre preferidas entre as das demais serpentes.” É a primeira
estrofe e o estribilho da canção; ora, eu conheço bastante a poesia para julgar
que este produto de sua imaginação nada tem de bárbaro, antes me parece de
espírito anacreôntico. Aliás a língua que falam não carece de doçura. Os sons
são agradáveis e as desinências das palavras aproximam-se das gregas.
Três dentre eles (e como lastimo que se
tenham deixado tentar pela novidade e trocado seu clima suave pelo nosso!),
ignorando quanto lhes custará de tranqüilidade e felicidade o conhecimento de
nossos costumes corrompidos, e quão rápida será a sua perda, que suponho já iniciada,
estiveram em Ruão quando ali se encontrava Carlos IX. Entreteve-se o rei com
eles, longamente; mostraram-lhes como vivíamos no cotidiano; ofereceram-lhes
grandes festas; ensinaram-lhes como era uma cidade grande. Alguém lhes havendo
perguntado mais tarde o que pensavam da cidade e o que ela lhes tinha revelado,
citaram três coisas. Esqueci a terceira, e o lamento, mas lembro-me das duas
outras. Disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número de
homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que se achavam
junto do rei (provavelmente se referiam aos suíços da guarda) se sujeitassem em
obedecer a uma criança e que fora mais natural se escolhessem um deles para o
comando. Em segundo lugar observaram que há entre nós gente bem alimentada,
gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos,
esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem
metafórica a tais infelizes chamam “metades”); e acham extraordinário que essas
metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as
casas dos demais.
Conversei longamente com um deles, mas
meu intérprete compreendia tão mal e se mostrava tão embaraçado com as
perguntas que, graças à sua estupidez, não pude obter algo mais sério de meu
interlocutor. Tendo-lhe perguntado de onde provinha sua ascendência sobre os
seus (era um chefe e nossos marinheiros o tratavam como rei), respondeu-me que
tinha o privilégio de marchar à frente dos outros quando iam para a guerra. À
minha pergunta: quantos homens o acompanhavam? mostrou um terreno como para
dizer: o que cabia naquele espaço, cerca de cinco mil homens. Indaguei ainda se
nas épocas de paz ele conversava alguma autoridade, e disse-me: “Quando visito
as aldeias que dependem de mim, abrem-me caminhos no mato para que eu possa
passar sem incômodo”. Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo,
essa gente não usa calças!