Voltaire |
CAPÍTULO I
Como a prior de
Nossa Senhora da Montanha e a senhorita sua irmã encontraram um hurão.
Um dia S. Dunstan, irlandês de
nacionalidade e santo de profissão, partiu da Irlanda a bordo de uma
pequena
montanha que navegou para as costas da França, indo arribar à baia de
Saint-Malo. Depois do que, deu ele a bênção à sua montanha, a qual lhe fez profundas
reverências e voltou para a Irlanda pelo mesmo caminho por onde tinha vindo.
Dunstan fundou ali um pequeno
priorado, dando-lhe o nome de priorado da Montanha, denominação que ainda hoje
conserva, como todos sabem.
Ora, na tarde de 15 de julho de 1689,
o abade de Kerkabon, prior de Nossa Senhora da Montanha, passeava à beira-mar
com a senhorita de Kerkabon, sua irmã, para tomar a fresca. O prior, já um
tanto avançado em idade, era um excelente eclesiástico, muito amado pelos seus
paroquianos, depois de o ter sido outrora pelas suas paroquianas. O que lhe
valera sobretudo grande consideração é que era o único clérigo da província que
não precisava ser carregado para o leito depois de cear com os seus confrades.
Sabia muito corretamente a sua teologia e, quando cansado de ler Santo
Agostinho, divertia-se com Rabelais: de modo que todos diziam bem dele.
A senhorita de Kerkabon que
jamais havia casado, embora vontade não lhe faltasse, ainda não perdera o
frescor aos quarenta e cinco anos; boa e sensível de gênio, gostava de
divertimentos e era devota.
Dizia o prior à irmã, olhando o
mar:
— Ah! foi aqui que embarcou o
nosso pobre irmão, com a nossa querida cunhada, a senhora de Kerkabon, sua
esposa, na fragata Hirondelle, em 1669, para ir servir no Canadá. Se não o
tivessem matado, poderíamos ter a esperança de tornar a vê-lo.
— Acreditas – dizia a senhorita
de Kerkabon – que a nossa cunhada tenha sido devorada pelos iroqueses, como nos
disseram? É certo que, se não a tivessem comido, teria voltado à sua terra. Hei
de chorá-la toda a vida: era uma mulher encantadora; e nosso irmão, que era
bastante inteligente, teria feito uma bela fortuna.
Enquanto assim se comoviam a tais
lembranças, viram entrar na baía de Rance uma pequena embarcação que chegava
com a maré: eram ingleses que vinham vender alguns gêneros de seu país.
Saltaram em terra, sem preocupar-se com o senhor prior nem com a senhorita sua
irmã, que ficou muito chocada com a desatenção.
Não sucedeu o mesmo com um jovem
de excelente compleição que, saltando por cima da cabeça de seus companheiros,
veio cair de pé em frente à senhorita. Cumprimentou-a com a cabeça, pois, pelos
modos, não aprendera a fazer reverência. Seu aspecto e sua indumentária
atraíram os olhares do irmão e da irmã. Tinha a cabeça descoberta, as pernas
nuas, longas tranças, pequenas sandálias, e um gibão que lhe modelava o talhe
esbelto; e um ar ao mesmo tempo viril e bondoso. Trazia numa das mãos uma
pequena garrafa de água de Barbados, e na outra uma espécie de bolsa na qual havia
uma caneca e bolachas. Falava francês de um modo bastante inteligível. Ofereceu
água de Barbados à senhorita de Kerkabon e ao senhor seu irmão; bebeu com
ambos; fê-los beber de novo; e tudo isso com um ar tão simples e natural que o
irmão e a irmã ficaram encantados. Ofereceram-lhe seus préstimos,
perguntando-lhe quem era e aonde ia. O jovem lhes respondeu. que não sabia ao
certo, pois era um simples curioso que quisera saber como eram as costas de
França e que, como ali chegara, logo se retiraria.
Julgando, pelo seu acento, que
ele não era inglês, tomou o prior a liberdade de lhe perguntar qual o seu país
de origem.
— Eu sou hurão – respondeu-lhe o
jovem.
A senhorita de Kerkabon,
espantada e encantada de ver um hurão que a cumulara de atenções convidou o
jovem para jantar; este não se fez de rogado e dirigiram-se os três para o
priorado de Nossa Senhora da Montanha.
A miúda e rechonchuda senhorita
não tirava dele os seus olhinhos e dizia de vez em quando ao prior:
— Esse rapagão tem uma pele de
lírio e rosas! Que bela tez para um hurão!
— Tens razão, minha irmã – dizia
o prior.
Ela fazia cem perguntas seguidas,
a que o viajante sempre respondia com toda a justeza.
Logo se espalhou o rumor de que
havia um hurão no priorado. A alta sociedade do cantão apressou-se em
comparecer. O padre de St. Yves veio acompanhado da senhorita sua irmã, jovem
baixa-bretã, muito bonita e muito bem educada. O bailio, o recebedor de
impostos e suas respectivas mulheres não faltaram à ceia. Colocaram o
estrangeiro entre a senhorita de Kerkabon e a senhorita de St. Yves. Todos o
olhavam com admiração, todos lhe falavam e interrogavam ao mesmo tempo; o hurão
não perdia a compostura. Parecia haver tomado por divisa a de milorde
Bolingbroke: nihil admirari. Afinal, cansado de tanto barulho, disse-lhes
suavemente, mas com firmeza:
— Senhores, na minha terra fala
um depois do outro; como querem que lhes responda, se me impedem de ouvi-los?
A razão sempre faz com que os
homens se compenetrem por alguns momentos. Estabeleceu-se um grande silêncio. O
senhor bailio, que sempre se apoderava dos estranhos em qualquer parte onde se
achasse, e que era o maior perguntador da província, indagou, abrindo uma boca
de palmo e meio:
— Como se chama o senhor?
— Sempre me chamaram o Ingênuo,
nome este que me foi confirmado na Inglaterra, porque eu sempre digo
singelamente o que penso e faço tudo o que quero.
— Mas como, tendo nascido hurão,
foi o senhor parar na Inglaterra?
— É que me levaram para lá. Em
combate, fui feito prisioneiro pelos ingleses, depois de me haver defendido o
mais que pude. E os ingleses, que apreciam a bravura, porque são bravos e tão
direitos como os hurões, propuseram-me devolver-me a meus país ou levar-me para
a Inglaterra. Aceitei a última oferta, pois gosto imenso de ver terras novas.
— Mas – disse o bailio com o seu
tom imponente – como pôde o senhor abandonar assim o seu pai e a sua mãe?
— É que nunca conheci nem pai nem
mãe – respondeu o estrangeiro.
Não houve quem não se comovesse,
e todos repetiam: Nem pai nem mãe!
— Nós lhe serviremos de pai e mãe
– disse a dona da casa ao prior. – Como é interessante esse senhor hurão!
O Ingênuo agradeceu-lhe com uma
nobre e altiva cordialidade, e deu-lhe a entender que não tinha necessidade de
coisa alguma.
— Vejo, senhor Ingênuo – disse o
grave bailio, – que o seu francês é excelente para um hurão.
— Um francês – disse ele que os
hurões haviam aprisionado quando eu era pequenino, e a quem dediquei grande
amizade, ensinou-me a sua língua; aprendo muito depressa o que quero aprender.
Ao chegar em Plymouth, encontrei um desses refugiados franceses a que chamam
huguenotes, não sei por quê; fiz com ele alguns progressos no conhecimento de
vossa língua e, logo que me pude exprimir inteligivelmente, vim visitar o vosso
país, pois aprecio bastante os franceses quando eles não fazem muitas
perguntas.
O abade de St. Yves, apesar dessa
pequena advertência, perguntou-lhe qual das três línguas preferia: o hurão, o
inglês, ou o francês.
— O hurão, sem dúvida nenhuma.
— Será possível? – exclamou a
senhorita de Kerkabon. – Eu sempre julguei que o francês fosse a mais bela de
todas as línguas, depois do baixo-bretão.
Choveram então as perguntas. Como
se dizia fumo em hurão? Taya, respondia o Ingênuo. Como se dizia comer? Essenter,
respondia ele. A senhorita de Kerkabon fez absoluta questão de saber como se
dizia amar; ele respondeu que isso era trovander, e sustentou, não sem razão,
que tais palavras nada ficavam a dever às suas correspondentes em francês e
inglês. Trovander pareceu muito bonito a todos os convivas.
O prior, que tinha na biblioteca
uma gramática da língua huronesa, que lhe dera de presente o reverendo padre
Sérgard-Théodat, recoleto e famoso missionário, retirou-se da mesa um momento,
para ir consultá-la. Voltou arquejante de enternecimento e alegria. Reconheceu
o Ingênuo como um verdadeiro hurão. Discutiram um pouco sobre a multiplicidade
das línguas e chegaram à conclusão de que, se não fora a aventura da torre de
Babel, a terra inteira estaria falando francês.
O interrogador bailio, que até
então desconfiara um pouco do personagem, começou a considerá-lo com profundo
respeito; falou-lhe com mais civilidade que antes, coisa de que o Ingênuo não
se apercebeu.
A senhorita de St. Yves estava
muito curiosa por saber como se amava na terra dos hurões.
— Praticando belas ações –
respondeu ele – para agradar às pessoas que se parecem com a senhorita.
Todos os convivas aplaudiram com
admiração. A senhorita de St. Yves enrubesceu, e sentiu-se muito bem. A senhorita
de Kerkabon igualmente enrubesceu, mas não se sentiu tão bem, um pouco
melindrada de que a galanteria não se dirigisse a ela, mas tinha tão bom
coração que isso em nada diminuiu o seu afeto pelo visitante. Perguntou-lhe
amavelmente quantas namoradas tivera ele na Hurônia.
— Só tive uma – respondeu o
Ingênuo. – Era Abacaba, a boa amiga de minha querida ama; os juncos não eram
mais retos, o arminho mais branco, as ovelhas menos macias, as águias menos
altivas, e nem os cervos mais rápidos do que Abacaba. Ela perseguia um dia uma
lebre pelas vizinhanças, a cerca de cinqüenta léguas da nossa casa. Um
algonquino mal educado, que habitava cem léguas além, veto arrebatar-lhe a sua
lebre; mal o soube, acorri, derrubei o algonquino com um golpe de maça, amarrei-o
e fui depô-lo aos pés de Abacaba. Os pais de Abacaba queriam comê-lo; mas nunca
me agradei dessa espécie de festins; restitui-lhe a liberdade e fiz dele um
amigo. Abacaba ficou tão impressionada com a minha ação, que me preferiu a
todos os seus pretendentes. E ainda me amaria, se não tivesse sido devorada por
um urso. Castiguei o urso, usei durante muito tempo a sua pele, mas isso não me
consolou.
A senhorita de St. Yves sentia um
secreto prazer ao ouvir que o Ingênuo só tivera uma bem-amada e que Abacaba não
mais existia; mas não discernia a causa de seu prazer. Todos fixavam os olhos
no Ingênuo; louvavam-no muito por não haver permitido que os seus camaradas
comessem um algonquino.
O implacável bailio, incapaz de
reprimir o seu furor inquisitivo, levou a curiosidade ao ponto de se informar
qual era a religião do senhor hurão; se havia escolhido a religião anglicana,
ou a galicana, ou a huguenote.
Eu sou da minha religião – disse
ele – como o senhor é da sua.
— Ah! – exclamou a Kerkabon – bem
se vê que esses engraçados ingleses nem ao menos pensaram em batizá-lo-
— Meu Deus! – dizia a senhorita
de St. Yves – como é possível que os hurões não sejam católicos? Será que os
RR.PP jesuítas não os converteram a todos?
O Ingênuo assegurou que na sua
terra não se convertia ninguém; que nunca um verdadeiro hurão mudara de idéias,
e que na sua língua nem sequer havia um termo que significasse inconstância.
Estas últimas palavras agradaram extremamente à senhorita de St. Yves.
— Nós o batizaremos, nós o
batizaremos – dizia a Kerkabon ao prior; – há de caber-te essa honra, meu caro
irmão; faço questão de ser sua madrinha; o senhor de St. Yves o levará à pia;
será uma brilhante cerimônia, de que se falará em toda a Baixa Bretanha, o que
nos trará grandes honras. Toda a companhia secundou a dona da casa; todos os
convivas gritavam:
— Nós o batizaremos!
O Ingênuo respondeu que na
Inglaterra deixavam a gente viver como bem quisesse. Deu a entender que a
proposta não lhe agradava absolutamente, e que a lei dos hurões valia pelo
menos a lei dos baixo-bretões; enfim, disse que iria embora no dia seguinte.
Acabaram de esvaziar a sua garrafa de água de Barbados e foram deitar-se.
Depois que o Ingênuo se recolheu
ao quarto, a senhorita de Kerkabon e sua amiga a senhorita de St. Yves não
puderam deixar de espiar pelo buraco da fechadura, para ver como dormia um
hurão. Viram que havia estendido a roupa do leito no soalho e que repousava na
mais bela atitude do mundo.
O hurão, chamado o
Ingênuo, é reconhecido por seus parentes.
O Ingênuo, segundo o seu costume,
acordou com o sol, ao cantar do galo, que é chamado na Inglaterra e na Hurônia
a trombeta do dia. Não era como a gente da alta., que enlanguesce num
preguiçoso leito, até que o sol haja feito metade do seu curso, que não pode
nem dormir nem levantar-se, que perde tantas horas preciosas nesse estado
intermediário entre a vida e a morte, e ainda se queixa de que a vida é
demasiado curta.
Já fizera duas ou três léguas,
tendo abatido, a funda, umas trinta peças de caça, quando, ao regressar,
encontrou o prior de Nossa Senhora da Montanha e sua discreta irmã, que
passeavam de touca de dormir pelo seu pequeno jardim. Apresentou-lhes a sua
caça e, tirando da camisa uma espécie de talismã que trazia sempre ao pescoço,
pediu-lhes que o aceitassem como agradecimento pela sua boa recepção.
— É o que eu tenho de mais
precioso – lhes disse ele. Asseguraram-me que eu seria sempre feliz enquanto o
usasse. E assim lhes faço este presente, para que sejam sempre felizes.
O prior e sua irmã sorriram
comovidos ante a simplicidade do Ingênuo. O referido presente consistia em dois
pequenos retratos muito mal feitos, unidos por uma correia bastante sebenta
A senhorita de Kerkabon
perguntou-lhe se havia pintores na Hurônia.
— Não – disse o Ingênuo, – esta
raridade me veio de parte de minha ama; o seu marido a adquirira por conquista,
despojando alguns franceses do Canadá que haviam travado batalha conosco. É só
o que eu sei.
O prior examinava atentamente
aqueles retratos; mudou de cor, emocionou-se, as mãos tremeram-lhe.
— Por Nossa Senhora da Montanha –
exclamou ele, – creio que é o meu irmão capitão e sua mulher.
A senhorita, depois de os haver
examinado com igual emoção, também achou o mesmo. Estavam ambos transidos de
espanto e de uma alegria mesclada de sofrimento; ambos se enterneciam; ambos
choravam; palpitava-lhes o coração; soltavam gritos; arrancavam um ao outro os
retratos; cada qual os tomava e devolvia vinte vezes por segundo devoravam com
os olhos os retratos e o hurão; perguntavam-lhe um após outro, e os dois ao
mesmo tempo, em que lugar, em que tempo, de que modo, tinham aquelas miniaturas
ido parar às mãos da sua ama; comparavam as datas; lembravam-se de ter tido
notícias do capitão até a sua chegada à terra dos hurões; época em que mais
nada souberam a seu respeito.
Dissera-lhes o Ingênuo que não
conhecera nem pai nem mãe. O prior, que era bom observador, notou que o Ingênuo
tinha um pouco de barba e sabia que os hurões não a têm. “Seu queixo tem barba;
o Ingênuo deve ser, portanto, filho de um europeu. Meu irmão e a minha cunhada
não mais apareceram depois da expedição contra os hurões em 1669; meu sobrinho
devia ser então criança de peito; a ama huronesa lhe salvou a vida e serviu-lhe
de mãe”. Enfim, depois de cem perguntas e cem respostas, o prior e sua irmã
concluíram que o hurão era o seu próprio sobrinho. Beijavam-no a chorar; e o
Ingênuo ria, sem poder imaginar como é que um hurão poderia ser sobrinho de um
prior da Baixa Bretanha.
Acorreram todos; o senhor de St.
Yves, que era grande fisionomista, comparou os dois retratos com o rosto do
Ingênuo; notou habilmente que ele tinha os olhos da mãe, a testa e o nariz do
falecido capitão de Kerkabon, e as faces de ambos. A senhorita de St. Yves, que
jamais vira o pai nem a mãe, assegurou que o Ingênuo se lhes assemelhava
perfeitamente. Admiravam todos a Providência e o encadeamento dos sucessos
deste mundo. Estavam enfim tão persuadidos, tão convictos da origem do Ingênuo,
que ele próprio assentiu em ser sobrinho do senhor prior, dizendo que gostaria
tanto de o ter por tio como a qualquer outro.
Foram agradecer a Deus na igreja
de Nossa Senhora da Montanha, enquanto o hurão, com um ar indiferente,
divertia-se em beber em casa.
Os ingleses que o tinham trazido,
e que estavam prestes a zarpar, vieram dizer-lhe que era tempo de partir.
— Pelo que vejo – lhes disse o
hurão, – vocês não encontraram os seus tios: eu fico por aqui; voltem para
Plymouth; dou-lhes de presente todos os meus trapos; não tenho necessidade de
mais nada no mundo, pois sou sobrinho de um prior.
Os ingleses velejaram, pouco se
lhes dando que o hurão tivesse ou não parentes na Baixa Bretanha.
Depois que o tio, a tia e todas
as visitas cantaram o Te Deum; depois que o bailio encheu o Ingênuo de novas
perguntas; depois que esgotaram tudo o que o espanto, a alegria e a ternura
podem fazer dizer, o prior da Montanha e o padre de St. Yves resolveram
batizá-lo o mais depressa possível Mas um hurão adulto de vinte e dois anos não
estava no mesmo caso de uma criança, a quem se regenera sem que esta fique
sabendo coisa alguma. Era preciso doutriná-lo, e isso parecia difícil; pois o
abade de St. Yves supunha que um homem que não nascera na França não podia ter
senso comum.
O prior observou à companhia que,
se de fato o Ingênuo, seu sobrinho, não tivera a ventura de nascer na Baixa
Bretanha, nem por isso deixava de ter espírito, o que se poderia avaliar por
todas as suas respostas, e que sem dúvida a natureza muito o favorecera, tanto
do lado paterno como do materno.
Perguntaram-lhe primeiro se ele
já tinha lido algum livro. Respondeu que lera Rabelais traduzido em inglês e
alguns trechos de Shakespeare que sabia de cor; que tinha encontrado esses
livros com o capitão do navio que o trouxera da América para Plymouth, e que muito
lhe haviam agradado. O bailio não deixou de interrogá-lo sobre os referidos
livros.
— Confesso – disse o Ingênuo –
que julguei adivinhar qualquer coisa, e não entendi o resto.
A estas palavras, o padre de St.
Yves refletiu que era assim que ele próprio sempre havia lido, e que a maioria
dos homens não lia de outro modo.
— Com certeza já leu a Bíblia,
não? – perguntou ele ao Ingênuo.
— Absolutamente, senhor padre;
não estava entre os livros do meu capitão, nem nunca ouvi falar nisso.
— Eis como são esses malditos
ingleses – gritava a senhorita Kerkabon. – Farão mais caso de uma peça de
Shakespeare, de um plumpunding e de uma garrafa de rum do que do Pentateuco. É
por isso que jamais converteram ninguém na América. Certamente são amaldiçoados
de Deus; e dentro em pouco nós lhes tomaremos a Jamaica e a Virgínia. Como quer
que fosse, mandaram buscar o mais hábil alfaiate de Saint-Malo para vestir o
Ingênuo dos pés à cabeça. O grupo separou-se; o bailio foi fazer suas perguntas
noutra parte. A senhorita de St. Yves, ao partir, voltou-se várias vezes, a fim
de olhar para o Ingênuo; e fez-lhe reverências mais profundas do que nunca as
fizera a ninguém em toda a vida.
Antes de partir, o bailio
apresentou à senhorita de St. Yves um paspalhão de filho que acabava de sair do
colégio; ela, porém, mal lhe dirigiu o olhar, tão preocupada estava com o
hurão.
O hurão, chamado o
Ingênuo, é convertido.
O senhor prior, vendo que
envelhecia e que Deus lhe enviava um sobrinho para seu consolo, considerou que
poderia resignar-lhe o priorado se conseguisse batizá-lo e fazê-lo tomar
hábito.
O Ingênuo tinha excelente
memória. A firmeza dos órgãos bretão., fortificada pelo clima do Canadá,
tornara-lhe a cabeça tão vigorosa que, quando batiam nela, mal o sentia; e,
tudo que lhe gravavam dentro, nunca se apagava; jamais esquecera coisa alguma.
E tanto mais viva e nítida era a sua concepção, porquanto a sua infância não
fora sobrecarregada com as inutilidades e tolices que acabrunham a nossa, de
modo que as coisas penetravam num cérebro sem nuvens. O prior resolveu enfim
fazê-lo ler o Novo Testamento. O Ingênuo devorou-o com grande prazer, mas, não
sabendo em que tempo nem em que local haviam acontecido as aventuras ali
referidas, não duvidou que o teatro dos acontecimentos fosse a Baixa Bretanha,
e jurou que cortaria o nariz e as orelhas a Caifás e a Pilatos, se algum dia
encontrasse esses marotos.
O tio, encantado com essas boas
disposições, o esclareceu em pouco tempo; louvou o seu zelo, mas fez-lhe ver
que esse zelo era inútil, visto que tais pessoas haviam morrido há cerca de mil
seiscentos e noventa anos. Em breve o Ingênuo sabia quase todo o livro de cor.
Apresentava algumas vezes objeções que deixavam o prior em grandes
dificuldades, obrigando-o a ir consultar o padre de St. Yves, o qual, não
sabendo o que responder, mandou chamar um jesuíta bretão para completar a
conversão do Ingênuo.
Enfim a graça operou; o Ingênuo
prometeu fazer-se cristão; e não teve a menor dúvida de que deveria começar por
ser circuncidado.
— Pois – dizia ele – não vejo no
livro que me deram a ler um único personagem que não o tenha sido; é, pois,
evidente que devo fazer o sacrifício do meu prepúcio: e quanto mais cedo,
melhor.
Não vacilou. Mandou chamar o
cirurgião da aldeia e pediu-lhe que lhe fizesse a operação, esperando alegrar
infinitamente a senhorita de Kerkabon e a toda a companhia, depois que o fato
estivesse consumado. O cirurgião, que nunca fizera a operação referida, avisou
a família, que bradou aos céus. A boa Kerkabon temeu que seu sobrinho, que
parecia resoluto e expedito, fizesse em si mesmo a operação com desastrada
imperícia, e disso resultassem tristes conseqüências pelas quais as damas
sempre se interessam por bondade de coração.
O prior retificou as idéias do
hurão; fez-lhe ver que a circuncisão não estava mais em moda, que o batismo era
muito mais suave e salutar, que a lei da graça não era como a lei da austeridade.
O Ingênuo, que tinha bastante bom-senso e retidão, discutiu, mas afinal
reconheceu o seu erro, coisa muito rara na Europa em gente que discute;
prometeu enfim submeter-se ao batismo quando bem quisessem.
Antes era preciso confessar-se, e
ai estava a maior dificuldade. O Ingênuo, que sempre trazia no bolso o livro
que o tio lhe dera, não via ali nenhum apóstolo que se houvesse jamais
confessado, e isso o tornava bastante rebelde. O prior fechou-lhe a boca,
mostrando-lhe, na epístola de S. Jaques o Moço, estas palavras que causam tanta
espécie aos heréticos: Confessei-vos uns aos outros. O hurão não objetou mais
nada e confessou-se a um recoleto. Terminada a confissão, tirou o frade do
confessionário, e, segurando vigorosamente o seu homem, obrigou-o a pôr-se de
joelhos, dizendo-lhe:
— Vamos, meu amigo. Está escrito:
Confessai-vos uns aos outros. Eu te contei os meus pecados; não sairá daqui sem
que me hajas contado os teus.
Assim falando, apoiava o joelho
contra o peito da parte adversária. O padre começa a soltar gritos que fazem
reboar a igreja. Acodem ao barulho, vêem o catecúmeno a esmurrar o monge em
nome de S. Jaques o Moço. Mas era tão grande a alegria de batizar um
baixo-bretão hurão e inglês, que passaram por alto essas singularidades. Houve
até muitos teólogos que pensaram não ser necessária a confissão, visto que o
batismo servia para tudo.
Combinaram a data com o bispo de
Saint-Malo, que lisonjeado, como era de esperar-se, por batizar um hurão,
chegou em pomposa equipagem, acompanhado da sua clerezia. A senhorita de St.
Yves, bendizendo a Deus, pôs o seu mais belo vestido e mandou chamar uma
cabeleireira de St. Malo, para brilhar na cerimônia. O inquiridor bailio
acorreu com toda a província. A igreja estava magnificamente paramentada; mas, quando
chegou a hora de levar o hurão para a pia batismal, nada de hurão.
O tio e a tia o procuraram por
toda parte. Julgaram que estivesse a caçar, segundo o seu costume. Todos os
convidados percorreram os matos e aldeias vizinhas: nem traços do hurão.
Começava-se a temer que tivesse
ele voltado para a Inglaterra. Lembravam-se de tê-lo ouvido dizer que gostava
muito desse país. O prior e a sua irmã achavam-se persuadidos de que ali não
batizavam ninguém, e tremiam pela alma do sobrinho. O bispo estava confuso e
prestes a regressar; o prior e o padre de St. Yves desesperavam-se. A senhorita
de Kerkabon chorava; a senhorita de St. Yves não chorava, mas lançava profundos
suspiros que pareciam testemunhar o seu gosto pelos sacramentos. Passeavam elas
tristemente ao longo dos salgueiros e caniços que marginam o ribeiro de Rance,
quando avistaram no meio da corrente um grande vulto branco com as mãos
cruzadas no peito. Soltaram um grito e desviaram-se. Mas a curiosidade venceu
logo qualquer outra consideração: puseram-se ambas a avançar cautelosamente
entre os caniços e, quando se asseguraram de que não eram vistas, resolveram
certificar-se do que se tratava.
O Ingênuo
batizado.
O prior e o abade, tendo
acorrido, perguntaram ao Ingênuo o que estava fazendo ali.
— Ora essa! Espero o batismo. Faz
uma hora que estou dentro d’água. E não é nada direito me deixarem aqui a
gelar.
— Meu querido sobrinho –
disse-lhe carinhosamente o prior, – não é assim que se fazem batizados na Baixa
Bretanha; veste a tua roupa e vem conosco.
Ouvindo tais palavras, a
senhorita de St. Yves disse baixinho à companheira:
— Será que ele já vai vestir-se?
O hurão, no entanto, retrucou ao
prior:
— Agora o senhor não me
convencerá como da outra vez; desde então tenho estudado bastante e estou certo
de que não se batiza de outra maneira. O eunuco da rainha Candace foi batizado
num rio: desafio o senhor a que me mostre no livro que me deu se alguma vez se
batizou a não ser assim. Ou não serei batizado, ou serei batizado no rio.
Não adiantou alegar que haviam
mudado os costumes. O Ingênuo era cabeçudo, pois era bretão e hurão. Voltava
sempre ao eunuco da rainha Candace. E, embora a senhorita sua tia e a senhorita
de St. Yves, que o tinham observado dentre os salgueiros, estivessem no direito
de dizer-lhe que não lhe competia citar semelhante homem, abstiveram-se de
qualquer interferência, tamanha era a sua discrição. O próprio bispo veio
falar-lhe, o que já era muito; mas não adiantou: o hurão discutiu com o bispo.
— Mostre-me – lhe disse ele – no
livro que o tio me deu, um único homem que não se haja batizado no rio, e eu
farei tudo o que o senhor quiser.
A tia, desesperada, havia notado
que o sobrinho fizera uma reverência mais profunda à senhorita de St. Yves do
que às outras pessoas, e que nem ao senhor bispo saudara com aquele respeito
mesclado de cordialidade que testemunhara à formosa moça. A senhorita de
Kerkabon tomou o partido de dirigir-se a esta naquele grande embaraço;
pediu-lhe que usasse da sua influência para induzir o hurão a batizar-se à maneira
dos bretões, não acreditando que o seu sobrinho jamais pudesse ser cristão se
teimasse em ser batizado na água corrente.
A senhorita de St. Yves
enrubesceu com o secreto prazer que sentia em ser encarregada de tão importante
missão. Aproximou-se modestamente do Ingênuo e, apertando-lhe a mão com um
nobre gesto, disse-lhe:
— Será que não fará nada por mim?
E, assim falando, baixava os
olhos e erguia-os com enternecedora graça.
— Ah! farei tudo o que a
senhorita quiser, tudo o que me ordenar: batismo de água, batismo de fogo,
batismo de sangue; não há nada que eu possa recusar-lhe.
A senhorita de St. Yves teve a
glória de conseguir com duas palavras o que não haviam conseguido nem as
solicitações do prior, nem as sucessivas interrogações do bailio, nem as razões
do senhor arcebispo. Ela sentiu o seu triunfo; mas não lhe avaliava ainda toda
a extensão.
O batismo foi administrado e
recebido com toda a decência, toda a pompa, toda a distinção possível. O tio e
a tia cederam ao senhor padre de St. Yves e à sua irmã a honra de servir de
padrinhos ao Ingênuo. A senhorita de St. Yves radiava de alegria de se ver
madrinha. Não sabia ao que a sujeitava esse grande título; aceitou a honra sem
lhe conhecer as fatais conseqüências.
Como nunca houve cerimônia que
não fosse seguida de um bródio, sentaram-se à mesa ao sair do batismo. Os
espirituosos da Baixa Bretanha objetaram que o vinho não deveria ser batizado.
O senhor prior dizia que o vinho, segundo Salomão, alegra o coração do homem. O
senhor bispo acrescentava que o patriarca Juda amarrava o seu jumento à vinha e
mergulhava o manto no sangue da uva e que era uma triste coisa não ser possível
fazer o mesmo na Baixa Bretanha, a que Deus negara as vinhas. Cada qual
porfiava em dizer um gracejo sobre o batismo do Ingênuo e dirigir galanteios à
madrinha. O bailio, sempre interrogante, perguntava ao hurão se este seria fiel
às suas promessas.
— Como quer que eu falte às
minhas promessas – disse o hurão, – quando as fiz entre as mãos da senhorita de
St. Yves?
O hurão entusiasmou-se; bebeu à
grande pela saúde da madrinha.
— Se eu tivesse sido batizado por
suas mãos – disse ele, – a água fria que recebi sobre a nuca me teria queimado.
O bailio achou a frase muito
poética; ignorava o quanto a alegoria é corriqueira no Canadá. A madrinha,
essa, sentiu-se extremamente satisfeita.
— O Ingênuo recebera na pia
batismal o nome de Hércules. O bispo não cessava de perguntar quem era esse
padroeiro de quem nunca ouvira falar. O jesuíta, que era muito erudito,
respondeu-lhe que se tratava de um santo que, fizera doze milagres. Havia, na
verdade, um décimo-terceiro que valia os outros doze, mas não ficava bem a um
jesuíta referi-lo: era o de haver transformado cinqüenta donzelas em mulheres,
numa única noite. Um engraçado pôs-se a gabar entusiasticamente o referido
milagre. Todas as damas baixaram os olhos; e julgaram, pelo aspecto do Ingênuo,
que era este digno do santo de que trazia o nome.
O Ingênuo
enamorado.
Cumpre confessar que, depois
daquele batizado e daquele banquete, a senhorita de St. Yves começou a desejar
ardentemente que o senhor bispo ainda a fizesse participante de algum belo
sacramento com o senhor Hércules Ingênuo. No entanto, como era bem educada e
muito recatada, não ousava confessar a si mesma os seus ternos sentimentos;
mas, se lhe escapava um olhar, uma palavra, um gesto, um pensamento, envolvia
tudo isso num véu de pudor infinitamente amável Era terna, pressurosa, mas
comedida.
Logo que o senhor bispo partiu, o
Ingênuo e a senhorita de St. Yves se encontraram sem dar tento que se
procuravam. Falaram-se, sem imaginar o que diriam. O Ingênuo lhe disse primeiro
que a amava de todo o coração, e que a bela Abacaba, por quem estivera louco na
sua terra, não lhe chegava aos pés. Respondeu-lhe a senhorita, com o seu
ordinário recato, que era preciso o quanto antes falar nisso ao senhor prior
seu tio e à senhorita sua tia, e que, da sua parte, ela iria dizer duas
palavras ao seu caro irmão, o padre de St. Yves, e que esperava um
consentimento geral.
O Ingênuo respondeu-lhe que não
tinha necessidade do consentimento de ninguém; que lhe parecia extremamente
ridículo ir perguntar a outros o que deviam fazer; que, quando dois estão de
acordo, não há necessidade de um terceiro para acomodá-los.
— Não consulto ninguém – alegou
ele – quando tenho vontade de comer, de caçar, ou de dormir. Bem sei que, em,
amor, é bom ter o consentimento da pessoa a quem se deseja: mas, como não é nem
do meu tio nem da minha tia que estou enamorado, não é a eles que me devo
dirigir neste assunto; e, quanto à, senhorita, poderá muito bem dispensar o
senhor padre de St. Yves.
A bela bretã, como é de imaginar,
deve ter empregado toda a delicadeza de seu espírito para limitar o hurão ao
terreno do decoro. Chegou até a agastar-se e logo se apaziguou. E não se sabe
como teria terminado tal conversação se, ao anoitecer, o senhor abade não
houvesse levado a irmã para a sua abadia. O Ingênuo deixou que os tios se
fossem deitar, pois estavam fatigados da cerimônia e do longo banquete, e
passou parte da noite a fazer versos para a sua bem amada, em hurão: pois é
sabido que não há país no mundo em que o amor não torne poetas os namorados.
No dia seguinte, após o almoço,
assim lhe falou o tio, em presença da senhorita Kerkabon, que se achava toda
comovida:
— Louvado seja Deus, meu querido
sobrinho, por teres a honra de ser cristão e bretão! Mas isso não basta; já
estou ficando velho; meu irmão apenas deixou um cantinho de terra que pouco
vale; tenho um bom priorado: se quiseres ao menos fazer-te subdiácono, como o
espero, resignarei meu priorado em teu favor, e viverás folgadamente, depois de
ter sido o consolo da minha velhice.
— Meu tio – respondeu-lhe o
Ingênuo, – que bom proveito lhe faça! Viva quanto puder. Quanto a mim, não sei
o que é subdiácono, nem o que quer dizer resignar; mas tudo me ficará bem,
desde que tenha a senhorita de St. Yves à minha disposição.
— Meu Deus, meu sobrinho! Que me
dizes? Amas então loucamente a essa linda senhorita?
— Sim, meu tio.
— Ai, meu sobrinho! É impossível
casares com ela.
— Nada é mais possível, meu tio;
pois ela, ao partir, não só me apertou a mão significativamente, como prometeu
que me pediria em casamento; e sem dúvida nenhuma a desposarei.
—.Impossível, te digo eu; ela é
tua madrinha; e é um terrível pecado para uma madrinha apertar assim a mão do
afilhado; não é permitido casar com a própria madrinha; a isto se opõem as leis
divinas e as leis humanas.
— Hom’essa, meu tio! Deixe de
brincadeira: por que há de ser proibido casar com a madrinha, quando ela é moça
e bonita? Não vi no livro que o senhor me deu que não ficasse bem desposar as
moças que ajudam a gente a ser batizado. Todos os dias descubro que fazem aqui
uma infinidade de coisas que não estão no seu livro, e que nada fazem de tudo o
que ele diz. Confesso-lhe que isso me espanta e aborrece. Se me privarem da
bela St. Yves, sob pretexto de batismo, fique o senhor avisado de que a tiro de
casa e me desbatiso.
O prior ficou confuso; a irmã
pôs-se a chorar.
— Meu caro irmão – disse ela, – o
nosso sobrinho não deve perder a alma; o nosso Santo Padre lhe poderá conceder
dispensa, e então ele poderá ser cristãmente feliz com aquela a quem ama.
O Ingênuo beijou a tia.
— Quem é esse amável homem –
disse ele ,- que favorece tão bondosamente os amores dos jovens? Quero ir
falar-lhe imediatamente.
Explicaram-lhe o que era o Papa,
e o Ingênuo ficou ainda mais espantado do que antes:
— Não há uma palavra de tudo isso
no seu livro, meu estimado tio; tenho viajado, conheço o mar; estamos na costa
do Oceano; e eu vou deixar a senhorita de St. Yves para ir pedir permissão de
amá-la a um homem que mora além do Mediterrâneo, a quatrocentas léguas daqui, e
cuja língua desconheço?! Palavra, isso é de um ridículo incompreensível. Vou é
falar imediatamente com o padre de St. Yves, que mora apenas a uma légua, e
garanto-lhe que desposarei hoje mesmo aquela a quem amo.
Estava ainda a falar quando
entrou o bailio, o qual, segundo o seu costume, lhe perguntou aonde ia.
— Vou casar-me – disse o Ingênuo,
a correr. E dali a um quarto de hora se achava ele em casa da sua bela e
querida bretã, que ainda estava dormindo.
— Ah, meu irmão – dizia a
senhorita de Kerkabon ao prior, – jamais farás um subdiácono do nosso sobrinho.
O bailio ficou descontentíssimo
com tal viagem, pois pretendia casar o seu filho com a St. Yves; e esse filho
era ainda mais tolo e insuportável que o pai.
O Ingênuo chega à
casa de sua amada e fica deveras furioso.
Logo que chegou, perguntara o
Ingênuo a uma criada velha onde era o quarto da sua querida, e, sem perda de
tempo, empurrara fortemente a porta mal fechada, correndo para o leito.
Acordando-se em sobressalto, exclamara a senhorita:
— Como?! És tu? Pára, pára! Que é
que estás fazendo? Estou casando contigo – respondera ele. E com efeito a
desposaria se ela não se houvesse debatido com toda a honestidade de uma pessoa
que recebeu educação.
O Ingênuo não queria saber de
brincadeira; achava todas aquelas gatimônias muito fora de propósito:
— Não era assim que fazia a
senhorita Abacaba, a minha primeira namorada; não tens nenhuma seriedade;
prometeste-me casamento e não queres casar: estás infringindo as leis mais
elementares da honra; hei de ensinar-te a manteres a tua palavra, e te porei no
caminho da virtude.
O Ingênuo possuía uma virtude
varonil e intrépida, digna do seu padroeiro Hércules, cujo nome recebera na
pia; ia exercê-la em toda a sua extensão quando, aos lancinantes gritos da
senhorita, mais discretamente virtuosa, acudiu o honrado padre de St. Yves, com
a sua governante, um velho criado devoto e um padre da paróquia.
— Meu Deus, meu caro vizinho –
lhe disse o abade, – que vem a ser isso?
— É o meu dever – replicou o
jovem. – Estou simplesmente cumprindo a minha promessa, que é sagrada.
A senhorita de St. Yves
recompôs-se, enrubescendo. Levaram o Ingênuo para outro quarto. O abade
censurou-lhe a monstruosidade do seu procedimento. O Ingênuo defendeu-se,
alegando os privilégios da lei natural, que conhecia perfeitamente. O abade
pôs-se a provar que a lei positiva devia ter precedência e que, se não fossem
as convenções estabelecidas entre os homens, a lei da natureza seria quase
sempre uma violação natural.
— Fazem-se mister – disse ele –
notários, padres, testemunhas, contratos, dispensas.
— Respondeu-lhe o Ingênuo com a
reflexão que sempre fizeram os selvagens:
— Muito desonestos devem ser
vocês, visto que é necessário tomar tantas precauções.
Bastante trabalho teve o
sacerdote em resolver tal dificuldade.
— Confesso – disse ele – que há
muitos inconstantes e velhacos entre nós, como haveria entre os hurões, se
estes estivessem reunidos em uma grande cidade; mas também há homens sábios,
honestos, esclarecidos, e foram estes que fizeram as leis. Quanto mais honrado
é um homem, mais deve submeter-se a elas; assim se dá exemplo aos viciosos, que
respeitam um freio que a virtude se impôs a si mesma.
Tal resposta impressionou o
Ingênuo. Já ficou dito que tinha ele um espírito justo. Acalmaram-no com
lisonjas; encheram-no de esperanças: ciladas em que sempre caem os homens dos
dois hemisférios; trouxeram até, à sua presença, a senhorita de St Yves, depois
que esta fez convenientemente a sua toilette. Tudo se passou no maior decoro.
Mas, apesar de toda essa decência, os olhos flamejantes do Ingênuo Hércules
faziam baixar os da sua amada e tremer a assistência.
Tiveram imenso trabalho para o
reconduzir a seus parentes. Ainda desta vez foi preciso recorrer à influência
da bela St. Yves; quanto mais sentia esta o seu poder sobre ele, mais o amava.
Obrigou-o a partir, com o que ficou sinceramente aflita. Afinal, depois que ele
se foi, o abade que, além de irmão mais velho da senhorita de St. Yves, era
também seu tutor, tomou o partido de subtrair sua pupila às solicitudes daquele
terrível namorado. Foi aconselhar-se com o bailio, que, tendo sempre em vista o
casamento de seu filho com a irmã do abade, alvitrou que se mandasse a pobre
moça para um convento. Foi um golpe terrível: uma indiferente que fosse metida
num convento haveria de pôr-se aos gritos; quanto mais uma enamorada, e tão
apaixonada quanto honesta; era mesmo de desesperar.
O Ingênuo, de volta ao priorado,
contou tudo, o que acontecera com a sua costumeira simplicidade. Recebeu as
mesmas censuras, que lhe produziram algum efeito no espírito e nenhum nos seus
sentidos. Mas, no dia seguinte, quando pretendeu voltar à casa de sua amada,
para discutir com ela sobre a lei natural e a lei convencional, disse-lhe o
senhor bailio, com insultuosa alegria, que a senhorita de St. Yves se achava
num convento.
— Pois bem – disse ele, – irei
discutir com ela nesse convento.
— Impossível – disse o bailio. E
longamente lhe explicou que coisa era um convento; esclareceu que tal palavra
vinha do latim conventus, que significa assembléia; e o hurão não atinava por
que não poderia ser admitido numa assembléia. Ao saber que essa assembléia era
uma espécie de prisão onde mantinham encerradas as moças – coisa horrível,
desconhecida entre os hurões e os ingleses, – ficou tão furioso como o seu
padroeiro Hércules quando Eurites, rei da Ecália, não menos cruel que o padre
de St. Yves, lhe recusou a linda Iola sua filha, não menos linda que a irmã do
padre. Queria incendiar o convento, roubar a namorada, ou morrer com ela em
meio às chamas.
A senhorita de Kerkabon,
desesperada, renunciava mais do que nunca a todas as esperanças de ver o seu
sobrinho subdiácono, e dizia, a chorar, que ele tinha o diabo no corpo depois
que fora batizado.
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