“O eterno retorno é uma idéia misteriosa, e Nietzsche com essa idéia, colocou muitos filósofos em dificuldade” — Com estas palavras o escritor tcheco Milan Kundera, inicia seu romance que não por acaso se chama A insustentável leveza do ser. Nenhum interesse nos despertaria esta asserção não fossem as sucessivas interpretações (e isso quer dizer também corrupções e falseamentos) de que foi alva a filosofia de Nietzsche durante o turbulento século que nos separa de sua gênese. Seriam apenas os filósofos que se veriam em dificuldades diante desse pensamento? Ou, mais propriamente, seria essa dificuldade intrínseca ao jogo ambíguo que caracteriza o modo pelo qual Nietzsche ora o anuncia ora renuncia total claridade ao que ele mesmo denominou o mais poderoso dos pensamentos. Onde reside a dificuldade se tantas vezes Nietzsche enuncia tão claramente o eterno retorno como hipótese cosmológica da recorrência de todas as coisas, e cada coisa na mesma ordem, e eternamente? Onde reside o poder do eterno retorno como o mais poderoso dos pensamentos? São estas as duas questões fundamentais que nos guiam neste acercamento da doutrina nietzscheana.
I
Segundo o relato que o próprio Nietzsche nos dá a conhecer em sua autobiografia, o pensamento do eterno retorno lhe adveio no verão de 1881 enquanto caminhava pelos bosques de Silvaplana. Sua exposição se dá um ano depois na primeira edição de A gaia ciência. Retomemos este texto inaugural:
O maior dos pesos — E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem — e assim também essa aranha e este luar entre as árvores, e também este instante e eu mesmo. A perene ampulheta da existência será sempre virada novamente — e você com ela, partícula de poeira!” — Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!” Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (Nietzsche, 2001: 230)
Aparentemente deveríamos compreender esse anúncio do seguinte modo: a hipótese murmurada pelo demônio poderia ser tomada como um fardo absurdamente pesado e insuportável, mas também como a definitiva justificativa da existência. Ou na mesma existência, os momentos de prazer justificariam os momentos de dor e assim o homem poderia se resignar perante o destino. Esta seria a compreensão convencional do eterno retorno tão criticada por Gilles Deleuze e por seus comentadores; um dele, Dr. Sandro Kabol Fornazari, defende que nessa compreensão:
... resta à vontade humana desejar seu destino tal como ele é, aceitar amorosamente a realidade em todos os seus aspectos, do sofrimento mais pungente à mais intensa felicidade, na medida em que elas se condicionam mutuamente. Em outras palavras, não é possível regozijar-se das alegrias da vida sem reconhecer que o encadeamento que a efetivou está permeado de angústias e tristezas. Tomando consciência disso, duas reações seriam esperadas, segundo Nietzsche: ou amaldiçoar-se-ia o eterno retorno como o mais pesado dos pesos ou tal pensamento transformaria aquele que o acolhesse, fazendo com que ele não desejasse nada de diferente do que a vida que se apresenta, e todo seu peso estaria com que justificado, porque com eles retornarão também os momentos de leveza, de grandeza e de ardor (FORNAZARI, 2006: 19-20).
Escusado dizer que o comentador, defendendo a leitura deleuziana, se opõe veementemente a uma tal compreensão, pretextando que há uma incoerência entre o eterno retorno concebido como retorno do igual, do mesmo ou do idêntico e as teses de Nietzsche que, segundo Deleuze e seus seguidores, combateriam justamente essas categorias. Essa corrente interpretativa opta por uma resolução duvidosa do problema: mudar a natureza do eterno retorno fazendo-o “eterno retorno da diferença”. Não entraremos em detalhes sobre essa opção no momento, mas gostaríamos de mostrar que a compreensão adequada do eterno retorno se estabelece em outro âmbito: que não há justamente incoerência nenhuma entre a filosofia nietzscheana em sua vertente crítica e corrosiva e o pensamento do eterno retorno do mesmo, adequadamente compreendido.
Voltemos, portanto, ao parágrafo de A gaia ciência. Nele, o eterno retorno é apresentado como uma hipótese que reclama uma decisão. Mas é preciso mais finesse para apreender tal hipótese. Quem a murmura é um daymon, um demônio cuja natureza (boa ou má) não está decidida; o que a decide é a própria decisão sobre o sentido do que ele anuncia. A decisão dá-se a partir do estado daquele que recebe anúncio: ele amaldiçoará se não puder querer sua existência, e seu próprio ser, tal como eles são, e o abençoará se num momento de plenitude puder aceitá-la e desejá-la eternamente. Tudo aqui parece corroborar a compreensão convencional de que falávamos antes: “A dor diz: ‘Passa momento’/Mas quer todo prazer eternidade/ — Quer profunda, profunda eternidade” (NIETZSCHE, 2005: 378) — diz a canção de roda de Zaratustra.
Assim, aparentemente, só o prazer pode desejar o eterno retorno e o guardar-se na eternidade. Mas eis a dificuldade: o prazer não pode justificar a dor, a própria idéia de justificação permanece estranha à filosofia de Nietzsche. Segundo o filósofo nenhum ato pode modificar outro. A idéia de justificação é uma idéia teleológica e não caberia num pensamento que quer justamente eliminar toda teleologia. Devemos concordar então que a compreensão que apresentamos como convencional não pode encerrar a possibilidade de pensar o eterno retorno.
Atentemos para esse fato: o parágrafo de A gaia ciência apresenta somente dois aspectos desse pensamento fundamental: o pensamento do eterno retorno do mesmo tal com ele é, e as reações possíveis daqueles que são entregues a tal pensamento. Nisso se esgotaria tudo o que dele podemos apreender? De forma alguma. Não há dúvida de que o pensamento do eterno retorno deve conduzir ao amor fati, a compreensão de ambos deve dar-se mutuamente. Não por acaso nesta mesma obra Nietzsche profere a palavra pela qual o eterno retorno adquire seu significado ético: “Amor fati! Seja este, doravante o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser algum dia, apenas alguém que diz sim!” (NIETZSCHE, 2001: 187-188) Do mesmo modo, o amor fati é apresentado de modo inda pouco decisório. Renunciar a negação não significa ainda a plena afirmação, mas somente abstenção e recusa. Somente algum dia há de vir a plena afirmação, somente algum dia também poderá ser ele aquele que tornou-se capaz de afirmar.
Por que tantas indecisões? Por que esta obra, A gaia ciência, não expõe claramente o pensamento que o filósofo já havia desenvolvido particularmente? Porque justamente o que está em jogo aqui é a decisão sobre o porvir humano enquanto grande enfrentamento com o niilismo. Detenhamo-nos, então, diante do abismo no qual Nietzsche joga e aposta com Perséfone. A gaia ciência dispõe este terrível embate a partir do anúncio da ‘morte de Deus’.
II
Gott ist todt! (Deus está morto) é a palavra pela qual Nietzsche é ampla e vulgarmente conhecido. Todos já a ouviram, mas sua compreensão exige mais do que uma leitura apressada. Tentemos nos acercar desse enunciado fundamental. Ele se inscreve no livro III D’A gaia ciência, anterior aos aforismos que se referem ao amor fati (276) e ao eterno retorno (341).
O que é a morte de Deus? Nietzsche a chama de Ereigniis (acontecimento). O acontecimento não é afirmado, pressuposto, imaginado ou teorizado, mas anunciado como algo que já se deu e está dado irremediavelmente. Seu anúncio começa como uma busca, uma procura: “Procuro Deus! Procuro Deus!” – grita o homem louco na praça do mercado e, não tendo acolhida dos que lá se encontravam (crentes e ateus) ele insiste: “Para onde foi Deus?”, pergunta retórica logo respondida: “Nós o matamos – vocês e eu. Somo todos seus assassinos!” Seria isso possível? Como é possível o finito devastar o infinito e ser-lhe o algoz? O mesmo estupor acomete o louco: “Como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol?”(NIETZSCHE, 2001: 147-148) Deus está morto não é uma afirmação ateísta, mas a constatação de que a instância que governava e doava sentido ao mundo foi arruinada e, por mais perturbador que possa parecer, por um ato humano. Deus significava aí não apenas o Deus cristão, mas o supra-sensível e o Ideal que há séculos governava a existência humana; a dicotomia entre o mundo do devir, da dor, do sensível e perecível, tal como ele se mostra, e um mundo além-dele e estranho a ele como sua imagem invertida. Se era nesse mundo além-do-mundo que a existência humana alicerçava seu sentido, se era ele o próprio sentido enquanto direção e finalidade, então “Deus está morto” significa “nada tem sentido”. A recusa do sentido mostra-se como a mais desesperadora indigência:
Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sois? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? (Nietzsche, 2001: 148)
Tais indagações colocam a morte de Deus como o mais indecisório dos eventos. Nada pode ser respondido e nada pode ser dito. Tal indecisão não deve obscurecer o fato de que ela é o acontecimento mais decisivo da história ocidental. Justamente porque é acontecimento e, como tal, circunda e delimita duas propriedades distintas. Poderíamos pensar, a princípio que se trata apenas da ruína do ideal vigente que assim descobre a experiência humana como algo desprovido de sentido. Mas o acontecimento é mais amplo. Deus morreu refere-se a dimensão passada que fazendo-se presente coloca-o sob a égide do Deus morto, das sombras de Deus. Essa morte, então, cinde dois domínios distintos: um remoto passado no qual Deus habitava como instância supra-sensível dos valores supremos, governando o sentido da existência humana, e um futuro sempre presente no qual habitamos a ruína desse Ideal. Entre os dois reconhecemos o que há de decisivo na morte de Deus, situada em algum ponto que não podemos determinar. Pois o acontecimento deixa-se compreender como o que não se circunscreve em um determinado espaço e tempo. Evento duradouro, cuja amplitude decide o destino humano. Mas circunscrevendo o domínio do ideal que vigeu e o domínio da ruína desse ideal ele aponta também suas próprias fronteiras, a extrema distância que pode ser ultrapassada. Ultrapassar o niilismo pode significar, então, atravessar a fronteira que separa o domínio da ruína do ideal que vigeu (niilismo ativo) para um domínio de sentido inda não determinado, um novo ideal talvez. Como isso seria possível? Conhecemos a natureza do domínio da ruína do supra-sensível, ela é a ausência de sentido, sua fronteira deve ser, como extrema consumação a extrema forma do niilismo, o sem-sentido absoluto, o sem sentido eterno. E é justamente a contradição intrínseca ao eterno retorno que antecipa essa fronteira na qual a ultrapassagem é possível.
Embora a morte de Deus seja um acontecimento irrecusável, dele, os homens, assassinos e criminosos no mais alto grau, permanecem apartados. “Eu venho cedo demais” — são palavras do louco, mas também são palavras de Zaratustra, o sem-Deus (Gottlose). Incipt Tragoedia: com esse aforismo, semelhante ao prólogo de Zaratustra, Nietzsche encerra A gaia ciência. Somente em Assim falou Zaratustra, as contradições e ambigüidades podem aparecer em sua forma essencial: destruição, criação e reviravolta – estes são também os elementos fundamentais da tragédia grega. Incipt Tragoedia, começa a tragédia, começa o Zaratustra. Zaratustra é justamente a tragédia do enfrentamento e superação dos dois domínios do niilismo (Deus e Nada) cuja chave é a contradição intrínseca ao eterno retorno, em que a reviravolta é possível.
III
Nietzsche considerava Assim falou Zaratustra seu maior presente para a humanidade. Nós a devemos considerar como o marco inicial de seu pensamento maduro. Neste poema em prosa o filósofo apresenta seu pensamento em toda a sua positividade. Mesmo o que há de negativo, de crítica e ataque aos seus conhecidos adversários, só aparece aí como fronteira e marco de fronteira, a partir da qual a doutrina nietzscheana procura se destacar. Se estamos certos nessa consideração Zaratustra não poderia deixar de expor esse pensamento, o do eterno retorno, que Nietzsche considerava o ponto culminante de sua filosofia. E, em verdade, Zaratustra é antes de tudo “o mestre do eterno retorno”. Não seria talvez exagero algum dizer que as doutrinas correlatas da vontade de poder e do sobre-humano somente adquirem sua consistência máxima em relação ao pensamento fundamental do eterno retorno do mesmo. Não podemos, no momento assegurar quais relações perpassariam esses conceitos, mas apenas acenar para o fato de que dificilmente podem ser compreendidos de forma totalmente dissociada.
O eterno retorno aparece em Assim falou Zaratustra na forma de um relato de Zaratustra aos seus companheiros de viajem quando deixava as ilhas bem-aventuradas, logo ao início do livro III. Àqueles que ele chama “ébrios decifradores de enigmas” Zaratustra relata a visão de um grande enigma, o enigma do pastor. Segundo seu relato, por duras sendas havia carregado nas costas seu demônio, seu mortal inimigo, o espírito de gravidade, embora este a todo o momento lhe murmurasse ao ouvido o custo de sua elevação: “Ó pedra da sabedoria! Arremessaste-te para o alto, — mas a pedra arremessada deve cair!” Contudo, diante da advertência de Zaratustra “tu não conheces o meu pensamento abismal! Esse tu não poderias suportá-lo!” o demônio salta lhe das costas e é nesse momento que ambos encontram-se diante do portal que se chama “momento”. Zaratustra expõe então o pensamento abismal com o qual ameaçara o anão:
Olha este portal, anão! Ele tem duas faces. Dois caminhos aqui se juntam; ninguém os percorreu até o fim.
Essa longa rua que leva para trás: dura uma eternidade. E aquela longa rua que leva para a frente — é outra eternidade.
Contradizem-se, esses caminhos, dão com a cabeça um no outro: — e aqui, neste portal, é onde se juntam. Mas o nome do portal está escrito no alto: ‘momento’.
Mas quem seguisse por um deles — e fosse sempre adiante e cada vez mais longe: pensas, anão, que esses caminhos iriam contradizer-se eternamente? (NIETZSCHE, 2005: 193)
Os dois caminhos se contradizem. Que quer dizer isso? O caminho que leva para a frente é infinito e não temos dificuldade alguma em pensar esse progressum ad infinitum; o tempo e com ele o universo podem subsistir eternamente no porvir, jamais chegando à uma estabilidade do ser ou a dissolução no nada. Contudo, o regressum ad infinitum, pelo qual Schopenhauer mostrou a invalidade do primeiro conflito antinômico kantiano, era no fim do século XIX objeto de intenso debate. Nietzsche corrobora a tese de Schopenhauer contra Kant e afirma não haver nenhuma contradição em pensar que do instante presente possa-se recuar indefinidamente sem jamais chegar a um termino. O argumento de Kant, segundo o qual se o a tempo fosse ilimitado no passado o instante presente seria o fim de uma série infinita é considerado por Nietzsche como um sofisma que toma os pés pela cabeça. Assim, do mesmo modo que no primeiro caso, o regressum ad infinitum não é apenas uma operação restrita ao âmbito da nossa imaginação, mas aponta que o universo, o todo, não proveio da concretude do ser nem emergiu, por obra de um deus ex machina, do nada.
Esses dois caminhos são contraditórios, possuem direções contrárias, mas partem do portal, do instante. Eles se contradiriam eternamente? — pergunta Zaratustra ao anão que prontamente tenta antecipar a conclusão a que chegam as premissas lançadas: “Tudo o que é reto mente! Toda verdade é torta, o próprio tempo é um círculo”. Assim, o demônio tenta antecipar um pensamento que ainda não foi pronunciado, deixando as premissas de Zaratustra indicarem meramente a idéia de um tempo circular e com isso incluí-la entre as hipóteses de um universo cíclico — e é preciso lembrar sem dúvida que essa idéia já era deduzida de outras teorias, e largamente conhecida ao fim do século XIX). Embora o pensamento do eterno retorno, inda não pronunciado, não seja absolutamente contraditório à asserção do demônio, como querem alguns comentadores, o pensamento de Zaratustra é diverso de todas as concepções cíclicas do universo, seu caráter é singular e suas conseqüências terríveis não poderiam deixar-se velar na mera afirmação da circularidade do tempo. A objeção de Zaratustra refere-se ao modo simplório do anão e sua perspicácia em querer esquivar-se do eterno retorno. Zaratustra jamais objeta contra a natureza do eterno retorno do mesmo conquanto ainda tenha de enfrentar suas conseqüências terríveis. Pois justamente o eterno retorno significa o retorno de todas as coisas:
Olha, este momento! Desse portal chamado momento, uma longa, eterna rua leva para trás: às nossas costas há uma eternidade.
Tudo aquilo, das coisas, que pode caminhar, não deve já, uma vez, ter percorrido esta rua? Tudo aquilo, das coisas, que pode acontecer, não deve já, uma vez, ter acontecido, passado, transcorrido?
E se tudo já existiu: que achas tu, anão, desse momento? Também este portal não deve já — ter existido?
E não estão todas as coisas tão firmemente encadeadas, que este momento arrasta consigo todas as coisas vindouras? Portanto também a si mesmo?
Porque aquilo, de todas as coisas, que pode caminhar, deverá ainda, uma vez, percorrer — também esta longa rua que leva para a frente!
E essa lenta aranha que rasteja ao luar, e o próprio luar, e eu e tu no portal, cochicando um com o outro, cochichando de coisas eternas — não devemos, todos, já ter estado aqui? — e voltar a estar e percorrer essa outra rua que leva para a frente, diante de nós, essa longa, temerosa rua — não devemos retornar eternamente? (NIETZSCHE, 2005: 193-194)
O eterno retorno significa que tudo o que é possível se efetivar já se efetivou e o instante testemunha que ele mesmo deve retornar, e retornar eternamente. Partindo do instante duas eternidades se consumam no mesmo instante: o instante é eterno e cada mínima coisa nele está fadada a possibilidade única de ser exatamente como é. Todas as coisas que podem efetivar-se se efetivam eternamente e, assim também, o encadeamento com que são concatenadas nesse curso. Nesse sentido, todas elas estão aprisionadas à fatalidade dessa tornar-se-sempre-o-que-são.
Ao pronunciar o eterno retorno Zaratustra é acometido de medo, medo de seu pensamento e das conseqüências implícitas a ele. Seu temor é logo a seguir justificado pelo enigma do pastor: “Quem é o homem em cuja garganta se insinuará tudo o que há de mais negro e pesado?” — eis o enigma. A princípio afirmaríamos que é o próprio Zaratustra, e que esta visão é a visão de sua enfermidade e convalescença, pois por sete dias Zaratustra permanecerá doente, diante do homem tal como ele é, o eterno retorno pesará para ele como o mais pesado dos fardos. Mas é o próprio Zaratustra que desperta mais uma vez seu pensamento abismal e, assim, fazendo, sucumbe ao nojo. Ao fim dos sete dias, porém, se recupera e é interpelado por seus animais:
Ó Zaratustra, para os que pensam como nós, as próprias coisas dançam: vêm e dão-se a mão e riem e fogem — e voltam.
Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.
Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser.
Em cada instante começa o ser; em torno de todo o ‘aqui’ rola a bola ‘acolá’. O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade. (NIETZSCHE, 2005: 259-260)
A estas palavras Zaratustra não objeta, como acreditam alguns fazendo referência à objeção contra o anão, mas sorri complacente, reconhecendo que também seus animais haviam compreendido que era ele o pastor do enigma e, por lhe relembrarem isso, Zaratustra os chama “farsantes e realejos”. Há uma só objeção de Zaratustra: de que seu pensamento do eterno retorno, que o permitiu naqueles sete dias fazer a mais profunda experiência trágica, não seja repetida e transformada em “modinha de realejo”.
Mas, qual era a enfermidade de Zaratustra e como ele se cura dessa doença? Já o dissemos: é o grande nojo pelo homem, pelo homem pequeno – e por toda humanidade na medida em que esta se mostra pequena demais, o maior dos homens é ainda por demais humano. Mais do que nunca Zaratustra deve assumir que “o homem é algo que deve ser ultrapassado”. Mas o consolo de saber que o homem não é um fim, mas um meio, é apenas isso, um consolo, não uma cura, não uma redenção. A questão deve portanto permanecer: como Zaratustra se redime de seu nojo?
“Onde habita o perigo é lá que também cresce o que salva” — Disse Hölderlin uma vez. E é no mesmo sentido que se dá a reviravolta trágica de Zaratustra. Zaratustra se redime na medida em que reverte o sentido do eterno retorno. Pois, se tudo está fadado a retornar exatamente como é, ele também está fadado a se-tornar-o-que-é: mestre do eterno retorno e prenunciador do sobre-humano. Este é o seu destino e somente o amor incondicional a tal destino pode ser considerado como redenção. De todo modo amar o próprio destino significa também amar e desejar tudo, incluindo o homem e sua misera história, exatamente como são.
Zaratustra é o pastor do enigma. Mas o homem, a humanidade histórica, também o é na medida em que também esta padece de uma doença análoga, ou da mesma doença em âmbito histórico. Se assim considerarmos, a redenção do niilismo, sua ultrapassagem, deve ser análoga á cura de Zaratustra: deve repousar na mesma contradição que ora fez Zaratustra sucumbir. É justamente esta reviravolta histórica que é prenunciada por Nietzsche no segundo livro de Assim falou Zaratustra, no título “Da redenção”. Aí Nietzsche descreve o desenvolvimento do espírito de vingança que conduz ao niilismo moderno e a possibilidade de sua superação como redenção da vontade.
IV
Se o texto publicado em A gaia ciência nada mais faz que insinuar e acenar para o pensamento do eterno retorno, o mesmo não acontece com as anotações particulares que serviram de base para compor o aforismo. Não se trata mais de uma hipótese lançada na noite mais solitária por um demônio, nem da batalha trágica de Zaratustra contra seu demônio pessoal, o espírito de gravidade; mas, da afirmação categórica do próprio filósofo que assume esse pensamento numa afirmação visceral:
Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vez e circular do mundo. E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo sempre se escoará outra vez —, um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir dos quais vieste a ser, se reúnam outra vez no curso e inimigo e cada esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as coisas. Esse anel, em que és um grão, resplandece sempre outra vez. E em cada anel da existência humana em geral há sempre uma hora, em que primeiro para um, depois para muitos, depois para todos, emerge o mais poderoso dos pensamentos, o pensamento do eterno retorno de todas as coisas: — é cada vez, para a humanidade, a hora do meio-dia. (NIETZSCHE, 2005: 442)
Talvez agora possamos esboçar uma compreensão mais adequada desse pensamento e, assim, nos desvencilharmos das falsas interpretações. Nietzsche não afirma que o universo oscila ou pulsa de um estado inicial para um estado final, perfeitamente idênticos. O todo, que é um imensurável anel, não possui início ou fim, somente aqueles que pensam em um circulo sendo construído acreditam que se deve compreender que há um ponto no circulo idêntico à outro ponto (essa era a conclusão que foi tirada da filosofia do inconsciente de Hartmamm, mas não devemos confundir Nietzsche e Hartmamm; não devemos sobretudo confundir o eterno retorno com outras hipóteses de um universo circular). Sem dúvida, Nietzsche rejeita a identidade porque no curso circular do anel nada pode ser idêntico a si mesmo (duradouramente) ou à outra coisa, sob a égide do devir. O círculo está dado e nele cada instante pertence a si mesmo e vigora na eternidade; cada coisa está em conexão com todas a coisas de tal modo que o retorno só pode significar a recorrência do próprio curso, do concatenamento de todas as coisas que podem se efetivar. O retorno só se dá no âmbito da totalidade cosmológica, excluindo a repetição histórica e a recorrência na mesma série de identidades. Nesse sentido, se o todo retorna, retornam todas as coisas segundo sua exata conexão: o eterno retorno significa que todas a coisas são necessárias (nem liberdade, nem determinismo), mas a pura necessidade em tudo e em cada coisa.
Não nos teria escapado o que se insinuo sob nossas palavras e não foi explicitamente afirmado?: que o eterno retorno evoca o sentido aterrador de todas as coisas, a fatalidade de seu ser eternamente transitório; que, o mundo, e nele cada mínima coisa, não se encaminha nem para a realização plena, nem para a definitiva nadificação; que, finalmente, imagem da contradição, a vontade que tudo podia agora já não possui poder algum, nem mesmo para mudar um grão de areia. Tudo é necessidade, tudo é fatum, tudo é destino. Haveria ainda algum sentido em falar de uma vontade, inda mais de uma vontade criadora, se tudo é necessidade? Haveria ainda algum sentido e falar de “sentidos”, se todas a finalidades perderam a consistência? Mas há, sem dúvida, para Nietzsche, uma vontade criadora. Uma vontade que só pode querer o que foi querido e eternamente deve querer; uma vontade que só pode criar o que já infinitas vezes criou e está destinada a criar por toda eternidade; uma vontade, enfim, que só pode querer o necessário, com a necessidade de ser ela mesma necessária. Pois, “Qual pode ser a nossa doutrina?” – indaga o filósofo em O crepúsculo dos ídolos. Ele mesmo responde:
Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade de seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será (...) Cada um é necessário, é um pedaço do destino, pertence ao todo, está no todo (NIETZSCHE,2006: 46)
Aqui habita o perigo, aqui também cresce o que salva. O amor fati deve adquirir uma significação muito mais fundamental. Não pode ser considerado um imperativo ético análogo ao imperativo categórico de Kant. Sem dúvida ele envolve uma decisão, mas esta não se refere aos atos que expressam a vontade (estes são necessários) e sim à vontade mesma, ao querer que atribui sentido a esses atos. De qualquer forma, ainda assim, não se trata de uma vontade intencional que possa fazer escolhas, mas do poder, da quantidade de força, da capacidade da vontade em querer a si mesma eternamente. O amor fati é, antes, a expressão dessa vontade criadora que cria eternamente o mesmo e o celebra como sua criação, que quer eternamente o mesmo e o celebra como seu querer. Ao assumir o que é necessário como sua criação, a vontade, essa vontade criadora reconcilia-se com o tempo – antes, a razão maior de seu desespero e origem de sua loucura, a vingança. A necessidade que antes habitava o passado (todo Foi-Assim) é a última limitação da vontade, a pedra que ela não pode mover. Precisou ela, justamente, elevar todas as coisas à mesma necessidade para ultrapassá-la, tornando-a criação sua: é o sentido que ora se atribui à necessidade, é a necessidade tornada sentido.
Viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa —, pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço seu mais alto sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso seu mais alto sentimento, que repouse; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não recei nenhum meio! Isso vale a eternidade! (NIETZSCHE, 2005: 442)
Somente aqui poderíamos reconhecer um tipo de face seletiva do eterno retorno, mas trata-se de uma seletividade que adere, sobretudo, ao pensamento do eterno retorno e ao seu aparecimento no âmbito histórico. Tal pensamento marcaria justamente a ultrapassagem do ideal vigente, e das ruínas desse ideal, dispondo um novo espaço existencial para o humano. Mas para Nietzsche este é um evento de longa duração. O meio-dia da humanidade, o meio caminho entre o animal e o sobre-humano, não advirá como uma conseqüência do ensinamento desse pensamento, mas do fato de que ele constitui a única alternativa frente à morte de Deus e, por isso, há de vigorar aos poucos pois
tem de embeber lentamente, gerações inteiras têm de edificar nele e nele torna-se fecundas — para que ele se torne uma grande árvore, que dê sombra a toda humanidade que ainda virá! O que são alguns milênios, nos quais o cristianismo se conservou! Para o mais poderoso dos pensamentos é preciso muitos milênios —, por muito, muito tempo ele tem de ser pequeno e impotente. (NIETZSCHE: 2005: 442)
Agora sem dúvida nos parece mais claro onde habita a contradição, o perigo e a redenção. O eterno retorno de todas as coisas, do mesmo, do igual, significa que cada coisa é necessária e eternamente necessária, seu ser é fatum, destino, é somente o que é e não há qualquer sentido em falar de um sentido que não seja a pura facticidade (fatalidade) do ser. “Essa — dirá Nietzsche — é a extrema forma do niilismo: o nada (o sem-sentido) eterno!”. Mas também é, segundo nos mostra o próprio filósofo, a única forma de ultrapassá-lo.
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