domingo, 3 de outubro de 2010

FOUCAULT ( I )



Las meninas. Velázquez
Se é verdade que do ponto de vista da História da Filosofia a modernidade nasce a partir da fundação da metafísica cartesiana do sujeito, não é menos verdade que o espaço arqueológico aberto por Foucault executa uma importante inflexão no sentido da temporalidade desta história e da determinação da organização do pensamento a partir da descoberta da configuração geral do mesmo: a epistémê. O questionamento da arqueologia foucaultiana, em seu minucioso procedimento de revirar os arcabouços da história, não é, contudo, pela condição de possibilidade de um determinado pensamento ou do pensamento de modo geral – não se trata, aqui, de uma avaliação epistemológica ou transcendental – mas da forma como estes pensamentos ou discursos se organizam, aparecem e desaparecem, podem ser pensados em determinadas épocas e não em outras, brotando de um determinado solo epistémico que lhes sustenta e possibilita seu surgimento. Não se trata muito menos de uma história ou de um procedimento historiográfico, mas de um empreendimento muito mais essencial que busca determinar as rupturas, limiares e limites da três diferentes ordens de pensamento que vigoraram na cultura ocidental as partir do abandono da concepção aristotélica da Idade Média. É a essa arqueologia, cujos fundamentos ainda precisaremos determinar, que recorreremos a fim de elucidar a questão primaria que inquietou o pensamento ocidental desde o séc. XVII: o problema da subjetividade.

Foucault não nega que o cogito cartesiano exemplifica e como que inaugura uma nova era da historia do ocidente, mas esta não é a modernidade, e o classicismo que, abandonando o jogo das similitudes da Renascença, institui-se com uma nova epistémê, que, apesar de possuir em Descartes seu mais ilustre representante não se reduz ao mesmo: “Embora possamos dizer que a idade clássica é, fundamentalmente, cartesiana, e a leitura original das Regulae demonstra isso, não podemos cair na armadilha reducionistra do autor ou da obra” (TERNES, 1998: 21); ou ainda nas palavras do próprio Foucault: “... esse é um fenômeno geral da cultura do século XVII – mais geral que a ventura (fortune) singular do cartesianismo”

A idade clássica é a idade da representação em que o universo pode ser ordenado através da análise e unicamente pelas vias da razão.[1] Isso não impede, entretanto, que a incompatibilidade entre representante e representado perpasse toda a idade clássica. Ora, a epistémê do classicismo não pode assegurar o representante e o representado ao mesmo tempo, e, na medida em que a representação representa-se como pura representação, o “lugar do rei” – como em las meninas de Velásques – permanece vazio; a pergunta pelo fundamento da representação é impossível. Entretanto, é na medida em que esta incompatibilidade desaparece que o ocidente experimenta outra curvatura na forma de seu pensamento e a idade clássica desaparece, como também havia desaparecido a Renascença, retrai-se sobre si mesma para que a modernidade possa constituir-se.

Foucault utiliza as empiricidades para demonstrar o desenvolver-se da passagem da epistémê clássica para a epistémê moderna. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a História Natural só se torna possível a partir da configuração ordenativa e taxinomica da epistémê clássica, ela deve ceder lugar à Biologia tão logo o classicismo desapareça. O mesmo acontece com a Análise das Riquezas e com a Gramática Geral que só podem fundar-se no solo clássico, sendo substituídas, respectivamente, pela Economia Política e pela Filologia na aurora da idade moderna. É imprescindível observar que a História Natural, a Análise das Riquezas e a Gramática Geral não são formas menos desenvolvidas da Biologia, da Economia e da Filologia, respectivamente. Na verdade, não há nenhuma relação de parentesco entre elas, pertencem a épocas diversas e à formas diversas de pensamento.

Encontramo-nos, então, no limiar da modernidade, cuja epistémê determinará o surgimento de um novo personagem na história do pensamento ocidental ao lado das novas empiricidades: o homem. O pensamento de Kant aparece, então, como exemplo mais visível da configuração epistémica da modernidade. Entretanto, se para alguns filósofos, a exemplo de Husserl, Kant não é mais que um continuador do projeto cartesiano de uma metafísica do conhecimento com sua filosofia transcendental; ou ainda para Heidegger que vê na filosofia crítica de Kant a continuidade de um longo error da metafísica iniciado por Platão; ao contrário, para Foucault o “Eu penso” kantiano tem tanto a ver com o cogito cartesiano quanto a Biologia tem a ver com a História Natural, ou a Economia com a Análise das Riquezas; muito pelo contrário, são pensamentos frutos de epistémês diversas que jamais poderiam conviver sob o mesmo estatuto ou sob a mesma ordem discursiva. Ou seja, como nos indica José Ternes: “Procurar, na cultura ocidental, os ancestrais da vida, da produção, da linguagem, e do próprio homem, significa pôr-se a caça do que não existe”. (TERNES, 1998: 135)

Junto às novas empiricidades e ao aparecimento do homem a modernidade é marcada pela analítica da finitude “em que o homem poderá fundar, na possibilidade delas, todas as formas que lhe indicam que ele não é infinito” (FOUCAULT, 2000: 434). Nesse sentido, a finitude não é pensada pela modernidade apenas negativamente como na idade clássica em relação ao infinito, mas ocupa lugar de fundamento e de condição do conhecimento da epistémê moderna.

Tal finitude é dada pela reduplicação da experiência do saber, uma vez que se refere impreterivelmente aos conteúdos positivos da linguagem, da vida e do trabalho; por outro lado, tais conteúdos só podem dar-se à experiência humana do conhecimento na medida em que este tem formas finitas.

A partir da analítica da finitude que o pensamento moderno funda-se sobre três duplos já assinalados pela filosofia critica de Kant: empírico e o transcendental; cogito e o impensado; recuo e retorno da origem. Nesse sentido o conhecimento pode dar-se duplamente ao nível dos fundamentos e das condições de possibilidade e ao nível empírico a partir dos conteúdos positivos da ciência. Entretanto, não na clareza de um cogito, mas na estranha nebulosa dimensão entre o limite de todo conhecimento possível e aquilo que se encontra aquém ou além de tais limites no espaço obscuro do essencialmente não pensado – aqui Kant aparece não como um moderno, mas como pensamento limite entre a idade clássica e a modernidade, uma vez que em seu sistema a positividade do conhecimento é dada tão somente dento dos limites do mesmo – este impensado, contudo, não é excluído do pensamento, antes, e é absorvido por este segundo o estatuto de sua própria finitude (veja-se por exemplo a tentativa de resgate de um pensamento essencial por Heidegger ou a temática do Trágico em Nietzsche). Mas é ainda no espaço epistémico do advento do homem que um terceira duplicidade se instaura; a questão da origem das coisas sempre recuada em relação ao homem e do homem mesmo, cuja origem não pode fundar; por outro lado, com Hoederlin, Nietzsche e Heidegger a questão torna-se uma temática de um possível retorno da origem.

Mas se é verdade que a modernidade se constitui sobre uma epistémê que, na relação três vezes duplicada do saber fez nascer as ciências empíricas e as ciências humanas e como objeto desta, funda o ser do homem sobre estes duplos, é verdade tambem que a relação positiva com o impensado – na psicanálise e na etnologia – e a própria configuração do pensamento moderno sobre sua própria finitude, resgatando de um espaço esquecido o ser da linguagem, indica o horizonte de abertura da possibilidade e da promessa quase ameaçadora de seu fim; a morte do homem é anunciada. Fato é, que o homem funda o seu ser no intervalo entre duas formas de linguagem e que o retorno dessa, desde o fim do século XIX, ameaça devolvê-lo a obscuridade ou a dissipá-lo na aurora de uma nova ordem de pensamento.

Entretanto, esta não é mais uma questão da arqueológica, ou antes, encontra-se no limite de um tal pensamento. A arqueologia de Foucault só pode nos revelar as configurações epistemicas do tempo histórico que ainda é o nosso tempo e também o tempo do homem, em que as disposições da epistémê moderna lhe conferem existência e visibilidade; mas também alertando, prometendo ou ameaçando que:

“Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a proximidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do pensamento clássico – então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia” (FOUCAULT, 2000: 536)



[1] É importante observar, aqui, que a loucura é excluída do procedimento do método na meditação primeira de Descartes. Tal ruptura foi analisada por Foucault em História da loucura..

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