sábado, 2 de abril de 2011

Kant & Nietzsche III - Materialismo Transcendental de Nietzsche

Há uma ilusão que se enraíza na própria natureza da razão — eis a lição da Crítica; há uma ilusão que consiste na natureza da razão — esta é uma lição que a Crítica não conseguiu alcançar. A diferença é sutil, mas fundamental para os rumos do Esclarecimento — se por esclarecimento quer ser entender algo maior que a simples ilustração (erudição), sobretudo o processo de desmistificação do horizonte cognitivo humano. Tomando como fio condutor a “miragem do mundo” sobre a qual se apóia a antitética da razão, podemos traçar os aspectos gerais da inflexão que permitirá ao perspectivismo de Nietzsche incluir até mesmo o idealismo kantiano entre as fabulações, cuja tematização a Crítica institui.

Objetos em perspectiva. Gravura de Henricus hondius
O perspectivismo é uma noção ambivalente. Em um sentido genérico ele designa a natureza mesma de todo conhecimento humano, enquanto necessariamente implica um ponto-de-vista determinado; em um sentido “doutrinal” implica critérios específicos de hierarquização de perspectivas[1], que só exploraremos aqui de modo muito genérico. As palavras “ficção”, “interpretação” e “erro” podem ser indistintamente vinculadas ao caráter do conhecimento e implicam o pressuposto fundamental que difere a epistemologia nietzscheana do idealismo transcendental: a contingência das formas. Os principais expedientes que diferem a desmistificação empreendida por Kant na dialética transcendental daquela constantemente tematizada por Nietzsche são: a dualidade dos interesses subsumidos na antitética racional e a ambivalência das afecções que se manifestam nos interesses conflituosos. A já citada contingência das formas é uma temática recorrente em Nietzsche ao menos desde Humano demasiado humano e corresponde a gênese do procedimento genealógico a partir da instauração do que, a princípio, Nietzsche chama “filosofar histórico”. É que a estabilidade das formas implica justamente a falta de sentido histórico da qual sempre se valeram os metafísicos para traçar suas oposições. “A crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de valores” (BM, § 2), dirá Nietzsche reiterando sua velha posição quanto ao realismo platônico[2].

Kant assumiu tacitamente que as formas da sensibilidade, do entendimento e da razão eram originárias, cada qual um Factum da Razão, as quais caberia, respectivamente, uma exposição, uma dedução e uma derivação subjetiva. Há nisso um último resquício de platonismo, uma última tentativa de conservar a estabilidade lógica do mundo frente ao já presente fenômeno de sua degeneração. Sem dúvida que esta pressuposição, malgrado não possa ser demonstrada, torna-se convincente por dois motivos: por um lado, salvaguarda o sentido forte que a noção de verdade deve adquirir para o saber empírico e, por outro lado, permite resolver o incomodo problema da antitética da razão e restaurar a significação dos princípios da razão, malgrado sob o caráter meramente regulativo. Mas é claro que o valor dessas provas está vinculado o pré-conceito que elas tentam validar: se o formalismo é válido, é porque o mundo se apresenta sob uma forma racional; se o mundo se apresenta sob uma forma racional é porque as formas que o constituem e regulam possuem estabilidade. A pressuposição de que mundo e razão (quer seja constituída por categorias mentais ou lingüísticas) compartilham da mesma forma lógica estável não pode ser justificada senão por milagre[3].

Fato é que a diferença entre o a priori constitutivo do entendimento e o a priori regulativo da razão só se justifica ante o desnível entre natureza e natureza humana que eleva a razão a um estatuto meta-humano. É manifesto que Kant não concebia a razão num sentido meramente humano, o recurso à noção de um ente inteiramente racional no qual a simples forma racional produzisse seu objeto permanece quer no sentido teorético quer prático o principal expediente comprobatório da originariedade das formas dadas no interior de faculdades não-originárias[4]. Tão logo, porém, uma história natural da razão, iniciada na dialética transcendental, reconduza as “faculdades” a um sentido propriamente antropológico, a estabilidade de suas formas já não pode ser assegurada. Manifesta-se, então, a precariedade dos recursos cognitivos humanos que enquanto não mais apelam para uma origem divina possuem valor somente para os humanos.

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram que morrer. — Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. (WL/VM, § 1)


Desde esse ponto de vista a grande problemática kantiana dos juízos sintéticos a priori pode ser reduzida à cômica formulação da virtus dormitiva (BM, 11). Trata-se de denunciar o inevitável circulo vicioso do formalismo que faz dos predicados supostos da positividade o maior testemunho da possibilidade desses predicados. Universalidade e necessidade, vez que só podem se evocados num sentido humano, não mais comprovam o caráter constitutivo das formas do entendimento, mas um grau extremo de hipostasia da ficção; juízos dotados de tais características só podem ser concebidos por Nietzsche como os erros mais fundamentais, mais necessários à vida humana e, por isso mesmo, mais falsos. Se a necessidade lógica pode enfim se converter em necessidade fisiológica, então quanto maior o grau de necessidade de um juízo tanto maior será seu grau de falsidade e, somente por uma ilusão inevitável, é necessário supô-los verdadeiros — tal é a fábula que redobra a ilusão:

...é tempo, finalmente, de substituir a pergunta kantiana, “como são possíveis juízos sintéticos a priori?”, por uma outra pergunta: “por que é necessária a crença em tais juízos?” — isto é, de compreender que, para o fim da conservação de seres como nós, é preciso acreditar que tais juízos são verdadeiros; com o que, naturalmente, eles também poderiam ser falsos! Ou, dito de maneira clara e crua: juízos sintéticos a priori não deveriam absolutamente “ser possíveis”: não temos direito a eles, em nossa boca são somente juízos falsos. (BM, § 11)


Uma vez que o a priori constitutivo pode ser diluído no a priori regulativo e que este último implica diretamente a noção de interesses racionais, pode-se agora, seguindo o caminho inverso que conduz da dialética à analítica, esclarecer, através de uma dualidade de interesses, os pressupostos que afastam o perspectivismo de Nietzsche de um subjetivismo relativista. É que a legitimidade não-temática dos interesses teóricos unívocos da razão que se manifestam nas teses da antinomia se apóia num secreto acordo entre entendimento e razão em prol da instauração do sentido do mundo. Em certo sentido, a antitética kantiana é tão superficial que o próprio filósofo acaba por negá-la[5] sob o pressuposto da univocidade dos interesses da razão. Ao contrário, desde que se suspeite de uma dualidade de interesses a mover os conflitos antinômicos, ver-se-á que a ilusão não é um extravio, mesmo que originário, da razão, mas própria razão em sua natureza instrumental.

Para Nietzsche, a polêmica da razão denuncia a ambivalência da vontade de verdade, uma cisão na própria estrutura do logos que habita a história da razão. “Neste sentido poder-se-á falar, por um lado, de uma força da esquematização/sistematização e, por outro lado, de uma força da veracidade (Wahrhaftigkeit)”[6]. A vontade de verdade comporta dois elementos antagônicos, mas mutuamente deriváveis: de um lado a presunção de verdade, de outro a pretensão de verdade, ambas porém presunção e pretensão de que haja verdade. No primeiro caso, fala-se de uma vontade de verdade no sentido daquela mesma confiança no poder da razão que se manifesta no interesse sistemático, na inevitável pressuposição do incondicionado para todo condicionado, na estruturação de um mundo significativo. O que anima essa busca milenar pela verdade é justamente uma força de veracidade, cuja natureza desmistificadora constitui o elemento dinâmico da vontade de verdade. É óbvia a constatação de que a polêmica da razão consiste no fato de que a força de veracidade volta-se contra toda e qualquer presunção de verdade e, em seu limite, contra a presunção de que haja verdade. Neste último sentido vê-se que esse processo de desmistificação de uma vontade contra-mitológica acaba por arruinar seu próprio solo na forma das aporias do relativismo extremo.

Com o conceito de niilismo ativo Nietzsche nomeou sobretudo os interesses que se colocam do lado das antíteses. Este é o ponto de partida de uma outra crítica, uma crítica que consiste em denunciar a ilusão inerente ao interesse sistemático. Ao denunciar a aparência transcendental, ao resolvê-la instaurando a distinção entre o a priori constituitivo e o a priori regulativo, a Crítica de Kant, sem o saber, se integra ao processo instaurado por essa racionalidade dissolvente que se prelineava nas antíteses e abre espaço para que o próprio interesse da razão na unidade sistemática seja revelado como a última e suprema ilusão. A emergência mesma do perspectivismo está ligada à essa atividade niilista. Nas palavras do professor Marques: “O perspectivismo tem uma qualidade niilista, na medida em que supõe a consciência generalizada do caráter instrumental dos instrumentos de conhecimento, quer sejam categorias mentais, quer a linguagem”.[7]

Neste ponto pode-se retomar o que parece ser o principal “paradoxo” do perspectivismo: as qualidades a partir das quais ser reconhece o caráter de veracidade são justamente os sintomas de uma mais profunda falsidade, de uma ilusão. Ante a impossibilidade de conservar um sentido realista da verdade pode-se ainda ensaiar o seguinte artifício: mesmo que se admita o caráter ficcional de todo o conhecimento, há ficções tão sedimentas nas condições de sobrevivência humana que acabam por se constituir como coordenadas invariáveis da estruturação da objetividade; a objetividade, assim compreendida, pode resgatar seu sentido fenomênico, propriamente kantiano, mas em todo caso declina-se para um sentido humano a universalidade e a necessidade. Ora, esta saída se apóia em pressupostos aceitáveis, mas nunca evidentes, e o suposto paradoxo a qual pretende resolver não emerge do perspectivismo propriamente nietzscheano[8].

Em grande parte, o contra-senso da conclusão de Nietzsche só é vislumbrado a partir do momento em que se substitui o naturalismo na qual se apóia por um naturalismo darwiniano. Mas é claro que a ambivalência da vontade de verdade não poderia ser explicada fisiologicamente a partir de um naturalismo darwinista. O niilismo ativo é incompatível com a pressuposição de uma afecção conservativa do organismo. Pois, se o interesse máximo do organismo fosse sua própria conservação, como seria possível que a estruturação racional do mundo, um expediente conservativo, fosse arruinada por uma força desmistificadora? De onde derivar essa autêntica e absurda vontade de verdade? Justamente aqui, além de uma ambivalência da vontade de verdade, é preciso supor um princípio explicativo diverso: a vontade de poder.

Ao introduzir a noção de vontade de poder, Nietzsche é capaz de explicar tanto a emergência do niilismo passivo quanto do niilismo ativo. É que a dinâmica conservação, suposta fundamental, pode ser derivada de uma dinâmica inda mais fundamental, a dinâmica de superação (apropriação). Enquanto caso específico da vontade de poder, a vontade de verdade deixa-se esclarecer em sua ambivalência. Todo o platonismo, na medida em que instaura a estabilidade e o sentido do mundo, deixa-se compreender como expediente necessário de conservação; trata-se de uma valoração dos erros fundamentais que permitem a conservação da espécie humana: causalidade, substância, etc. Seria falso, contudo, ver na conservação uma finalidade, se a cada vez a conservação é alcançada isso não significa que na vontade de verdade seja justamente ela a ser buscada. É precisamente porque se move a partir da dinâmica de expansão e domínio que a vontade de verdade não se detém na conservação. Por isso, pode-se falar de uma passagem, no perspectivismo de Nietzsche, da simples constatação do caráter ficcional das categorias mentais ou da linguagem, à polêmica acerca da ilusão que consiste em fabular um caráter objetivo a um tipo determinado de ficções, justamente aquelas ficções vinculadas à promoção da manutenção da vida humana.

O confronto entre a vontade de verdade instauradora do sentido do mundo e a força de veracidade que dissolve os sentidos instaurados pode ser tão velho quanto a própria filosofia ocidental, mas é somente na modernidade que esse confronto se converte em processo. Algumas teses de Antonio Marques acerca da vinculação entre o perspectivismo de Nietzsche e o pensamento kantiano podem ser úteis no sentido de esclarecer como do interior de uma tentativa de conservar o sentido do mundo pôde emergir a dissolução completa desse sentido (Morte de Deus). Entretanto, é preciso considerar também o distanciamento de Nietzsche em relação ao formalismo kantiano; donde se pode depreender que, embora o perspectivismo possa ser vinculado à crítica da ilusão da Dialética kantiana, o radicalismo do questionamento nietzscheano acaba por incorpora o projeto kantiano entre as figuras da ilusão de um logos que, em último caso, está no limite da tradição platônica. 

Nesse sentido, processo do Esclarecimento, enquanto incorpora as qualidades niilistas da força de veracidade, desvela justamente a ilusão como condição de sua possibilidade. No limite, a tentativa de purificar a razão de suas ilusões, desloca o ponto-de-vista da própria racionalidade, e neste acabamento, deixa-se compreender como a suprema ilusão. Retomemos a metáfora inicial. Luz e trevas são as imagens as quais a filosofia recorre desde Platão para distinguir os domínios da verdade e da não-verdade, do ser e do nada. O mito da caverna ilustra uma determinada distribuição vigente até o século XVIII na qual entre o erro e a verdade há uma distância fática, um desvio corrigível no qual as próprias sombras deixam entrever a presença da luz e do que se coloca à luz. A Crítica, porém, é inseparável de certa inversão do platonismo, em Kant como em Nietzsche. A diferença está no alcance e na completude desta inversão. É que, a distinção kantiana entre regras constitutivas e princípios regulativos, inda deixa vigora um Nobre Castelo em meio às trevas, onde os metafísicos que atravessaram o caminho crítico encontram um modesto, mas seguro refúgio; somente o postulado da contingência das formas deixa entrever um domínio tal de ilusão que a própria diferença entre a luz e as trevas deixa de ter sentido.


[1] GM, III, 12. Podemos falar, portanto, de uma teoria do perspectivismo no sentido de uma ampla determinação da natureza e dos processos de conhecimento e de uma “doutrina” perspectiva dos afetos que implica justamente o perspectivismo no sentido de um conjunto tético desenvolvido por Nietzsche a partir de uma vertente naturalística e historicista, malgrado a inflexão que a genealogia promove nos sentidos de “natural” e “histórico” que afastam o filósofo das teses darwinistas e idealistas.
[2] Compare-se o citado parágrafo com a passagem simétrica em Humano, demasiado humano, § 2. Em ambos os casos trata-se de denunciar a metafísica naquilo que de Platão a Kant constitui seu maior esforço: a estruturação de uma imagem racional do mundo.  Nietzsche só pôde levantar o problema da historicidade das formas racionais a partir de um ponto de vista que já concebe a contingência dessas formas.
[3] É justamente no recurso á teleologia arquitetônica que Kant denuncia explicitamente seu platonismo. O interesse da razão na unidade sistemática termina finalmente por resgatar a idéia de Deus, ainda que como Ideal (Prototypon) regulador. Este recurso não parece tão dogmático se o compararmos à miraculosa conciliação entre a forma lógica do mundo e a forma lógica da linguagem no Tractatus de Wittgenstein (prop. 4.12). De qualquer modo, em ambos os casos, o formalismo não possui um maior apóio que o interesse na estabilidade do mundo, na objetividade, na verdade em sentido platônico.
[4] Na verdade, situamo-nos aqui no cerne da “aporética da coisa em si”, onde duas possibilidades de leitura aparecem naturalmente: 1) ou consideramos a questão somente do ponto de vista de uma leitura rigorosa da Crítica da razão pura e, com a rejeição dos númenos em sentido positivo, rejeitamos também qualquer possibilidade de um uso das categorias fora do campo da experiência — nesse caso a passagem para a razão prática torna-se muito problemática; 2) ou, assumimos a possibilidade de uma intuição não-sensível e assim a possibilidade, tão necessária à razão prática, dos númenos em sentido positivo, com o que a validade do teorema transcendental da objetividade é seriamente ameaçada. “A restrição do conhecimento ao fenômeno não se ajusta tão perfeitamente, como pretende Kant, à utilização prático-dogmática, que ela certamente prepara, mas que, em troca, arrisca a todo momento arrebatar à ciência o monopólio da objetividade” Lebrun. “A aporética da coisa em si” in Sobre Kant, 2001, p. 68.
[5] “...segundo os nosso princípios da crítica, não tem que haver propriamente uma polêmica da razão pura quando se atenta não para aquilo que acontece, mas sim para aquilo que com justiça deveria acontecer” Kant, op. cit,  p. 450.
[6] Marques, A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo, 2003, p.183.
[7] Ibid., p. 9
[8] Para uma detalhada exposição e analise do suposto paradoxo do perspectivismo, bem como das objeções de Habermas seguidas de sua refutação remetemos a Giacóia, “O mais oculto de todos os escondidos”, Olhar, São Paulo, 1999, p.21-28.

2 comentários:

Guilherme Passos disse...

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