Introdução
Não é raro que, no afã de resolver os problemas mais imediatos, os cientistas se descuidem dos fundamentos de sua ciência e acabem por defender doutrinas epistemológicas ou metafísicas incompatíveis com seu saber ou por si mesmas inconsistentes. Já deveríamos ter aprendido que ignorar os problemas de fundamento não faz com que eles desapareçam, mas somente que se adote acriticamente um idéias pouco sólidas. De outro lado, o filósofo muitas vezes ignora o que é feito pelo cientista, o que o impossibilita de suprir a lacuna deixada por este. Mais frequentemente ainda os filósofos estão por demais ocupados com os problemas das ciências naturais para voltar seu tempo e atenção aos problemas suscitados pelas ciências humanas e sociais, em prejuízo destas e da própria filosofia.
A filosofia, contudo, não é prerrogativa dos eruditos que se auto-denominam “filósofos”, mas será o nome justo para toda reflexão rigorosa, radical e sistemática de um campo de objetos. É preciso, pois, nesse ponto reconhecer o mérito dos partidários da Escola Austríaca de Economia que, sem deixar de ser economistas no sentido mais pleno do termo, cultivam duas virtudes hoje muito raras: a atenção quanto aos problemas epistemológicos e a persistência quanto a busca da verdade, razão pela qual todo economista austríaco merece se também chamado “filósofo”.
Sirvam essas palavras como justificativa do que me move a abordar as questões epistemológicas suscitadas pela Escola Austríaca, mesmo reconhecendo minha insuficiente erudição na ciência econômica.
A questão do apriorismo
Ludwig von Mises |
Comecemos, pois, do princípio. Importei a pouco tempo para este sítio a tradução do primeiro capítulo do tratado A Ação Humana de Ludwig von Mises porque, creio, nele está lançado um desafio intelectual dos mais intrigantes: a questão sobre a natureza do conhecimento econômico.
Pois bem. Mises acreditou ter descoberto um novo campo, ainda não explorado de conhecimentos apriorísticos. Considerava ele que algumas ou talvez todas (aqui pode haver dissenso entre seus leitores) proposições da Economia pertenciam a tal campo, mas que este domínio ontológico (da ação humana) necessitaria de uma nova e específica ciência, a Praxeologia.
A tese em si mesma não é de modo algum obscura ou complexa, mas isso não significa que seja simplória. De fato, embora certas consequências possam ser imediatamente inferidas dessa proposta, somente um exame detalhado da mesma seria capaz de nos abrir todo o horizonte promissor a ela inerente.
Ao certo, supomos saber o que significa um conhecimento apriorístico: na terminologia kantiana, é apriorístico o conhecimento que não tem origem na experiência empírica. Ora, aqui começa o dissenso, pois para alguns, a influência de Kant sobre Mises o teria levado a corroborar e defender tacitamente a problemática doutrina dos juízos sintéticos a priori ou, para os mais radicais como Rothbard, a levá-la uma passo a frente do próprio Kant; mas talvez outros, como eu próprio, não encontrem no tratado de Mises nenhum indício nesse sentido, preferindo recolocar a questão do apriorismo sobre bases menos incertas que a doutrina kantiana.
Não tentarei aqui avançar mais do que posso, nem me gabar de ter encontrado uma melhor interpretação para o apriorismo de Mises, mas somente colocar a questão e suas dificuldades. Dado que ainda estudo a questão, me contentarei em fazer algumas indicações iniciais, muito básicas, porém necessárias à elucidação do assunto.
Juízos X proposições
Em primeiro lugar, há de se distinguir juízos e proposições. Aqueles são entidades mentais, enquanto estes têm natureza lingüística, embora difiram de outras entidades linguísticas como a frase, a sentença e o enunciado, não havendo consenso entre os lógicos quanto a estes termos e seus significados.
Tradicionalmente, porém, diz-se que “a proposição é a expressão verbal de um juízo”, sendo este “o ato pelo qual o espírito afirma alguma coisa”[1]. Mas se a proposição é apenas a expressão do juízo, que diferença pode haver em tratarmos de proposições ou juízos? O problema básico é que, mesmo admitindo a existência de juízos e proposições e a relação acima descrita entre eles, deveremos reconhecer que as características das proposições, excetuando talvez as que se refiram a sua matéria, devem também ser encontradas nos juízos, segundo o velho adágio metafísico de que deve haver tanto no efeito quanto há na causa. A recíproca, porém, não é verdadeira e não há nenhuma necessidade de que as proposições exibam caracteres intrínsecos aos juízos. Em suma: juízos poderiam formalmente ser tratados como se fossem proposições, mas proposições não podem ser tratadas como se fossem juízos.
Proposições analíticas?
Para que o que se disse acima não pareça vão exercício de retórica, consideremos a questão entre juízos analíticos e sintéticos, muito importante para a interpretação do vínculo entre Mises e Kant. Segundo Kant, juízos analíticos são aqueles em que o predicado está contido implicitamente na idéia do sujeito, enquanto juízos sintéticos representam o caso contrário[2]. Jolivet, porém, reconhece três casos distintos de juízos analíticos: 1) quando o atributo é idêntico ao sujeito; 2) quando o atributo é essencial ao sujeito; 3) quando o atributo, não sendo essencial, é próprio do sujeito, i.e., decorre de sua essência. Quando aos juízos sintéticos, são, para o filósofo francês, aqueles em que o atributo é acidental ao sujeito[3].
Immanuel Kant |
Não discutirei no momento qual conceituação é mais adequada. O fato é qualquer que seja a definição utilizar para tecer essa distinção, ela só cabe a juízos, nunca a proposições, pois de fato um juízo ser analítico decorre de que tenha sido produzido por análise, enquanto o ser sintético implica que nasceu por composição. Não há, pois, qualquer sentido em falar de proposições analíticas ou sintéticas, haja vista que uma proposição é sempre uma composição de termos distintos. Que sentido poderia haver em dizer que o predicado da proposição está contido em seu sujeito, ou que é essencial a ele, ou que dele decorre? Seria lícito chamar que proposição (predicação) em que os termos fossem idênticos (Ex: a casa é uma casa)? Suponho que dificilmente se admitiria que há aqui uma proposição. Assim, se, para existir, a proposição necessita de dois termos distintos, carece de sentido falar em proposições analíticas.
Parece, pois, que ao renunciar ao uso do conceito mentalista de “juízo”, perdemos com isso a possibilidade de nos referirmos às operações de análise e síntese e aos produtos delas decorrentes. Por que o faríamos, contudo? Muito embora os lógicos formais, ao menos desde Frege, não ousem mais tratar de juízos, a lógica transcendental (de Kant ou Husserl) não pode abdicar de tais entidades. Parece, pois, abrir-se um hiato entre a Lógica Formal e a Lógica Transcendental, de modo que é nesta última que se deveria buscar o fundamento da distinção entre conhecimentos apriorísticos e aposteriorísticos. Antes, contudo, de nos enveredarmos nesse difícil campo de investigação, é preciso perguntar: Mises defende uma qualquer doutrina sobre juízos ou trata apenas de proposições?
A priori X a posteriori
Abandonemos, então, a questão da síntese e da análise e nos concentremos na distinção muito mais importante entre juízos apriorísticos e aposteriorísticos. Cuidemos, contudo, para que essa adjetivação do termo latino não nos leve a um erro grave: ser a priori ou a posteriori não são propriedades dos juízos, mas referem-se às condições de verdade ou falsidade dos mesmos (valor lógico). É mais correto, portanto, dizer que há juízos cuja verdade ou falsidade independem de qualquer verificação (juízos verdadeiros ou falsos a priori), enquanto o valor lógico de outros só pode ser assentido após um exame experimental (juízos verdadeiros ou falso a posteriori).
Assim, a princípio qualquer juízo que antecipe uma experiência empírica poderia se considerado apriorístico. Entretanto, em epistemologia só nos interessam os juízos apriorísticos strictu sensu, i.e., aqueles cuja verdade ou falsidade é estabelecida independente de toda e qualquer experiência e não desta ou daquela experiência em particular.
A observação mais importante a fazer, contudo, é que, uma vez que a classificação se refere às condições de verdade e não a qualidades intrínsecas, os atributos “ser (verdadeiro ou falso) a priori” e “ser (verdadeiro ou falso) a posteriori” podem ser ditos tanto de juízos quanto de proposições, indiferentemente, pois é certo que quanto a isso, uma proposição é tão passível de ser verdadeira ou falsa quanto o juízo que possivelmente expressa. Disso resulta que, quanto a questão do apriorismo, podemos falar somente de proposições, não criando dificuldades para a análise lógico-formal.
A princípio qualquer tipo de proposição pode ser aprioristicamente verdadeira ou falsa: tanto as universais quanto as particulares; tanto as afirmativas quanto as negativas. Por exemplo, toda proposição que afirma de uma parte do sujeito o que já foi afirmado do todo, é uma proposição particular aprioristicamente verdadeira, independente, independente de como tenha sido firmada a verdade da universal correspondente. Donde se vê que não têm razão os que afirmam que proposições (verdadeiras ou falsas) a priori sejam sempre universais e necessárias. Melhor, têm razão somente em parte, porque é evidente que tais proposições são necessariamente verdadeiras ou necessariamente falsas, a não se que admitamos nessa classe as proposições não absolutamente apriorísticas, mas apenas relativamente (a esta ou aquela experiência em particular) – isso, porém, não o faremos.
Quanto à origem, pode-se dizer que as proposições cuja verdade se estabelece independente de qualquer experiência, têm sua mais óbvia origem nas operações lógico-formais.
Em segundo lugar – e com muito maior razão – os princípios lógicos que presidem as operações de raciocínio e argumentação, devem ser tidos por válidos e verdadeiros a priori, uma vez que são requisitos de validade de tais operações e requisito da necessidade do nexo entre os termos de um argumento. Pode-se dizer que esse modo de evidenciar o caráter apriorístico dos princípios lógicos é uma petição (transcendental) de princípio, pois que aquele que desejasse negar valor a um princípio lógico (como o de não-contradição, por exemplo), deveria pode demonstrar a falsidade, ou mera contingência, do mesmo sem recorrer a ele – o que de todo é impraticável.
Assim, pode-se ensaiar uma investigação para saber se a petição transcendental de princípio, mediante a qual evidencia-se a necessidade dos princípios lógicos pode ser estendida a outras espécies de proposições , donde se alargaria o campo dos conhecimentos apriorísticos. Não me parece ser outro o procedimento de Kant com relação à geometria, à aritmética e aos fundamentos da física teórica: a própria experiência empírica, afirma ele, seria impossível sem o recurso a tais conhecimentos, donde decorre que a validade dos mesmos não poderia ser firmada por ela. Analogamente, os austríacos argumentam que a experiência do universo da ação humana requer certas proposições fundamentais como condições de inteligibilidade, restando demonstrado que a verdade ou falsidade das mesmas não poderia fundar-se na experiência que condicionam.
Voltaremos a essa questão em outro momento. Por hora, basta que se reconheça o fato de que a admissão de conhecimentos apriorísticos não nos conduz necessariamente a defender qualquer doutrina sobre a natureza dos juízos, menos ainda a problemática doutrina dos “juízos sintéticos a priori” de Kant. De fato, para falar de conhecimentos válidos e verdadeiros a priori, nem mesmo precisamos falar de juízos. Conclui-se, portanto, que mesmo se Mises houvesse defendido a doutrina kantiana (o que me parece não ser o caso) tal homenagem à obra de Kant em nada seria essencial ao seu propósito, qual seja, evidenciar o fundamento apriorístico da ciência da ação humana.
***
PS: Em um próximo momento analisaremos os problemas e obscuridades da doutrina kantiana de modo a ressaltar as dificuldades de admiti-la na epistemologia contemporânea. Finalmente, analisaremos detalhadamente o capítulo I de A Ação Humana, a ver se Mises sustenta ou não a existência de juízos sintéticos a priori.
[1] JOLIVET, R. Curso de filosofia, 1995, p. 19.
[2] Cf. KANT. Crítica da Razão pura. 2000, p. 58.
[3] JOLIVET. op. cit. p. 40.
Referências
JOLIVET, Régis. Curso de filosofia; tradução de Eduardo Prado de Mendonça. Rio de Janeiro: Agir, 1995.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura; tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
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