sexta-feira, 26 de abril de 2013

L. Wittgenstein - Palavra e Silêncio

Diz-se que há dois filósofos: um primeiro e um segundo Wittgenstein[1]. O primeiro foi sobretudo um lógico, a serviço do projeto que Frege imaginou e ao Russel deu continuidade — a lógica matemática, o logicismo e o empirismo lógico muito deveram ao autor do TractatusLogicu-Philosophicus; o segundo, crítico do primeiro, incompreensível para os admiradores do primeiro[2], teria retomado, em termos linguísticos, toda uma tradição do pragmatismo, ocupando-se com a linguagem ordinária e a comunicação intersubjetiva — a análise dos atos de fala (spreechacts) de Austin e Searle e derivados como a nova retórica reivindicam no autor das Investigações Filosóficas seu fundador ou precursor.
           
Afora o lirismo sempre encantador da duplicação da persona, é preciso reconhecer a divisão da obra de Wittgenstein é mais realistas do que as divisões tradicionais a que todo opus filosófico está sujeito: fala-se de um primeiro e de um segundo Heidegger; de três fases em Nietzsche e Foucault, de dois Kants ao menos, mas em todos esses casos a divisão é certamente muito mais didática que teórica, e, mesmo quando é teórica, implica muito mais a mudança de tema do que a construção de um novo projeto. Entre WI e WII, porém, as diferenças são tantas, o estilo é tão incongruente e os mesmos temas tratados de modo tão distinto, que nada há o que fazer senão reconhecer que não se trata aqui e ali de um mesmo filósofo.
         
A questão da linguagem situa-se, assim, de modo bastante diferente que consultemos o Tractatus, quer perscrutemos as Investigações. Diz-se: aqui há uma filosofia da linguagem ideal, ali uma filosofia da linguagem ordinária; duas filosofias, um só filósofo. Mas isso não é só inexato como também equívoco. A conceitografiafregeana, que dá lugar ao CPC[3], certamente é abordada no Tractatus, mas não constitui o todo do que WI chama, então, “linguagem”; por outro lado, as Investigações darão lugar a todo um formalismo, nem sempre claro como mostram os trabalhos de Habermas, em torno das funções de uso: não se exclui o formalismo e a linguagem ideal, mas todo o projeto do Tractatus, a concepção mesma de uma linguagem limitada por uma Forma transcendental unitária. Não é, pois, o formalismo uma boa medida da diferença entre um e outro projeto.

A questão da linguagem em Wittgenstein é, pois, equívoca. De quem se fala? De um ou outro, de um e outro? Também não saberíamos como a colocar devidamente. Porque então teríamos um problema filosófico do tipo: “que é a linguagem?” ou, em todo caso, “que é a linguagem para Wittgenstein?”. O melhor que poderíamos fazer talvez fosse imitar os comentadores de filosofia: “que é a linguagem para o primeiro ou para o segundo Wittgenstein?”. Mas ainda o equívoco seria muito evidente para que não nos envergonhássemos de imediato.
            
A leitura de Wittgenstein nos parece suscitar muitas perguntas retóricas. Mas deixemos disso e nos atenhamos aos textos. No caso, será melhor imitar os locutores que os comentadores.

Terapêutica da linguagem em WI: A Escada para o silêncio

“As minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido, quando por elas se elevou para lá delas. (Tem que, por assim dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela).
Tem que transcender estas proposições; depois vê o mundo a direito.
Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio.”[4]

Esta parte final da obra tem desafiado a compreensão dos leitores desde a primeira publicação (como o enigma de Édipo que se resolve sem se resolver). Com ela Wittgenstein escapa à inconsistência do empirismo lógico, mas parece arruinar seu próprio projeto de sanar as patologias da linguagem que dão lugar à filosofia tradicional. Ela implica no curioso convite ao silêncio, principalmente ao silêncio com relação ao que fora dito pelo próprio Tractatus. Deveríamos, então, nos conformar com ela e nos recusar a falar de qualquer doutrina de WI, pois, afinal, não é ele mesmo a dizer que nada diz? Não se pode responder essa pergunta. Ao invés, reconheçamos que os comentadores não cessaram de encontrar teses e doutrinas nesse livro paradoxal. E, se, mesmo grandes filósofos como Lord Russel encontram aqui muita filosofia séria, por que não poderíamos nós encontrar aqui do que falar a respeito da sua concepção da linguagem?
            
 Não há outro remédio: desconsideremos a sura 6.54. De resto, parece que encontraremos um tratado rico de ensinamentos, principalmente quanto às patologias (filosofia tradicional) que surgem por não se dar a devida atenção à linguagem. Esse não é um tema novo, o próprio Frege já o entrevia quando postulava a necessidade de uma língua filosófica que pudesse evitar os equívocos aos quais os filósofos são particularmente suscetíveis[5]. Mas tão logo vejamos essa medicina linguística em ação, teremos que assumir que as coisas não se passam exatamente como os comentadores (principalmente os afeitos teses ontológicas e éticas no Tractatus) preferem acreditar. Consideremos o mais célebre de todos os sintomas: o paradoxo de Russel. Ele fez soçobrar outrora o grande projeto de Frege e perturbou o sono do autor dos Principia até que o fosse capaz resolver com a teoria dos tipos. Mas o médico não parece se imprecionar com os lamentos do paciente. Este diz: “dói-me quando faço isso”; aquele responde: “não faça isso!” — Assim, anedoticamente, pode-se resumir a resolução de Wittgenstein para o paradoxo:

Suponhamos por exemplo que a função F(fx) podia ser o seu próprio argumento; então haveria também uma proposição: “F(F[fx])”, e nesta, a função exterior F e a função interior F teriam que ter denotações diferentes, pois a função interior tem a forma φ(fx), a função exterior, a forma ψ(φ[fx]). Comum às duas funções é apenas a letra “F”, que contudo nada designa.

            
Estranha medicina! WI havia prometido resolver todos os problemas da filosofia, havia mesmo dito na introdução que todos eles encontravam respostas verdadeiras, definitivas e intocáveis no Tractatus. Agora, porém, parece dizer: “não faça isso! não crie problemas”. Por mais misterioso que isso pareça, tem sua razão dizer na concepção geral da linguagem do Tractaus: a linguagem é transitiva, i.e., diz-se algo do mundo, logo “nenhuma proposição pode declarar alguma coisa sobre si própria, porque o sinal proposicional não pode estar contido em si mesmo” (3.332).
            
Assim, a concepção de uma linguagem que só pode ser transitiva, composta de proposições que só podem dizer algo do mundo; a concepção do dizer enquanto situado no limite da linguagem, como o olho, que não pode se ver porque está no limite do campo visual, implica um novo convite ao silêncio. Não é somente a última sura, cuja reversão sobre o todo do Tractatus parece agora um paradoxo do paradoxo, que implica uma “iniciação ao silêncio”. Cada proposição, na medida em que se apóia nessa concepção limiar da linguagem, é um átomo de silêncio significante. WI reduz ao vazio o conteúdo significativo de suas proposições, mas nem por isso as reduz ao nada: permanece a forma, que é a forma de um gesto que mostra, que quer deter a patologia antes que seu sintoma possa aparecer. 

Psicopatologia da linguagem em WII

Ao silêncio sucede o silêncio. Após escrever o Tractatus, WI desaparece como que prisioneiro da altitude a que chegou. E como poderia voltar se jogou fora a escada? Deixemo-lo, nós também, portanto.
            
As Investigações Filosóficas aparecem como uma reação violenta, por vezes jocosa, ao acontecimento que acabamos de, própria ou impropriamente, comentar. WII sabe que há uma brecha na tirania do Tractatus. Aplica-lhe a própria medicina: “não suba pela escada!”. É que a concepção da linguagem do Tractatus, atomística e transitiva, tal como aquela de Santo Agostinho, é questionável. A linguagem não funciona como WI pensava, ninguém diz desse modo e, logo, a sentença de silêncio da famigerada 6.53 só incide sobre o próprio silêncio: “Santo Agostinho descreve, poderíamos dizer, um sistema de comunicação; só que nem tudo aquilo a que chamamos linguagem é este sistema” (§2)
             
Nesse caso, WI e WII são como duas faces da mesma moeda. Isso se torna bastante claro quando percebemos o resultado final das Investigações: tornar impossível que os problemas filosóficos apareceçam, pois a filosofia não é um jogo de linguagem, mas um equívoco suscitado por se perder de vista a multiplicidade dos jogos de linguagem. Por exemplo, acerca do grande problema da atomística lógica suscitado por palavras como “este”, se pergunta WII: “como é que se chega à idéia de querer fazer precisamente desta palavra um nome, quando ela obviamente não é um nome?” (§39) Ora, WI admitia a existência de problemas filosóficos, que determinado uso da linguagem poderia resolver. WII vai ainda mais longe, é o uso da linguagem que torna os problemas filosóficos destituídos de sentido ab ovo.
            
Mas esse não-sentido não tem mais a forma um tanto quanto mística que WI lhe dava. Ao contrário, assume contornos patéticos:

                                      Um problema filosófico tem a seguinte forma: “Não me sei orientar”
De nenhuma maneira deve a Filosofia tocar no uso real da linguagem; só o pode enfim descrever.
Assim, também não o pode fundamentar.
A Filosofia deixa tudo ser como é. (§ 124)

Mas se é assim, então WII precede WI, logicamente. Isso se vê claramente pelo fato de que a terapêutica do Tractatusera, se bem que um tanto quanto anedoticamente, um modo legítimo de resolver os problemas de linguagem através do uso da mesma: o correto uso dos símbolos (teoria dos tipos) não gera paradoxos. Mas como se poderia chegar a um correto uso da linguagem senão através de um mau uso? WI sempre poderia dizer “não faça isso”, mas não poderia esperar que o paciente o obedecesse. Esse problema, pouco visível à superfície do texto, é resolvido por WII ao dizer: “eis um louco, um homem que se inflige uma dor desnecessária”.
            
Para WI, o não-sentido parecia ameaçar recobrir quase todo o campo da linguagem. Era preciso salvar ao menos uma região, a da linguagem denotativa, de seu mau uso ordinário. O não-sentido era a regra, o sentido a exceção. Assim o projeto de uma linguagem ideal e a filosofia de uma linguagem ideal eram esforços justificáveis. E se permanece a dúvida de se WI pode se incluído entre os desenvolvedores desse projeto, é indubitável que ele o respeitava o respondia ao seu modo próprio.
            
Em WII, a situação se inverte: em todo lugar há sentido e sanidade, menos nessa região onde problemas dessa ordem surgem. Os filósofos são loucos com os quais não vale a pena se ocupar — ele menos não seria menos louco se fizesse o contrário. Daí o inverso do projeto de Frege: é preciso deixar a linguagem tal como é. E o máximo que se pode fazer é descrevê-la tal como é. Não é certo que Russel tenha compreendido a violência desse ataque, mas certamente acreditava que Wittgenstein deixara de ser filósofo.
            
O único problema filosófico é que haja problemas filosóficos, poderíamos dizer, parafraseando o poeta. Mas problemas filosóficos são destituídos de sentido. Logo, não há problemas filosóficos. Ao menos quanto à Filosofia, a sentença de silêncio permanece e o enigma se renova.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico/ Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian.


[1] Daqui em diante, WI e WII.
[2] Russel não deixará de lamentar essa “viragem” que fez com que seu principal interlocutor deixasse de se ocupar com os problemas da filosofia séria.
[3] Cálculo Proposicional Clássico.
[4]Tractatus Logico-Philosophicus, 6.54. Daqui em diante a referência segue a numeração das suras para o Tractatus e a numeração dos parágrafos para as Investigações, o que diante de traduções e edições diversas permite uma melhor localização pelo leitor.
[5]Afinal é o mesmo projeto idealizado por Leibniz.

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