terça-feira, 31 de julho de 2012

Fabio Barbieri: o positivismo e as ciências sociais

Abaixo um excelente artigo do prof. Fabio Barbieri sobre a epistemologia das ciências sociais, tendo como base as posições antagônicas dos irmãos von Mises.

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Richard von Mises

Poucos lugares presenciaram tantas contribuições à ciência, filosofia e artes como Viena no final do século XIX e início do século XX. Ao contrário da maioria dos centros culturais, a relativamente pequena elite responsável por esse florescimento não era formada por comunidades dispersas de especialistas, mas por intelectuais que se interessavam pelas novidades em todos os fronts culturais — e as debatiam entusiasticamente nos famosos cafés da capital do Império Austro-Húngaro

Esse fenômeno permitiu o desenvolvimento de um passatempo intelectual moderno: traçar as relações pessoais entre grandes figuras do período. Considere uma pequena amostra dessa atividade: Popper se tornou amigo de Hayek, que era primo de Wittgestein. Mises era colega de escola de Hans Kelsen. Freud atendeu Gustav Mahler. A esposa deste, Alma Mahler, depois de flertar na juventude com Gustav Klint, após a morte do compositor foi sucessivamente esposa do famoso arquiteto Walter Gropius e do escritor Franz Werfel, além do romance que desenvolveu com o pintor Oskar Kokoschka.

Ludwig von Mises
A riqueza da cultura do império austro-húngaro poderia ainda dar origem a outro passatempo: explorar as diferenças de opinião, muitas vezes radicais, entre dois irmãos famosos. Poderíamos analisar as diferenças entre as ideias socialistas do jurista Anton Menger e as ideias liberais de seu irmão, o economista Carl. Na esfera política, seria interessante ainda contrapor o liberalismo de Michael Polanyi com o socialismo de seu irmão Karl. Neste artigo, trataremos das irreconciliáveis opiniões a respeito da metodologia das ciências sociais esposadas pelos irmãos Ludwig e Richard von Mises.







Texto completo em: Instituto Ludwig von Mises Brasil.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Luíz Felipe Pondé - O infiel

Como eu jamais conseguiria ser tão direto sobre o assunto quanto o prof. Pondé, resolvi transcrever esse seu ótimo texto, publicado na Folha de São Paulo e que encontrei no blog do Rodrigo Constantino. Ele mostra que não há companheiro melhor para a verdade que o bom humor.

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Confesso: sou um infiel. Não no sentido de infidelidade amorosa, mas religiosa. Não creio no aquecimento global por causas antropogênicas (trocando em miúdos, não acho que nossos carros estejam aquecendo o planeta, e se o Sol fosse um Deus como uns pirados achavam que ele era, estaria rindo de nós e nossos ridículos celulares).

Freud estava certíssimo quando dizia que a maturidade é para poucos e viver uma infância retardada é um modo "seguro" de não enfrentar a vida adulta, que é sofrida, incerta, injusta e inviável.

Isso mesmo, repito para que meu pecado conste nos autos: não creio que o aquecimento global seja causado por emissão de gás carbônico, acho (inclusive tem cientista que afirma isso, os ecocéticos) que o recente aquecimento começou antes dos últimos cem anos, nos quais nosso gás carbônico cresceu, e ciclos de esquentamento e esfriamento sempre ocorreram.

Inclusive aquele aquecimento que se deu entre 50 mil e 20 mil anos atrás (muito conhecido por quem estuda religiões pré-históricas como eu), foi bem benéfico para nossos ancestrais, assim como também o foi o da Idade Média.

Não há consenso acerca das causas antropogênicas do aquecimento global, há sim consenso (todo mundo que estuda religião sabe disso) ao redor do fato que apocalipse sempre deu dinheiro. Gastava-se dinheiro com indulgências na Baixa Idade Média, por que não seria o medo do fim do mundo ainda hoje uma mina de dinheiro?

O mercado do apocalipse verde tem seus sábios-profetas-cientistas, mágicos, gurus espirituais, nutricionistas-sacerdotes de alimentação sagrada, mercado de cristais sustentáveis, enfim, tudo que há nos fanatismos humanos.

Ninguém saiu às ruas (muito menos nus) pela mecânica newtoniana, pela relatividade de Einstein, pelo empirismo de Bacon ou pelo evolucionismo darwiniano. Aliás, que mania mais "teenager" essa de tirar a roupa toda hora. Já estão barateando os seios.

As pessoas saem às ruas porque o verdismo é uma espiritualidade fanática como qualquer outra, regada a comunismo requentado: o verdismo é uma melancia, verde por fora, vermelho por dentro. A certeza daqueles que não comem carne acerca do pecado dos que comem é mais forte do que a condenação do orgasmo feminino pelas autoridades eclesiásticas mais idiotas que caminharam pela Europa nas Idades Média e Moderna.

 cho que a ciência do aquecimento global que afirma categoricamente que somos nós que aquecemos o planeta está mais para astrologia (sem querer ofender a astrologia) do que para astrofísica. Estamos perdendo um tempo danado deixando que as tribos dos sem-roupa fique atrapalhando um cuidado mais técnico acerca do futuro do planeta.

Isso não quer dizer que não exista um problema de sustentabilidade no mundo, apenas que os fanáticos verdes nem sempre ajudam a enfrentá-lo.

A "verdade científica" em jogo é o que menos importa, mesmo porque nenhuma controvérsia científica ao redor do tema pode ser vista como algo diferente de heresia. Discordar não é ser visto como alguém que debate teorias científicas, como deve ser o convívio saudável em qualquer ciência, mas sim como recusa de adesão a uma forma de verdade superior e pura.

As bobagens do tipo "teoria gaia" ofuscam os corações e mentes, como todo fanatismo sempre o fez, e impede muitas vezes de ver que a natureza em sua beleza é muitas vezes mais Medeia do que Gaia.

Em 1755, quando o grande terremoto destruiu Lisboa, a comunidade intelectual europeia se esforçou para eliminar das causas a "vontade de Deus". Hoje, supostos cientistas reintroduzem a forma mais vagabunda de metafísica na ciência, a da "deusa natureza".

Os coitados do Kant e do Newton nunca imaginaram que um dia iríamos retroceder às trevas assim. Andamos sim em círculos.

A pergunta que não quer calar é: se está certo quem diz que quando se quer saber a verdade sobre a sociedade deve-se seguir o dinheiro, cabe a nós identificarmos quem está ganhando rios de dinheiro com esse fanatismo que já se constituiu em mais um fator a dificultar sairmos do buraco econômico em que estamos.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

L. v. Mises - A singularidade da Economia

O que confere à economia sua posição única e peculiar, tanto na órbita do conhecimento puro quanto na da aplicação prática do saber, é o fato de que os seus teoremas não são passíveis de comprovação ou de refutação com base em experiências.  Certamente, uma medida proposta por um raciocínio econômico correto produz os efeitos desejados, e uma medida proposta por um raciocínio econômico equivocado não atinge os objetivos pretendidos.  Porém, ainda assim, esses resultados são sempre uma experiência histórica, ou seja, experiência de fenômenos complexos.  Não servem para provar ou refutar qualquer teorema econômico.

A adoção de medidas econômicas erradas resulta em consequências não desejadas.  Mas esses efeitos não possuem jamais aquele poder de convencimento que nos é propiciado pelos "fatos experimentais" no campo das ciências naturais.  Só a razão, sem qualquer ajuda da comprovação experimental, pode demonstrar a procedência ou a improcedência de um teorema econômico.

A consequência nefasta deste estado de coisas é impedir que as mentes menos preparadas possam perceber a realidade dos fatos com que lida a economia.  Para o homem comum, "real" é tudo aquilo que ele não pode alterar e a cuja existência tem que ajustar suas ações, se deseja atingir seus objetivos.  A constatação da realidade é uma experiência dura.  Ensina os limites impostos à satisfação dos desejos.  É a contragosto que o homem reconhece que existem coisas — todas aquelas que decorrem de relações causais entre eventos — que não podem ser alterados com base em crenças que decorrem de seus desejos e não de fatos.  Não obstante, a experiência sensorial fala uma linguagem facilmente compreensível.  Não se pode argumentar contra uma experiência feita corretamente.  A realidade de fatos estabelecidos experimentalmente não pode ser contestada.

Mas, no campo do conhecimento praxeológico, nem o sucesso e nem o fracasso falam uma linguagem clara que todos compreendam.  A experiência decorrente exclusivamente de fenômenos complexos não consegue evitar interpretações em que os desejos substituem a realidade.  A propensão, existente nos homens menos preparados, de atribuir uma onipotência aos seus pensamentos, por mais confusos e contraditórios que sejam, nunca é desmentida pela experiência de forma clara e sem ambiguidade.  O economista jamais tem condições de refutar os impostores da mesma maneira que o médico pode refutar os curandeiros e os charlatães.  A história só ensina àqueles que sabem como interpretá-la com base em teorias corretas.

Texto completo em: Instituto Ludwig von Mises Brasil

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Introdução ao pensamento de F.W. Nietzsche


Nota Biográfica

Friedrich Wilhem Nietzsche nasceu em Röchen, Alemanha, a 15 de Novembro de 1844. Estudou Letras Clássicas na Escola de Pforta e na Universidade de Lepzig. Aos vinte e quatro anos torna-se professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia e em 1870 participa da guerra Franco-Prussiana como enfermeiro. Por este tempo, torna-se amigo de Richard Wagner e escreve O Nascimento da Tragédia, seu primeiro livro. Devido a problemas de saúde, que o acompanhariam pelo resto da vida, e que o impossibilitavam de lecionar, recebe aposentadoria da Universidade em 1879 e daí segue uma vida errante em lugarejos da Suíça, França e Itália. Perde a razão no início de 1889 e é levado para um hospital psiquiátrico de Weimar onde vive até 1900, em estado de demência e progressiva paralisia.


Introdução


Desde a última década do século XIX, quando suas obras começaram a ser lidas e seu pensamento difundido, o nome de Nietzsche tem sido ligado às mais diversas correntes de pensamento filosófico, estético e político-ideológico. Partindo de uma primeira difusão na comunidade artística e literária, passando pela questionável apropriação pelo nacional-socialismo, o pensamento de Nietzsche chegou ao século XXI através de apropriações, comentários e influências sobre pensadores tão diversos como Freud, Heidegger, Wittgenstein e Foucault; e correntes de pensamento tão dispares quanto a psicanálise, a filosofia analítica e o existencialismo.
            O próprio caráter assistemático da obra de Nietzsche parece não ter permitido que ele formasse uma “escola” como a de Hegel, de modo que a repercussão de sua filosofia assumiu um caráter disperso e fragmentário, porém cada vez mais ostensivo. Suas diferentes fase e momentos tem se dispersado de modo diverso no pensamento contemporâneo, tornando difícil situar o que, naquilo que hoje pensamos, devemos a esse pensador. Daí a necessidade, para a maior parte dos comentadores, de situar o pensamento de Nietzsche em fases de acordo com os interesses e conceitos diversos que nele emergem. Assim, a periodização mais aceita da obra de Nietzsche é a seguinte:

1ª Fase (1869-1876): Inclui a obra inaugural O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo e as quadro Considerações Extemporâneas, além dos escritos particulares, anotações e projetos inacabados e nunca publicados.  “Temos a arte para não perecer pela verdade” – é a grande máxima desse momento do pensamento nietzscheano. Ao homem teórico e metafísico, Nietzsche opõe a potência criadora da arte; localiza na prevalência do socratismo a razão da decadência do ocidente e deposita no renascimento da arte trágica (que reconhecia na obra de Wagner) sua maior esperança.

2ª Fase (1876-1882): Em cujo escopo estão as obras Humano, Demasiado Humano, Aurora e A Gaia Ciência. Do mesmo modo que anterior, inclui também as anotações particulares do filósofo nesse período. Por este tempo, afasta-se de Richard Wagner e da filosofia pessimista de Schopenhauer. As questões que mais lhe parecem ocupar são as da ciência ao ponto de os comentadores por vezes se referirem a esta fase como de cunho “positivista”. É nessa fase também que a reflexão de Nietzsche começa a se direcionar para o âmbito da moral. Nietzsche agora acredita que a atividade científica poderia ser o principal instrumento para desembaraçar o homem moderno dos padrões religiosos e metafísicos.

3ª Fase (1882-1889): Considerada a fase do pensamento maduro do filósofo e para alguns como Heidegger, a única que apresenta um desenvolvimento filosófico realmente consistente, a terceira e última fase do pensamento de Nietzsche se inaugura com Assim falou Zaratustra, seguido por Para-além do Bem e do Mal, Para a Genealogia da Moral, O caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, Nietzsche contra Wagner, O Anticristo e Ditirambos de Dionísio – acrescidos de vasta produção privada. Quanto aos fragmentos póstumos desse período é digna de nota a publicação no início do século XX de uma compilação dos mesmos com o título A Vontade de Poder, realizada sob os auspícios de sua irmã. A obra hoje se encontra desacreditada, mas exerceu vasta influência sobre a compreensão do pensamento nietzscheano no século XX, vindo a ser utilizada mesmo por Gilles Deleuze, embora tivesse esse filósofo acesso aos “Arquivos Nietzsche” de Weimar. De todo modo, os fragmentos póstumos correspondentes continuam a ser, para os estudiosos, uma dos melhores recursos para lançar luz sobre os textos publicados, geralmente escritos em linguagem mais estilizada.

A seguir apresentamos um resumo dos principais temas e conceitos da filosofia de Nietzsche, tendo como referência principal os escritos de maturidade.


A morte de Deus

A questão do sagrado esteve presente na reflexão nietzscheana desde O Nascimento da Tragédia, mas é com o anúncio da “morte de Deus”, que o filósofo consegue condensar seu diagnóstico da cultura e do homem moderno, do cristianismo, da metafísica e da moral num único e mesmo momento de crise. Pois, de fato, a morte de Deus representa a crise que constitui o fundamento da modernidade e a conduz ao impasse da ausência dos fundamentos. “Fim da metafísica”, descrédito da moral e da fé cristã, desencantamento e mal-estar diante da ausência do transcendente – todos esses temas têm sido ligados, conforme a perspectiva de interpretação, ao anúncio da morte de Deus.
De modo sucinto, pode-se dizer que com o anúncio da morte de Deus, Nietzsche chega ao cerne do problema da condição humana na modernidade, impondo a si mesmo a necessidade de sua resolução. Kant antevira muito bem que na ausência de um Juiz e vigia supremo se perderia o fundamento não só da moral tradicional religiosa, como sobretudo, a moralidade racional se encontraria ameaçada. Mas não é apenas a ausência do transcendente o conteúdo desse pensamento de Nietzsche. A morte de Deus é um assassinato e, portanto, obra humana; obra da vontade de verdade, instaurada pelo socratismo e pela moral escrava. A morte de Deus coloca em questão a própria racionalidade do homem ocidental, o caráter corrosivo de sua vontade de verdade. Daí que a morte de Deus só possa ser anunciada, aos crentes e descrentes, pela figura invertida da razão:

O homem louco – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele estão perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para one nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuía sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará o sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então.” (GC, § 121)


O niilismo

            Com a morte de Deus o homem moderno é posto diante do niilismo. Não se trata mais de um estágio final de uma decadência cultural, mas de um ponto crítico de acabamento, como diria Heidegger: a busca da verdade e do fundamento revela o não fundado da condição humana, de sua moral, de seu conhecimento, pois o conhecimento já não leva à Verdade, embora permita o domínio técnico sobre o mundo; a moral já não conduz ao Bem, que deveria ser recompensado; nem mesmo a arte pode mais se guiar por uma idéia do Belo. Se os homens assassinaram a Deus é porque na própria cultura ocidental, uma vontade de nada já estava inscrita no âmbito da vontade de verdade, instauradora do pensamento racional e da ciência, que o Ocidente herda da Grécia Clássica. Assim, o platonismo e o cristianismo – Nietzsche não distingue os dois, considerando apenas o cristianismo como um platonismo para o povo – fruto dessa vontade racionalizadora, acabam por ser destruídos por ela.


Transvaloração dos Valores


            Embora o tema da moral apareça com maior clareza na segunda fase do pensamento de Nietzsche, pode-se dizer que a questão dos valores morais o atravessa inteiramente. Na fase madura, os problemas fundamentais da genealogia serão a instauração, manutenção e destruição dos valores morais. Nietzsche não pretende que o Bem e o Mal sejam relativos, como já suspeitava Montaigne, mas que sejam construídos historicamente, emergindo em um contexto de disputa entre modos de valoração diferentes. Para o filósofo, a moral judaica, da qual o cristianismo é herdeiro, representa um modo de avaliação dos escravos, dos debilitados fisiologicamente, em relação ao modo guerreiro de avaliar dos povos bárbaros. A própria difusão do cristianismo em Roma significará uma “revolta escrava” na moral, uma inversão valorativa na qual prevalecem o ressentimento e a má-consciência. Essa moral, negadora da vida por excelência, encontra contudo na morte de Deus seu momento terminal. A emergência do niilismo, a corrosão da moral cristã, impõe agora que uma nova instauração de valores seja feita: a superação do niilismo significa, assim, em primeiro lugar, a constituição de um novo modo de valoração.

A Vontade de Poder

            Conceito de difícil interpretação, a vontade de poder foi concebida como fundamento metafísico por Heidegger e como caráter intrínseco de um mundo de forças em perpetuo combate por Deleuze. De modo inicial, podemos entender que com esse conceito Nietzsche busca superar velhas dicotomias metafísicas tais como da alma/corpo, espírito/matéria, animado/inanimado; consciente/inconsciente, etc. Inspirado na Biologia de sua época, Nietzsche procura inicialmente conceber a vida como uma potência de auto-superação e expansão; posteriormente estende o conceito para elidir a diferença entre a matéria animada e a inanimada: concebe a própria natureza como um caos de forças animado pela dinâmica da apropriação.
            Em relação ao problema do niilismo e da transvaloração dos valores, o conceito de vontade de poder responde por ser o fundamento de toda e qualquer valoração, já que toda valoração expressa um modo de vida e cada modo de vida é uma expressão diversa do caráter da vida que é vontade de poder. A superação do niilismo é, neste segundo sentido, afirmação da vida através da afirmação do caráter de auto-superação próprio de sua dinâmica.


Eterno Retorno do Mesmo


            O pensamento do Eterno Retorno, que domina quase que inteiramente o poema filosófico Assim falou Zaratustra, recebe dos comentadores duas interpretações principais: como tese cosmológica ou como imperativo ético. No primeiro sentido, subsidiado por um considerável volume de manuscritos que atestam reflexões nietzscheanas sobre a física do fim do século, o eterno retorno é decorrente do argumento, relativamente simplório, acerca da eternidade do tempo e da limitação da matéria do universo: sendo o tempo infinito – pois para Nietzsche seria inconcebível pensar que o próprio tempo pudesse ter um começo – e a matéria do universo limitada e indestrutível, resta que quaisquer que sejam as transformações a que dá lugar, seu número há de ser sempre limitado; mesmo os eventos particulares de cada vida humana teriam que se repetir eternamente, já que a existência humana prolonga a vida biológica, e esta a interação química, que por sua vez é somente uma escala ulterior da interação física da matéria. É discutível se se trata aqui de uma tese científica, do mesmo patamar da hipótese hoje largamente aceita do “Big Bang” ou, se na verdade, trata-se de uma doutrina eminentemente metafísica. Se consideramos a ciência do ponto de vista da possibilidade de experimentação controlada, verificação ou falseamento de teses, certamente a doutrina do eterno retorno não pode valer como hipótese científica. Seu caráter metafísico se expressaria pela impossibilidade de corroboração ou falseamento: é impossível verificar-se se o universo e o próprio tempo têm um início ou se existem desde sempre.
            E entretanto, Nietzsche considerava tal hipótese mais “científica” que qualquer outra hipótese cosmológica. Isso porque, a doutrina da eternidade do universo exclui a idéia de um Deus criador, ou pelo menos a torna desnecessária. Os antigos gregos, que tinham seus deuses uma cosmogonia, concebiam que o universo mesmo não podia ter início nem fim. E é neles que Nietzsche se inspira para construir sua doutrina.

Se podemos imaginar o mundo como uma quantidade determinada de força e como um número determinado de centros de força – qualquer outra representação permanece indeterminada e portanto “inutilizável” – daí se conclui que o mundo deve atravessar um número avaliável de combinações no grande jogo de dados da existência. Num tempo finito, cada uma das combinações possíveis deverá uma vez realizar-se, ainda mais deverá realizar-se também um infinito de vezes. E como entre cada uma das combinações e seu retorno próximo, todas as combinações possíveis deverão ser percorridas e que cada uma dessas combinações condiciona toda a sucessão de combinações na mesma ordem, demonstraríamos, assim, um movimento circular de séries absolutamente idênticas: demonstraríamos que o mundo é um movimento circular que já se repetiu uma infinidade de vezes e que realiza o seu destino até o infinito. (VP, 384)

            É, contudo, do ponto de vista moral que a doutrina do eterno retorno parece mais fundamental. Se cada vida deve se repetir (e na verdade, já é uma repetição), e se em cada vida cada ato deve ser repetido novamente infindáveis vezes, o pensamento dessa repetição pesa, como o maior dos pesos, sobre o mais ínfimo ato de vontade:

O maior dos pesos – e se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (GC, §341)

sábado, 28 de abril de 2012

Robert P. Murphy, - Psicologia versus Praxeologia

Talvez a característica mais peculiar da economia de Ludwig von Mises seja sua insistência em fazer uma abordagem apriorística - ou seja, dedutiva.  Para Mises, as "leis" econômicas devem ser logicamente deduzidas de axiomas anteriores, de modo que - assumindo que as suposições iniciais sejam verdadeiras - as conclusões alcançadas sejam tão válidas quanto qualquer resultado na geometria euclidiana.

Isso é totalmente contrário ao método dos positivistas, um campo que inclui a maioria dos economistas atuais.  Na opinião deles, a economia só pode ser científica se ela adotar os procedimentos utilizados pelas ciências naturais.  Em termos gerais, os positivistas creem que os economistas devem formular hipóteses cujas deduções sejam testáveis, e então sair coletando dados que meçam a acurácia de suas previsões.  Assim, aquelas tendências que obtêm maior êxito nesse sentido passam a ser consideradas "leis" melhores do que aquelas hipóteses que não corresponderam muito bem aos dados.

Contra as impressionantes ferramentas matemáticas utilizadas pela economia convencional, bem como seu vasto orçamento gasto com coleta de dados, os misesianos humildemente insistem que a economia deve partir da premissa de que os humanos agem.  Esse axioma da ação é o núcleo da "praxeologia" (praxis = ação; logia = ciência), o termo utilizado por Mises para a ciência da ação humana.  Os misesianos argumentam que todas as verdadeiras leis econômicas podem ser derivadas desse simples axioma (algumas vezes com suposições adicionais sobre o mundo, como o fato de que a mão-de-obra impõe custos).

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Tradução de Leandro Roque.
Leia o texto completo em Instituto Ludwig von Mises Brasil

quarta-feira, 21 de março de 2012

Rodrigo Constantino - A falácia do polilogismo

Claro que alguns homens podem pensar de forma mais profunda e refinada que outros, assim como algumas pessoas não conseguem compreender um processo de inferência em longas cadeias de pensamento dedutivo. Mas isso não nega a estrutura lógica uniforme. Mises cita como exemplo alguém que pode contar apenas até três, lembrando que mesmo assim sua contagem, até seu limite, não difere daquela feita por Gauss ou Laplace. É justamente porque todos consideram este fato inquestionável que os homens entram em discussões, trocam idéias ou escrevem livros. Seria simplesmente impossível uma cooperação intelectual entre os indivíduos sem isso. Os homens tentam provar ou refutar argumentos porque compreendem que as pessoas utilizam a mesma estrutura lógica. Qualquer povo existente reconhece a diferença entre afirmação e negação, pode entender que A não pode ser, ao mesmo tempo, o contrário de A.

No entanto, apesar desse fato ser bastante evidente, ele foi contestado por Marx e pelos marxistas, entre eles o "filósofo proletário" Dietzgen. Para eles, o pensamento é determinado pela classe social da pessoa, e o pensamento não produz verdades, mas ideologias. Para os marxistas, os pensamentos não passam de um disfarce para os interesses egoístas da classe social a qual esse pensador pertence. Nesse contexto, seria inútil discutir qualquer coisa com pessoas de outra classe social. O que se segue disso é que as "ideologias não precisam ser refutadas por meio do raciocínio discursivo; elas devem ser desmascaradas através da denúncia da posição da classe, a origem social de seus autores". Se uma teoria científica é revelada por um burguês, o marxista não precisa atacar seus méritos. Basta ele denunciar a origem burguesa do cientista
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Leia o artigo na íntegra em: Instituto Ludwig von Mises Brasil

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Direito Natural X Direito Positivo




1. Introdução

Aristóteles
A polêmica que opõe jusnaturalismo e juspositivismo já se estende desde os primórdios da formulação do pensamento jurídico ocidental. Variando, contudo, a relação entre as duas perspectivas. Pode-se dizer que até o século XIX, o Ocidente foi dominado por uma concepção dualista do Direito: de um lado, as leis naturais ou direito natural (lex naturalis), conjunto de princípios gerais pré-normativos; de outro lado, as leis positivas ou direito positivo, conjuntos das normas efetivamente existentes de âmbito prático.
           
Em seu tratado Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue perfeitamente o direito natural (nomikón physikón) e o direito legal (nomikón díkaion), que podem ser entendidos como equivalendo à distinção moderna entre direito natural e positivo. Na concepção de Aristóteles o direito natural é aquele cuja eficácia se faz valer em qualquer parte independe do corpo social, de sua vontade própria ou das normas por ele estabelecidas. As normas emanadas do direito natural são a própria vontade dos deuses, cujo principal atributo é serem boas em si mesmas. Do outro lado, o direito positivo é aquele que prescreve normas segundo a vontade específica de determinada sociedade. Ora, segundo essa concepção, o direito positivo não pode ser dito “bom em si mesmo” como no caso do direito natural, mas de todo modo, uma vez estabelecido exige sua observância. Há de se acrescentar, outrossim, que, tanto para Aristóteles quanto posteriormente para São Tomás de Aquino, a dualidade direito natural/direito positivo não implicava uma hierarquia, muito embora o filósofo medieval admitisse uma superioridade do direito natural sobre o positivo, tese posteriormente adotada pelos jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII.
           
É de se ressaltar, já desde início, que o jusnaturalismo implica necessariamente um dualismo: o direito natural, qualquer que seja a posição hierárquica ou nível de distinção, deve conviver com o direito positivo, ora com seu complemento, ora como seu fundamento. Já o juspostivismo se concebe contrariamente como uma “teoria da exclusão do direito natural”, ou seja, a concepção positivista se baseia no monismo ou, na formulação de Bobbio, o postitivismo é justamente “ aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, 1996, p. 26). Nesse sentido, pertence intrinsecamente á concepção positivista a exclusividade do direito positivo contra o pseudo-direito natural de tal modo que “o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito”. (BOBBIO, 1996, p.26).
           
Enquanto o jusnaturalismo se caracteriza fortemente pela busca do “direito justo” ao ponto de degradar o injusto em um não direito, os positivistas em geral se recusaram a estender a discussão sobre o direito para além da esfera da própria normatividade. Para estes últimos, o próprio conceito de justiça é extremamente equívoco, vez que, desde Platão, não foi possível dar-lhe um significado unívoco.
           
Nesse sentido, à margem do problema metodológico do monismo e do dualismo, se desdobra esse outro mais filosófico centralizado sobre o problema da justiça. Quando, pois, o positivismo recusa a vincular o direito a qualquer outra esfera, recusando o conceito de justiça para além da normatividade efetiva, parece também ele não escapar de uma aporia: se o direito é esfera independente, donde pode originar-se? Veremos que esta é uma das grandes objeções contra a teoria escalonada de Kelsen.

2. A doutrina dos direitos naturais: origem e desdobramentos

           
Como afirmamos de início, a concepção jusnaturalista pode ser rastreada até os primórdios do pensamento jurídico ocidental na Grécia clássica. Assim, conforme elaborou Bobbio (1996), há três categorias de direito natural, conforme do período de seu desenvolvimento: o direito natural fundado sobre a distinção entre a natureza e o mundo da praxis humana, formulado na Antiguidade Clássica; o direito natural identificado com o direito divino, oriundo das Sagradas Escrituras, que prevaleceu na Idade Média; e o direito natural identificado com a natureza racional do homem, formulado na Idade Moderna.
           
À concepção do direito natural formulada pela antiguidade greco-latina, pode-se com justeza chamar “direito natural cosmológico”, vez que fundado na idéia de que os direitos naturais encontrariam correspondência na dinâmica do próprio universo, a refletir as leis perenes que regem o ordenamento do cosmos. Trata-se de uma concepção que se enraíza no solo da própria cultura grega, mesmo antes do surgimento da especulação filosófica nos moldes como hoje a reconhecemos. Conforme assinala Danilo Marcondes (1997, p 26-35), no período anterior ao século VI a.C (período cosmológico) já despontava um pensamento que pregava a dependência entre a ordem humana e a ordem natural, entre a legalidade da natureza, com seus movimentos eternos, e a lei humana. Em Sófocles, por exemplo, encontramos o confronto entre a lei natural perene e divina e a lei humana, mediante o qual se desdobra a tragédia de Antígona. Tratava-se então de compreende o fundamento último da justiça que fora a necessidade humana para Homero, o valor da comunidade e do trabalho para Hesíodo, a igualdade para Sólon, a segurança para Píndaro, a retribuição para Ésquilo, e assim por diante. Mas desse período, coube justamente a Antígona materializar o primeiro confronto entre o direito natural e o direito positivo. Se por um lado, Antígona teve que pagar por descumprir o decreto legal do reino de Tebas em favor da lei divina que a obrigava para com seu irmão falecido, por outro, Creonte, então governante de Tebas, promete ao fim da obra passar a respeitar o direito natural. A resolução portanto se dá por um compromisso entre o direito natural e o direito positivo. De interesse também para a questão é o fato de que na Orestia de Ésquilo, que narra a fundação mítica dos Tribunais, é o direito positivo, representado pelos tribunais que supre e resolve a antinomia dos direitos naturais antagônicos, muito embora o “voto de Minerva”, deixe claro que a justiça humana não se desgarra da dimensão supra-humana. Nesse sentido, anteriormente ao nascimento da filosofia, pode-se notar já uma concepção do direito natural ligado à ordem da natureza, portanto um direito cosmológico, muito embora frequentemente este venha associado ao plano numênico.

Com o advento dos primeiros filósofos, àqueles aos quais Aristóteles chama “Físicos” por sua preocupação quase exclusiva com o princípio original da physis (natureza), tem-se a consolidação da correlação entre o direito e a ordem da natureza.  Não há aqui entretanto, o desenvolvimento de um pensamento jusnaturalista propriamente falando. Os primeiros filósofos pouco se interessavam pelo direito, ética ou política, estando todo o seu pensamento centrado nas questões cosmológicas.

Assim, o desenvolvimento seguinte do jusnaturalismo se deu a partir do humanismo socrático[1], que se desdobra no idealismo platônico e no realismo aristotélico. Com Sócrates, o pensamento grego se volta para o homem de modo consideravelmente diverso daquele promovido pelos sofistas. Mas muito embora sejam de relevo as contribuições de Sócrates e Platão, principalmente quanto ao conceito de justiça, é com Aristóteles, o terceiro dos grandes filósofos clássicos, que se tem uma teoria do direito e, concomitantemente, uma distinção entre o direito natural e o direito positivo.

Aplicando seu método analítico, Aristóteles distingue entre o justo natural e o justo legal, sendo que o justo natural expressaria a justiça objetiva imutável, pois que não depende da interferência humana. Por outro lado, o justo legal expressaria a lei positiva que se origina da vontade do legislador sofre uma variação espaço-temporal: cada comunidade política institui suas próprias leis conforme seus critérios particulares. 

No período posterior, pós-socrático ou helênico, tem-se a consubstanciação do jusnaturalismo aristotélico, muito embora as preocupações metafísicas tenham dado lugar ao problema da felicidade do homem. Trata-se, como afirmou Reale (1994, p. 627-630) de um pensamento que acaba por fundar uma concepção cosmopolita do homem, consolidando a noção de direito natural que será adotada pela Roma antiga. É pois, a partir da matriz helênica que se desenvolve o pensamento jurídico romano orientado pelo jusnaturalismo.

Com a queda do Império Romano tem início a Idade Média, quando é elaborado e predomina o pensamento cristão. A filosofia cristão medieval foi elaborada a partir de duas matrizes básicas: as Sagradas Escrituras e a filosofia grega. Assim, o jusnaturalismo herdado do pensamento clássico prevalecerá no medievo, porém sob nova formulação, adaptado as exigências da doutrina cristã. Assim, na Idade Média, o jusnaturalismo ser caracteriza por seu conteúdo teológico, cujos fundamentos eram a vontade divina, o credo religioso e o predomínio da fé. Para o jusnaturalismo teológico, o fundamento dos direitos naturais é a vontade de Deus, enquanto que o direito positivo deve guardar concordância com as exigências perenes da divindade.

Agostinho de Hipona
Pode-se identificar duas grandes correntes do pensamento medieval: a patrística, assim chamada por ter sido desenvolvida pelos Padres da Igreja Católica a fim de explicar os dogmas da religião, e a escolástica cujo grande marco é conciliação entre razão e fé. Santo Agostinho, o maior dos patrísticos, elaborou uma distinção entre a lei eterna (lex aeterna) e a lei natural (lex naturalis), sendo a primeira emanação do próprio Deus e por isso absolutamente imutável e a segunda sendo a manifestação da primeira no homem. Trata-se de um desdobramento do conceito clássico de lei natural análogo desdobramento do conceito de Estado em cidade terrena e cidade celeste. Nesse sentido, a lei natural passa a ser a lei eterna manifesta no coração dos homens, enquanto que a lei humana deve de todo modo derivar diretamente dessa lei natural, sendo defeso elabora-se preceitos em contrário sob pena de serem tidos como injustos e ilegítimos.

Já os escolásticos, entre eles o maior, São Tomás de Aquino, procuraram demonstrar que a fé e a razão são diferentes caminhos que levam ao verdadeiro conhecimento. São Tomás, na Suma Teológica, admite uma diversidade de leis (lei divina revelada ao homem, lei humana, lei eterna e a lei natural), mas concebe-as como dependentes umas das outras: A lei eterna é a razão oriunda do divino que coordena todo o universo, incluindo o homem. A natural, o reflexo da lei divina existente no homem. Afirma ele a necessidade da complementação desta pelas leis divina e humana, a fim de se conseguir a certeza jurídica e a paz social, bem como facilitar a interpretação dos julgadores.

Segundo Bobbio (1996) a noção de que o direito natural é superior ao direito positivo constitui uma herança da formulação medieval de tal modo que “desta concepção do direito natural como inspiração cristã derivou a tendência permanente no pensamento jusnaturalista de considerar tal direito como superior ao positivo” (BOBBIO, 1996, p.26)

A partir do renascimento, a concepção do jusnaturalismo teológico foi gradativamente substituída por uma doutrina jusnaturalista subjetiva e racional, fundamentada na razão humana universal. Esse processo consolida-se com a Ilustração, na qual a razão humana pretende fundar um código de ética universal. A razão passa a ser a ordenadora da natureza e da vida social, resultando numa doutrina jusnaturalista que pregava direitos naturais e inatos, titularizados por todo e qualquer indivíduo. Segundo Maria Helena Diniz (2005, p. 38-43), emergem nesse contexto duas concepções de natureza humana: uma, genuinamente social, pregada por pensadores como Grotius, Pufendorf e Locke e outra, individualista, na visão de Rousseau, Hobbes, entre outros.

"O ius naturale já não seria identificado com a natureza cósmica, como fizeram os filósofos estóicos e a jurisprudência romana, nem imaginado como produto da vontade divina. A valorização da pessoa,  que se registrou com a Renascença , atingiu o âmbito da Filosofia Jurídica, quando então o Direito Natural passou a ser reconhecido como emanação da natureza humana." (NADER, 1995, p. 131)


Cesare Beccaria
Compreende-se que no contexto jusnaturalista moderno é a concepção prévia e filosoficamente estabelecida da natureza humana que funda a distinção entre o justo e o injusto, independentemente das leis positivas. Assim, mesmo as leis positivas e o próprio Estado, serão injustos na medida em que contrariam ou extrapolam os limites do justo natural. Consideremos o exemplo de Beccaria, escrevendo no na secunda metade do século XVIII. Para ele, o Estado só aparece em vista da necessidade comum de sobrevivência dos homens, e “as leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independêntes e isolados” (BECCARIA, 1959, p.32). Desse modo, o conceito de justiça se acha circunscrito exclusivamente na esfera das condições de manutenção da sociedade, de tal modo que o direito de punir deve ser considerado como um “mínimo” derivado da menor parcela de liberdade da qual o indivíduo abdica para integrar o corpo social. Nesse sentido, conclui o filósofo: “As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza” BECCARIA, 1959, p.34).

Entretanto, é com a obra de Kant que o jusnaturalismo atinge sua máxima sofisticação. Kant inverte a relação entre a racionalidade e a natureza humana a fim de destacar a racionalidade de outros atributos tradicionalmente considerados sob esta. Para o filósofo alemão, a razão transcendental, dimensão das condições de possibilidade do conhecimento, funda a própria realidade do mundo tal como é conhecido e experimentado. Assim, tanto o conhecimento teórico quanto o conhecimento prático (moral) não se funda na experiência, mas é determinado por leis inerentes à própria racionalidade. Trata-se, no domínio da moralidade, de fundar o agir humano sob um lei racional intrínseca ao próprio conceito de racionalidade, o imperativo categórico, considerando-se a razão prática como legisladora de si e a autonomia como a faculdade racional de impor os limites da ação e da conduta humana.

A doutrina do direito em Kant implica que a justiça se compreende como imperativo da razão, de modo a que, nessa versão do jusnaturalismo, o conhecimento jurídico passa a ser construído pela sistemática da razão, conforme sua capacidade dedutiva e compreende-se como uma crítica da realidade a partir da avaliação crítica do direito em nome de padrões éticos contidos em princípios reconhecidos pela razão humana. Se a razão humana é capaz de se dar sua própria lei de conduta, então não apenas os princípios morais, mas também os princípios jurídicos e o próprio direito positivo não teriam outra fonte de legitimidade senão essa lei inerente à racionalidade.

A ascensão do positivismo jurídico se faz a partir de uma crítica ao jusnaturalismo. De modo geral, a doutrina jusnaturalista pode ser resumida em dois pontos: dualidade do direito natural e positivo, superioridade daquele em face deste. Afora esses dois princípios gerais, o jusnaturalismo se desdobra em um sem número de teorias e visões diferentes. Para melhor se compreender as críticas positivistas a doutrina dos direitos naturais é útil fazer uso da classificação de Bobbio que a divide em três formas: escolástica, racionalista e hobbesiana.

Na forma escolástica, o direito natural é definido como conjunto de princípios gerais éticos que servem ao legislador de inspiração para elaborar o direito positivo. As leis positivas, então, derivam dos princípios éticos naturais quer por conclusão, à semelhança da operação do silogismo, quer a partir de determinação, quando cabe ao direito positivo estabelecer de modo concreto a aplicação dos princípios gerais do direito natural.

A crítica positivista a esta forma de direito natural se deve ao fato dos positivistas não aceitarem a existência de princípios éticos universais. Considerando-se que não há uma ética universal, os positivistas se recusam a reconhecer que quaisquer princípios conformariam leis imutáveis, válidas por si mesmas independente do tempo, da sociedade e das transformações culturais.

Sob a forma racionalista, o direito natural é concebido como um conjunto de princípios racionais que fornecem o conteúdo para a regulamentação das normas. Assim, cabe ao direito natural fornecer conteúdo às normas do direito positivo. Nesse caso, o direito positivo é o próprio direito natural (seu conteúdo) somado á coação. O que é próprio ao direito positivo é a forma coativa mediante a qual ele vige entre os homens, enquanto que seu conteúdo permanece como que emanado diretamente dos ditames da racionalidade. O direito é, por isso, todo natural e sua positivação serve apenas à possibilidade de aplicação do mesmo. Do direito natural ao positivo, conforme assinala Bobbio, o que muda é meramente a possibilidade de seu exercício:

O estado civil nasce não para anular o direito natural, mas para possibilitar seu exercício através da coação. O direito estatal e o direito natural não estão numa relação de antítese, mas de integração. O que muda na passagem não é a substância, mas a forma; não é, portanto, o conteúdo da regra, mas o modo de fazê-la valer.
           

À esta segunda forma, os postivistas opõe o argumento de que o que torna uma conduta uma regra não é o seu conteúdo, mas o modo de criação ou execução. Assim, o conteúdo não pode fundar a legitimidade da forma, mas é a forma que determina a judicialidade do conteúdo.

A terceira forma de jusnaturalismo, cognominada por Bobbio de hobbesiana é aquela que aponta o direito natural como fundamento do direito positivo e do pode de legislar. O direito natural garante a legitimidade do poder de legislar para que este estabeleça o ordenamento positivo. Trata-se de uma visão diametralmente oposta à racionalista. Se naquela o direito positivo é todo natural, nesta o direito natural é todo positivo, uma vez que este é fundamento do poder de legislar.

Por fim, a esta terceira via naturalista, os positivistas não admitem que o fundamento das normas jurídicas possa ser encontrado em outra forma de direito, mas que deriva do princípio de efetividade. Para eles, as normas jurídicas emanam da própria ordem jurídica e não de um elemento ou ordem exterior. É a própria ordem positiva que funda a necessidade de obediência da norma.

Conforme conclui Auto de Castro (1954, p. 28), a doutrina jusnaturalista não é capaz de oferecer nenhuma teoria apropriada para definir o direito justo. As correlações entre direito, legitimidade e justiça permanecem precárias em todas elas, de tal modo que deve sempre recorrer a postulados metafísicos inaceitáveis para a epistemologia contemporânea.

A primeira razão para se rejeitar o jusnaturalismo seria a constatação de que este confunde os planos do ser e do dever-ser, implicando o direito injusto como um não-direito. O direito positivo só poderia ser aceito, na maior parte das concepções naturalistas, se estivesse em perfeita consonância com a justiça, do contrário, configuraria mera imposição de força por um poder constituído.

Para os críticos o jusnaturalistas não seria capazes de visualizar a bipolariadade axiológica, dado o fato aceito epistemologicamente de que juízos de valor e juízos de fato estão em planos diverso de apreensão cognitiva. Daí a assertiva naturalista de que o direito injusto não é direito de modo algum.

Mas a principal dificuldade do jusnaturalismo está na caracterização do conceito de justiça. Em que pese a reformulação do mesmo pelos teóricos contemporâneos, tal conceito permaneceria ainda arraigado numa concepção metafísica a-histórica, a-temporal e a-espacial.

Hans Kelsen
A crítica de Kelsen ao juspositivismo não é menos radical. Segundo o grande jurista a impossibilidade de se falar em direitos naturais deriva do caráter precário da teorização nesses termos que, de qualquer modo, só seria capaz de estabelecer um juízo de valor altamente subjetivo. Ainda segundo ele, tais juízos não se fundariam senão em uma necessidade de auto-ilusão:

... a justificação racional de um postulado baseado num julgamento de valor, ou seja, num desejo como, por exemplo, o de que os homens devem ser livres, ou de que todos os homens devem ser tratados igualmente, é uma auto-ilusão ou – o que equivale a dizer a mesma coisa – uma ideologia. (Kelsen, 200, p.12)

3. O positivismo jurídico


O positivismo jurídico pode ser definido como um desdobramento do próprio ideário iluminista em torno da razão. Trata-se de dar um estatuto científico ao direito proclamando sua independência de todas as demais esferas. É, de todo modo, um desenvolvimento do racionalismo moderno, o mesmo que, culminando em Kant, funda o direito natural sobre a natureza da razão humana.  

O direito positivo tem sua base ideológica no Positivismo de Comte, constituindo o direito obrigatório, promulgado, garantido por sanções e cuja aplicabilidade é exercida por órgãos institucionais:
           
Direito positivo tem dimensão temporal, pois é o direito promulgado (legislação) ou declarado (precedente judicial, direito anglo-americano), tendo vigência a partir de determinado momento histórico, perdendo-a quando revogado em determinada época. Reflete valores, necessidades e ideais históricos. É o direito que tem ou teve vigência. Tem também dimensão especial ou territorial, pois vige e tem eficácia em determinado território ou espaço geográfico em que impera a autoridade que o prescreve ou o reconhece, apesar de haver a possibilidade de ter eficácia extraterritorial. Por exemplo, nosso Código Civil, válido em todo o território nacional. (GUSMÃO, 2006, p. 54)


Positivistas por excelência, Hans Kelsen, Alf Ross, e Hebert Hart desenvolveram pensamentos que ajudaram para a evolução do Iuspositivismo. Hart interpretou o Direito como um sistema de regras primárias – regras de comportamento – e regras secundárias – regras que conferem poderes ou se referem a outras normas. Kelsen, no entanto, limitou o Direito a noções meramente ideológicas e conceituou a norma fundamental, considerada por ele uma norma suprema; embora não pertencendo ao Direito Positivo. Para Ross, membro da Escola Escandinava4, essa norma está presente na constituição formal; é ela quem permite instituição de emendas e a reforma da Constituição

A partir da compreensão de Bobbio, pode-se falar de três formas básicas de positivismo compreendido ora como ideologia, ora como teoria do direito, ora como metodologia.

Segundo a primeira caracterização, as leis válidas devem ser obedecidas incondicionalmente, independentemente do conteúdo das normas. O justo aí se concebe meramente como o que emana da validez da norma, tal como é concebido pelo formalismo ético.

De acordo com a noção do positivismo como teoria do direito, o direito reduz-se ao direito estatal, ou seja, a todo produto da conduta humana produzido pelo Estado, uma vez que o Estado detém a forma de criação das leis através da atividade legislativa. Tem-se aqui o formalismo científico. O positivista, então, quanto a teoria do direito, realiza uma operação lógico-semântica: as regras são derivadas do legislativo, independente do seu conteúdo. Conforme afirma Bobbio:

Por positivismo jurídico como teoria entendo aquela concepção particular do direito que vincula o fenômeno jurídico a formação de um poder soberano capaz de exercer a coação: o Estado. Trata-se daquela comum identificação do positivismo jurídico com a teoria estatal do direito. (BOBBIO, 1965, p. 43)


Kelsen é explícito na conceituação de sua “Teoria pura”: “A teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo, é uma teoria do direito em geral, não uma teoria sobre uma ordem jurídica específica. É uma teoria geral sobre a lei.

Kelsen concebe o direito como uma ordem, como um conjunto de normas que guardam entre si relações específicas. Não apenas um conjunto qualquer, mas uma ordem normativa. Ademais, a norma funciona como esquema de interpretação dos atos. Conforme assinala Ordónez:

O que faz deste evento um acto lícito (ou contrário à lei) não está na sua realidade, no seu habitat natural - ou seja, em que será determinada por leis causais, contidos no sistema de Natureza - mas o sentido objetivas relacionadas a ele, o siginificación com essa conta. Em causa o evento atinge seu sentido especificamente jurídico, o seu próprio significado na lei, através de uma regra que se aplica a ele com seu conteúdo, o que lhe dá sentido na lei, para que o ator pode ser interpretada como uma norma.
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Do que se depreende que o mundo jurídico e o mundo natural estão em esferas absolutamente distintas, tendo o direito, em sua própria dimensão, as condições mesmas de sua significação e legitimidade. É o ordenamento jurídico que, por fim, sustenta e origina a norma e sua interpretação, não uma instância externa ou outra forma de direito.

Por fim, de acordo com Bobbio, tem-se o positivismo como uma atitude científica, uma metodologia da ciência do direito:

“En esta primeira acepción de positivismo jurídico, positivista es, por conseguinte, aquel que asume frente al derecho uma actitud a-valorativa o objetiva o éticamente neutral;” (BOBBIO, 1965, p. 42 )

Essa distinção é relevante na medida em que as acepções metodologica, teórica e ideológica não estão necessariamente vinculadas logicamente. Conforme assinala, Bobbio:

A assunção do método positivista não implica também na assunção da teoria juspositivista. A relação de conexão entre o primeiro e a segunda é uma relação puramente histórica, não lógica (...) Do mesmo modo, a assunção do método e da teoria juspositivista não implica a assunção da ideologia do positivismo ético”. (BOBBIO, 1996, pp. 233-238)


Ora, o juspositivismo vem sofrendo severas críticas desde a segunda metade do século passado. De modo especial, a ideologia positivista que implica na obrigatoriedade do direito estatuído tornou-se passível de grande desconfiança frente à ascensão do totalitarismo e de ditaduras das mais diversas índoles. É fato notório que o Terceiro Reich de Hitler foi sustentado sobre a constituição da República de Weimar e que a maior parte dos atos estatais desse governo se desdobrou em atos jurídicos positivados. Do mesmo modo, as ditaduras anti-comunistas que emergiram em diversas partes do mundo no contexto da Guerra Fria instauraram ordenamentos jurídicos próprios que judicializaram o modo de atuação dos governos contra a resistência de setores ditos “subversivos”. Nesse sentido, o respeito absoluto às leis, às regras do jogo, pode tanto resguardar o cidadão do arbítrio como solapar suas possibilidades de resistência. "Nós nos encontramos, assim, na melhor situação para nos dar conta da extrema instabilidade das ideologias jurídicas, cujo valor progressista ou reacionário depende das circunstâncias históricas em que são sustentadas" (BOBBIO, 1965, p. 8-9)

É certo que o positivismo contemporâneo se apresenta principalmente sob a forma teórica, podendo-se descatar os aspectos metodológicos e ideológicos. Nesse sentido, a polêmica jusnaturalismo versus juspositivismo se dará, fundamentalmente, ao nível da teoria do direito a partir do ressurgimento do jusnaturalismo e da reformulação do juspositivismo, decalcado de seu viés ideológico.

4. Jusnaturalismo versus juspositivismo: polêmica e alternativas


Conforme nos informa Paulo Gusmão (1985, 30-32), o jusnaturalismo que sob as críticas positivistas havia sofrido um refluxo no século XIX, retorna durante o século XX, principalmente depois da Segunda Guerra em torno da renovação do debate sobre a justiça. O autor destaca as obras de Rudolf Stammler e Giorgio Del Vecchio. Para o primeiro, o jusnaturalismo teria um conteúdo variável, portanto não vinculado ao conceito de natureza humana. O segundo, procura fundar o direito natural sob uma base idealista depurada, tornando compatíveis os conteúdos históricos com o ideal do justo.

Assim, o jusnaturalismo contemporâneo procuraria incorporar as críticas positivistas a fim de reconhecer a relatividade do conceito de justiça, sustentando que cada cultura valora ao seu modo. A Justiça deixa de ser um conceito perene e imutável para se apresentar como possibilidade de configuração de um direito justo. Em cada sociedade haverá uma forma de vivenciar o direito justo, enquanto a própria justiça se reduz a um anseio fundamental do ser humano.

Assim, a primeira alternativa à polêmica se dá por uma reformulação da doutrina dos direitos naturais, na tentativa de afastá-la de seu viés metafísico, incorporando e tentando superar as principais críticas desenvolvidas pelos positivistas. O jusnaturalismo assistiu, assim, a um renascimento em nossos tempos e, contudo, apesar de ter-se empreendido com sucesso uma crítica à posição positivista, o conceito de direitos naturais está longe de ser bem aceito no mundo acadêmico. Esse fato, facilmente explicado pela natureza intrinsecamente metafísica do conceito, contudo, não impede que o pensamento jurídico atual venha a retomá-lo sob a forma da doutrina dos direito humanos, centralizada sobre a convicção de que todos os seres humanos têm igualmente o direito de serem respeitados pelo simples fato de sua humanidade.

Nesse sentido, de acordo com D’agostini, a atual noção de direitos humanos permanece tributária da velha aspiração jusnaturalista pela constituição de uma ordem jurídica calcada na justiça:

Os direitos humanos, com efeito, nada mais são que o modo no qual se apresentam em nosso tempo – e de uma forma particularmente aguda – as instâncias mais profundas do jusnaturalismo. Os direitos humanos não são benévolas concessões que os Estados ou suas Constituições fazem aos cidadãos (...); constituem na verdade a maturação definitiva no nosso tempo da ideia - tipicamente jurídica - do primado da justiça no mundo humano. (D’AGOSTINI, 2004, p. 27-28)


Para o estudioso supracitado, a conversão do jusnaturalismo na doutrina dos direitos humanos, conserva o princípio fundamental do direito justo, exigência essa escola de pensamento. Pode-se considerar que a própria Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 promulgada no âmbito da Revolução Francesa já traz as marcas indeléveis do jusnaturalismo racionalista da mordernidade, principalmente de Locke e de Rousseau.

Assim, a própria concepção de direitos do homem já nasceria no interior da corrente jusnaturalismo, marcando a passagem entre a doutrina teológica para a doutrina racionalista. Nesse caso, segundo a noção propagada pela Declaração, o homem seria titular de certos direitos pelo simples fato de ser homem. Fato este que nos autoriza a compreender que as expressões “direitos humanos” e “direitos naturais” passam a ser intercambiáveis. De fato, a Declaração não visa estabelecer direitos, mas reconhecê-los, donde se deduz que os direitos mesmos já se consideravam estabelecidos. Entretanto, o dimensionamento internacional dos direitos humanos é um fenômeno relativamente recente, remontando ao fim da Segunda Guerra Mundial e das tragédias que a sucederam na segunda metade do século XX, levando a uma revisão das condições jurídicas sob as quais se tornaram possíveis.

Contudo, a conceituação dos direitos humanos enfrenta desafio análogo ao do reconhecimento de direitos naturais pré-existentes. Isso porque os conceitos não se fixa definitivamente sobre um rol de direitos imediatamente reconhecíveis e depende, em grande parte, do mesmo esforço teórico para fazer derivar um conteúdo jurídico da natureza e condição humana. A teoria dos direitos humanos esbarra aqui justamente na crítica que os positivistas dirigiam ao jusnaturalismo escolástico: não há critério para se reconhecer uma ética universal acima das condições particulares de cada cultura. Assim, o primeiro desafio teórico da doutrina dos direitos humanos deve ser a superação da dicotomia universalismo/relativismo que enseja tal dificuldade.

É preciso reconhecer aos direitos humanos um caráter universal, vez que derivam da própria condição humana. Isso, contudo, não significaria um retorno ás concepções teológicas ou mesmo racionalistas dos direitos pré-existentes. Segundo Lima Benvenuto (2001, p. 57):

Há pelo menos duas concepções para o termo universalidade dos direitos humanos. A primeira, surgida na Antiguidade e que teve seu apogeu com a consagração da Revolução Francesa, atribui validade absoluta, portanto eterna aos direitos humanos. Por conta de sua natureza humana, todos os homens teriam certos direitos garantidos, seja por uma força cósmica, por Deus ou pela razão. O segundo sentido para o termo universalidade refere-se a um processo histórico pelo qual os direitos humanos são válidos e exigíveis em toda parte, num determinado tempo, em função das lutas sociais vivenciadas ao longo dos séculos. Neste sentido, o acúmulo de uma consciência de humanidade, pela qual o ser humano buscaria melhorar (...). Esta segunda acepção da universalidade dos direitos humanos parece ser apropriada ao entendimento atual da questão.


Impossível, pois, não reconhecer na doutrina dos direitos humanos, hoje tão difundida, um desdobramento da escola do direito natural. Há de fato uma conexão histórica e, ademais, lógica entre tais conceitos de tal modo que resta incompreensível o conteúdo conceitual específico da expressão “direitos humanos” se dela afastarmos sua matriz naturalista. Contudo, a construção teórica em torno dos direitos humanos pode, hoje, abdicar das teses mais fortes do jusnaturalismo, justamente aquelas que lhe traziam maiores dificuldades frente aos positivistas.

5. O positivismo inclusivo e a questão da moralidade


Uma vez que, principalmente no âmbito da filosofia do direito alemão pós-guerra, o positivismo tornou-se alvo de muitas críticas, a segunda alternativa de superação da polêmica se dá por uma reformulação da doutrina do direito positivo a fim de assegurar em seu âmbito um espaço para a moralidade. Surge, assim, no contexto do debate Raz-Dworkin, uma terceira via que se pode nominar “positivismo inclusivo”. Dworkin defendeu a tese de que o direito válido não poderia ser reconhecido a partir da remissão a fatos sociais, vez que certos parâmetros utilizados pelos juízes fundam sua validade em razão de sua correção moral. Nesse sentido, o direito estaria necessariamente ligado a moral, sendo que a interpretação do direito se daria à luz dos parâmetros morais. Por outro lado, Raz afirmava que a validade de qualquer norma jurídica só pode ser determinada por fatos sociais independes de quaisquer conteúdos morais, concebendo o direito e a moral como esferas absolutamente distintas. Encontra-se, assim, instaurada uma polêmica interna no positivismo entre a versão inclusiva e a versão exclusiva.

A síntese entre as duas concepções se dá a partir do reconhecimento de que, muito embora, nos sistemas jurídicos atuais o direito e a moral estejam interligados, este fato não implica uma conexão lógica, mas somente empírica e circunstancial, não sendo contraditório imaginar um sistema jurídico no qual estas esferas estejam perfeitamente segregadas. Estando de acordo sobre a tese central do positivismo teórico: a existência do direito depende de fatos sociais, i. e., práticas realizadas por membros de determinada comunidade, os positivistas inclusivos e exclusivos divergirão aqui quanto a necessidade de recorrer-se a uma esfera exterior para a interpretação da norma.

Vale lembra que na construção escalonada de Kelsen, cada norma jurídica retira sua validade de uma norma que lhe é hierarquicamente superior e, sucessivamente, até a norma fundamenta, pressuposto de validade de todo o sistema. Todas as normas jurídicas válidas se estabeleceriam a partir de sua promulgação em conformidade com a norma fundamental. Evidentemente essa concepção está sujeita a uma crítica imediata: tendo que deter o regressus ad infinitum pelo estabelecimento de uma norma fundamental, não se pode mais razoavelmente apresentar um fundamento de validade dessa mesma norma, nem explicar sua autoridade.

A dependência do direito em relação aos fatos sociais, portanto, não é somente a tese central do positivismo, é também seu “calcanhar de Aquiles”, o ponto no qual a teoria se fragiliza e dá margem a divergências entre os próprios juspositivistas. Nesse sentido, os positivistas exclusivos, adotam uma variação forte da tese e, como Kelsen, advogam que todas as normas jurídicas, primárias ou secundárias, dependem unicamente dos fatos sociais. Já os positivistas inclusivos, reconhecem que certas normas primárias podem fundar sua validade sobre a correção moral, desde que isso seja previsto pela norma de reconhecimento. Para estes últimos a tese da derivação dos fatos sociais é ainda válida plenamente quanto à regra de reconhecimento do direito, mas não o seria quanto a certas normas jurídicas primárias reconhecidas por ela.

De fundamental importância para a questão é a tese da separabilidade entre direito e moral, segundo a qual não há conexão entre as duas esferas e qualquer coincidência nesse sentido deve ser compreendida como um fato contingente. Trata-se de um corolário da tese da dependência dos fatos sociais, uma vez que se direito deriva unicamente dos fatos sociais, não há de ser possível conectá-lo logicamente com uma esfera exterior.

Entretanto, é fato que os positivistas reconhecem que são frequentes as coincidência entre as normas morais e as normas jurídicas. O que distingue aqui os positivistas inclusivos dos exclusivos é que estes últimos adotam uma teoria estrita da independência: as normas jurídicas são sempre independentes conceitualmente das normas morais, na medida em que se pode teoricamente fundar a autonomia dos sistemas jurídicos. De outro modo, os positivistas inclusivos, afirmam uma tese mais fraca, qual seja, de que é possível, mas não necessário, estabelecer a autonomia do sistema jurídico em face da normatividade moral. Assim, a tese da separação dá lugar a uma tese da separabilidade, de modo a que o fato empírico, frequentemente verificado, da convergência entre a norma moral e a norma jurídica não é capaz de solapar o fundamento da tese.

Nesse sentido, para os teóricos do positivismo jurídico inclusivo, a rejeição da tese da conexão entre direito e moral é de ordem analítica, ou conceitual, mas nada impede que, em uma contingência histórica, critérios morais sejam incorporados a um ordenamento jurídico específico, de maneira que o estabelecimento do direito válido e a realização de sua interpretação passem a depender não apenas de elementos formais de validade, como também de parâmetros substanciais de justiça. Desse modo, é acertado dizer que o positivismo jurídico inclusivo, como qualquer teoria positivista, pressupõe a tese da separabilidade conceitual entre direito e moral, mas admite a conexão eventual entre direito e moral, a depender de questões de natureza fática, diferenciando-se, por conseguinte, do positivismo jurídico exclusivo, que, conforme anteriormente salientado, não admite qualquer papel desempenhado por normas morais no exame da validade jurídica das normas de um dado ordenamento jurídico.

Compreende-se, portanto, que a versão “inclusiva” do positivismo jurídico constitui um conjunto de versões enfraquecidas das principais teses juspositivistas, de tal modo a que arrisca-se a desfigurar o próprio núcleo teórico do positivismo. Por outro lado, a tese não parece ser suficiente para conciliar o positivismo e o naturalismo, de modo a que a aproximação permanece precária e insuficiente em face das exigências da doutrina dos direitos naturais, uma vez que relega a convergência entre normas morais e normas jurídicas ao plano meramente factual, desdobrando ainda uma versão rigorosa do positivismo no plano teórico.

Desse modo, não acreditamos que o chamado “positivismo inclusivo” logre superara sustentavelmente a polêmica entre jusnaturalismo e juspositivismo. Na verdade, configurando-se como uma versão enfraquecida do positivismo jurídico, tal tendência uma versão suficientemente decalcada do positivismo para escapara às principais críticas ao mesmo, sem, contudo, tornar admissível, sequer em parte, a noção de direitos naturais. O apelo à moralidade, empiricamente sustentada, não se concebe como um acordo como o naturalismo hobbesiano, uma vez que o fundamento da regra de reconhecimento permanece vinculado à tese da derivação dos fatos sociais.

A nosso ver, o principal obstáculo à superação da polêmica está no fato de que, enquanto, o naturalismo é necessariamente dualista, o positivismo é, ao menos conceitualmente, monista. Mesmo o positivismo inclusivo não abandona o monismo ao conceder um espaço fático à moralidade. A teoria permanece monista uma vez que a convergência entre normas morais e jurídicas se dá tão somente no âmbito empírico. Assim, afirmar-se que certas regras primárias, reconhecíveis positivamente, podem receber seu fundamento de validade da correção moral, ao nível de sua interpretação, é ainda muito diferente de afirmar que tais normas valem por sua correção moral. Se no primeiro caso, temos somente uma versão enfraquecida do próprio positivismo, no segundo dificilmente se reconheceria uma tese positivista.

De fato, devido ao núcleo epistemológico da confrontação (monismo versus dualismo) não parece possível uma plena síntese entre as duas doutrinas, havendo de se considerar os compromissos das versões recentes como demonstração da insuficiência de ambas em vista da satisfatória teorização do fenômeno jurídico. Há de se reconhecer que tanto o naturalismo na versão relativista quanto o positivismo na versão inclusiva só podem se aproximar porque constituem versões enfraquecidas das teses centrais de cada doutrina.

De acordo com Massini Correas (1994, p. 207-208), a confrontação entre jusnaturalismo e juspositivismo constitui, do ponto de vista lógico, uma oposição de contradição, o que implica dizer que se uma é falsa a outra é verdadeira e vice-versa. De fato, o núcleo da polêmica (monismo X dualismo) não pode ser contornado, nem esta apto a ensejar uma síntese. Donde se conclui, logicamente, que a superação da polêmica só pode dar-se pela aceitação de uma das teses fundamentais e recusa da outra, ou, em outras palavras: ou se admite a existência de princípios metapositivos para além da normatividade efetiva ou nega-se os mesmos. Segundo o princípio lógico do tertium non datur, não pode haver uma terceira alternativa. Deste modo, fundada a polêmica sobre uma contradição lógica, sua superação não pode se dar por uma síntese ao modo dialético, mas pela eleição de uma nova doutrina fundada quer no monismo quer no dualismo.


5. Considerações Finais



Que resposta haveremos de dar a questão fundamental com a qual nos ocupamos no presente trabalho, a saber, como superar a polêmica entre jusnaturalismo e juspositivismo? Concluímos que a oposição entre tais doutrinas é de contradição, de modo a que inevitavelmente deve-se fazer uma escolha entre o monismo defendido pelos positivistas e o dualismo defendido pelos naturalistas.

Ao nosso ver, o monismo se mostra intrinsecamente deficitário frente aos desafios estabelecidos para a ciência do direito ao longo do século XX. Por mais que o positivismo inclusivo esclareça a coincidência entre certas normas jurídicas e normas morais,tal coincidência factual é insuficiente do ponto de vista teórico uma vez que deixa intacto o fundamento da tese positivista da derivação dos fatos sociais.

Entretanto, é precisamente o fato de que o positivismo em qualquer de suas versões, não assegure que a ordem jurídica possa ser agenciada por regimes de tirania, voltados contra os indivíduos que mais dificuldade traz à aceitação atual dessa doutrina. De fato, exige-se, frente as catástrofes do século XX, que a ordem jurídica se coordene com a dignidade da pessoa humana e não possa ser voltada contra ela.

Desse modo, no atual contexto do debate acadêmico e das perspectivas políticas, a aceitação, em princípio, do dualismo naturalista nos parece inevitável. Isso porque, à medida que os chamados direitos humanos ganham grande espaço na discussão jurídica e moldam a formação dos ordenamentos jurídicos, é necessário reconhecer em tal doutrina o antigo anseio jusnaturalista por um direito justo. O que no caso atual se converte no anseio por um ordenamento jurídico que se acomode às garantias de preservação da dignidade humana.



REFERENCIAS 

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone editora, 1996.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.54.

CASTRO, Auto de. A ideologia jusnaturalista: dos estóicos à O.N.U. Salvador: S. A. 

LIMA JÚNIOR, Jayme Benvenuto. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia do direito natural. Salvador: Progresso, 1957.

MASSINI CORREAS, Carlos Ignacio. Los derechos humanos en el pensamiento actual. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994.

______. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994.

NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1995, 4. ed, p. 131




[1] Cf. Machado Neto , 1987, pp. 339-342