sexta-feira, 5 de abril de 2013

Voltaire - O Ingênuo (Cap. I-VI)

Voltaire

CAPÍTULO I

Como a prior de Nossa Senhora da Montanha e a senhorita sua irmã encontraram um hurão.

Um dia S. Dunstan, irlandês de nacionalidade e santo de profissão, partiu da Irlanda a bordo de uma
pequena montanha que navegou para as costas da França, indo arribar à baia de Saint-Malo. Depois do que, deu ele a bênção à sua montanha, a qual lhe fez profundas reverências e voltou para a Irlanda pelo mesmo caminho por onde tinha vindo.
Dunstan fundou ali um pequeno priorado, dando-lhe o nome de priorado da Montanha, denominação que ainda hoje conserva, como todos sabem.
Ora, na tarde de 15 de julho de 1689, o abade de Kerkabon, prior de Nossa Senhora da Montanha, passeava à beira-mar com a senhorita de Kerkabon, sua irmã, para tomar a fresca. O prior, já um tanto avançado em idade, era um excelente eclesiástico, muito amado pelos seus paroquianos, depois de o ter sido outrora pelas suas paroquianas. O que lhe valera sobretudo grande consideração é que era o único clérigo da província que não precisava ser carregado para o leito depois de cear com os seus confrades. Sabia muito corretamente a sua teologia e, quando cansado de ler Santo Agostinho, divertia-se com Rabelais: de modo que todos diziam bem dele.
A senhorita de Kerkabon que jamais havia casado, embora vontade não lhe faltasse, ainda não perdera o frescor aos quarenta e cinco anos; boa e sensível de gênio, gostava de divertimentos e era devota.
Dizia o prior à irmã, olhando o mar:
— Ah! foi aqui que embarcou o nosso pobre irmão, com a nossa querida cunhada, a senhora de Kerkabon, sua esposa, na fragata Hirondelle, em 1669, para ir servir no Canadá. Se não o tivessem matado, poderíamos ter a esperança de tornar a vê-lo.
— Acreditas – dizia a senhorita de Kerkabon – que a nossa cunhada tenha sido devorada pelos iroqueses, como nos disseram? É certo que, se não a tivessem comido, teria voltado à sua terra. Hei de chorá-la toda a vida: era uma mulher encantadora; e nosso irmão, que era bastante inteligente, teria feito uma bela fortuna.
Enquanto assim se comoviam a tais lembranças, viram entrar na baía de Rance uma pequena embarcação que chegava com a maré: eram ingleses que vinham vender alguns gêneros de seu país. Saltaram em terra, sem preocupar-se com o senhor prior nem com a senhorita sua irmã, que ficou muito chocada com a desatenção.
Não sucedeu o mesmo com um jovem de excelente compleição que, saltando por cima da cabeça de seus companheiros, veio cair de pé em frente à senhorita. Cumprimentou-a com a cabeça, pois, pelos modos, não aprendera a fazer reverência. Seu aspecto e sua indumentária atraíram os olhares do irmão e da irmã. Tinha a cabeça descoberta, as pernas nuas, longas tranças, pequenas sandálias, e um gibão que lhe modelava o talhe esbelto; e um ar ao mesmo tempo viril e bondoso. Trazia numa das mãos uma pequena garrafa de água de Barbados, e na outra uma espécie de bolsa na qual havia uma caneca e bolachas. Falava francês de um modo bastante inteligível. Ofereceu água de Barbados à senhorita de Kerkabon e ao senhor seu irmão; bebeu com ambos; fê-los beber de novo; e tudo isso com um ar tão simples e natural que o irmão e a irmã ficaram encantados. Ofereceram-lhe seus préstimos, perguntando-lhe quem era e aonde ia. O jovem lhes respondeu. que não sabia ao certo, pois era um simples curioso que quisera saber como eram as costas de França e que, como ali chegara, logo se retiraria.
Julgando, pelo seu acento, que ele não era inglês, tomou o prior a liberdade de lhe perguntar qual o seu país de origem.
— Eu sou hurão – respondeu-lhe o jovem.
A senhorita de Kerkabon, espantada e encantada de ver um hurão que a cumulara de atenções convidou o jovem para jantar; este não se fez de rogado e dirigiram-se os três para o priorado de Nossa Senhora da Montanha.
A miúda e rechonchuda senhorita não tirava dele os seus olhinhos e dizia de vez em quando ao prior:
— Esse rapagão tem uma pele de lírio e rosas! Que bela tez para um hurão!
— Tens razão, minha irmã – dizia o prior.
Ela fazia cem perguntas seguidas, a que o viajante sempre respondia com toda a justeza.
Logo se espalhou o rumor de que havia um hurão no priorado. A alta sociedade do cantão apressou-se em comparecer. O padre de St. Yves veio acompanhado da senhorita sua irmã, jovem baixa-bretã, muito bonita e muito bem educada. O bailio, o recebedor de impostos e suas respectivas mulheres não faltaram à ceia. Colocaram o estrangeiro entre a senhorita de Kerkabon e a senhorita de St. Yves. Todos o olhavam com admiração, todos lhe falavam e interrogavam ao mesmo tempo; o hurão não perdia a compostura. Parecia haver tomado por divisa a de milorde Bolingbroke: nihil admirari. Afinal, cansado de tanto barulho, disse-lhes suavemente, mas com firmeza:
— Senhores, na minha terra fala um depois do outro; como querem que lhes responda, se me impedem de ouvi-los?
A razão sempre faz com que os homens se compenetrem por alguns momentos. Estabeleceu-se um grande silêncio. O senhor bailio, que sempre se apoderava dos estranhos em qualquer parte onde se achasse, e que era o maior perguntador da província, indagou, abrindo uma boca de palmo e meio:
— Como se chama o senhor?
— Sempre me chamaram o Ingênuo, nome este que me foi confirmado na Inglaterra, porque eu sempre digo singelamente o que penso e faço tudo o que quero.
— Mas como, tendo nascido hurão, foi o senhor parar na Inglaterra?
— É que me levaram para lá. Em combate, fui feito prisioneiro pelos ingleses, depois de me haver defendido o mais que pude. E os ingleses, que apreciam a bravura, porque são bravos e tão direitos como os hurões, propuseram-me devolver-me a meus país ou levar-me para a Inglaterra. Aceitei a última oferta, pois gosto imenso de ver terras novas.
— Mas – disse o bailio com o seu tom imponente – como pôde o senhor abandonar assim o seu pai e a sua mãe?
— É que nunca conheci nem pai nem mãe – respondeu o estrangeiro.
Não houve quem não se comovesse, e todos repetiam: Nem pai nem mãe!
— Nós lhe serviremos de pai e mãe – disse a dona da casa ao prior. – Como é interessante esse senhor hurão!
O Ingênuo agradeceu-lhe com uma nobre e altiva cordialidade, e deu-lhe a entender que não tinha necessidade de coisa alguma.
— Vejo, senhor Ingênuo – disse o grave bailio, – que o seu francês é excelente para um hurão.
— Um francês – disse ele que os hurões haviam aprisionado quando eu era pequenino, e a quem dediquei grande amizade, ensinou-me a sua língua; aprendo muito depressa o que quero aprender. Ao chegar em Plymouth, encontrei um desses refugiados franceses a que chamam huguenotes, não sei por quê; fiz com ele alguns progressos no conhecimento de vossa língua e, logo que me pude exprimir inteligivelmente, vim visitar o vosso país, pois aprecio bastante os franceses quando eles não fazem muitas perguntas.
O abade de St. Yves, apesar dessa pequena advertência, perguntou-lhe qual das três línguas preferia: o hurão, o inglês, ou o francês.
— O hurão, sem dúvida nenhuma.
— Será possível? – exclamou a senhorita de Kerkabon. – Eu sempre julguei que o francês fosse a mais bela de todas as línguas, depois do baixo-bretão.
Choveram então as perguntas. Como se dizia fumo em hurão? Taya, respondia o Ingênuo. Como se dizia comer? Essenter, respondia ele. A senhorita de Kerkabon fez absoluta questão de saber como se dizia amar; ele respondeu que isso era trovander, e sustentou, não sem razão, que tais palavras nada ficavam a dever às suas correspondentes em francês e inglês. Trovander pareceu muito bonito a todos os convivas.
O prior, que tinha na biblioteca uma gramática da língua huronesa, que lhe dera de presente o reverendo padre Sérgard-Théodat, recoleto e famoso missionário, retirou-se da mesa um momento, para ir consultá-la. Voltou arquejante de enternecimento e alegria. Reconheceu o Ingênuo como um verdadeiro hurão. Discutiram um pouco sobre a multiplicidade das línguas e chegaram à conclusão de que, se não fora a aventura da torre de Babel, a terra inteira estaria falando francês.
O interrogador bailio, que até então desconfiara um pouco do personagem, começou a considerá-lo com profundo respeito; falou-lhe com mais civilidade que antes, coisa de que o Ingênuo não se apercebeu.
A senhorita de St. Yves estava muito curiosa por saber como se amava na terra dos hurões.
— Praticando belas ações – respondeu ele – para agradar às pessoas que se parecem com a senhorita.
Todos os convivas aplaudiram com admiração. A senhorita de St. Yves enrubesceu, e sentiu-se muito bem. A senhorita de Kerkabon igualmente enrubesceu, mas não se sentiu tão bem, um pouco melindrada de que a galanteria não se dirigisse a ela, mas tinha tão bom coração que isso em nada diminuiu o seu afeto pelo visitante. Perguntou-lhe amavelmente quantas namoradas tivera ele na Hurônia.
— Só tive uma – respondeu o Ingênuo. – Era Abacaba, a boa amiga de minha querida ama; os juncos não eram mais retos, o arminho mais branco, as ovelhas menos macias, as águias menos altivas, e nem os cervos mais rápidos do que Abacaba. Ela perseguia um dia uma lebre pelas vizinhanças, a cerca de cinqüenta léguas da nossa casa. Um algonquino mal educado, que habitava cem léguas além, veto arrebatar-lhe a sua lebre; mal o soube, acorri, derrubei o algonquino com um golpe de maça, amarrei-o e fui depô-lo aos pés de Abacaba. Os pais de Abacaba queriam comê-lo; mas nunca me agradei dessa espécie de festins; restitui-lhe a liberdade e fiz dele um amigo. Abacaba ficou tão impressionada com a minha ação, que me preferiu a todos os seus pretendentes. E ainda me amaria, se não tivesse sido devorada por um urso. Castiguei o urso, usei durante muito tempo a sua pele, mas isso não me consolou.
A senhorita de St. Yves sentia um secreto prazer ao ouvir que o Ingênuo só tivera uma bem-amada e que Abacaba não mais existia; mas não discernia a causa de seu prazer. Todos fixavam os olhos no Ingênuo; louvavam-no muito por não haver permitido que os seus camaradas comessem um algonquino.
O implacável bailio, incapaz de reprimir o seu furor inquisitivo, levou a curiosidade ao ponto de se informar qual era a religião do senhor hurão; se havia escolhido a religião anglicana, ou a galicana, ou a huguenote.
Eu sou da minha religião – disse ele – como o senhor é da sua.
— Ah! – exclamou a Kerkabon – bem se vê que esses engraçados ingleses nem ao menos pensaram em batizá-lo-
— Meu Deus! – dizia a senhorita de St. Yves – como é possível que os hurões não sejam católicos? Será que os RR.PP jesuítas não os converteram a todos?
O Ingênuo assegurou que na sua terra não se convertia ninguém; que nunca um verdadeiro hurão mudara de idéias, e que na sua língua nem sequer havia um termo que significasse inconstância. Estas últimas palavras agradaram extremamente à senhorita de St. Yves.
— Nós o batizaremos, nós o batizaremos – dizia a Kerkabon ao prior; – há de caber-te essa honra, meu caro irmão; faço questão de ser sua madrinha; o senhor de St. Yves o levará à pia; será uma brilhante cerimônia, de que se falará em toda a Baixa Bretanha, o que nos trará grandes honras. Toda a companhia secundou a dona da casa; todos os convivas gritavam:
— Nós o batizaremos!
O Ingênuo respondeu que na Inglaterra deixavam a gente viver como bem quisesse. Deu a entender que a proposta não lhe agradava absolutamente, e que a lei dos hurões valia pelo menos a lei dos baixo-bretões; enfim, disse que iria embora no dia seguinte. Acabaram de esvaziar a sua garrafa de água de Barbados e foram deitar-se.
Depois que o Ingênuo se recolheu ao quarto, a senhorita de Kerkabon e sua amiga a senhorita de St. Yves não puderam deixar de espiar pelo buraco da fechadura, para ver como dormia um hurão. Viram que havia estendido a roupa do leito no soalho e que repousava na mais bela atitude do mundo.


CAPÍTULO II

O hurão, chamado o Ingênuo, é reconhecido por seus parentes.

O Ingênuo, segundo o seu costume, acordou com o sol, ao cantar do galo, que é chamado na Inglaterra e na Hurônia a trombeta do dia. Não era como a gente da alta., que enlanguesce num preguiçoso leito, até que o sol haja feito metade do seu curso, que não pode nem dormir nem levantar-se, que perde tantas horas preciosas nesse estado intermediário entre a vida e a morte, e ainda se queixa de que a vida é demasiado curta.
Já fizera duas ou três léguas, tendo abatido, a funda, umas trinta peças de caça, quando, ao regressar, encontrou o prior de Nossa Senhora da Montanha e sua discreta irmã, que passeavam de touca de dormir pelo seu pequeno jardim. Apresentou-lhes a sua caça e, tirando da camisa uma espécie de talismã que trazia sempre ao pescoço, pediu-lhes que o aceitassem como agradecimento pela sua boa recepção.
— É o que eu tenho de mais precioso – lhes disse ele. Asseguraram-me que eu seria sempre feliz enquanto o usasse. E assim lhes faço este presente, para que sejam sempre felizes.
O prior e sua irmã sorriram comovidos ante a simplicidade do Ingênuo. O referido presente consistia em dois pequenos retratos muito mal feitos, unidos por uma correia bastante sebenta 
A senhorita de Kerkabon perguntou-lhe se havia pintores na Hurônia.
— Não – disse o Ingênuo, – esta raridade me veio de parte de minha ama; o seu marido a adquirira por conquista, despojando alguns franceses do Canadá que haviam travado batalha conosco. É só o que eu sei.
O prior examinava atentamente aqueles retratos; mudou de cor, emocionou-se, as mãos tremeram-lhe.
— Por Nossa Senhora da Montanha – exclamou ele, – creio que é o meu irmão capitão e sua mulher.
A senhorita, depois de os haver examinado com igual emoção, também achou o mesmo. Estavam ambos transidos de espanto e de uma alegria mesclada de sofrimento; ambos se enterneciam; ambos choravam; palpitava-lhes o coração; soltavam gritos; arrancavam um ao outro os retratos; cada qual os tomava e devolvia vinte vezes por segundo devoravam com os olhos os retratos e o hurão; perguntavam-lhe um após outro, e os dois ao mesmo tempo, em que lugar, em que tempo, de que modo, tinham aquelas miniaturas ido parar às mãos da sua ama; comparavam as datas; lembravam-se de ter tido notícias do capitão até a sua chegada à terra dos hurões; época em que mais nada souberam a seu respeito.
Dissera-lhes o Ingênuo que não conhecera nem pai nem mãe. O prior, que era bom observador, notou que o Ingênuo tinha um pouco de barba e sabia que os hurões não a têm. “Seu queixo tem barba; o Ingênuo deve ser, portanto, filho de um europeu. Meu irmão e a minha cunhada não mais apareceram depois da expedição contra os hurões em 1669; meu sobrinho devia ser então criança de peito; a ama huronesa lhe salvou a vida e serviu-lhe de mãe”. Enfim, depois de cem perguntas e cem respostas, o prior e sua irmã concluíram que o hurão era o seu próprio sobrinho. Beijavam-no a chorar; e o Ingênuo ria, sem poder imaginar como é que um hurão poderia ser sobrinho de um prior da Baixa Bretanha.
Acorreram todos; o senhor de St. Yves, que era grande fisionomista, comparou os dois retratos com o rosto do Ingênuo; notou habilmente que ele tinha os olhos da mãe, a testa e o nariz do falecido capitão de Kerkabon, e as faces de ambos. A senhorita de St. Yves, que jamais vira o pai nem a mãe, assegurou que o Ingênuo se lhes assemelhava perfeitamente. Admiravam todos a Providência e o encadeamento dos sucessos deste mundo. Estavam enfim tão persuadidos, tão convictos da origem do Ingênuo, que ele próprio assentiu em ser sobrinho do senhor prior, dizendo que gostaria tanto de o ter por tio como a qualquer outro.
Foram agradecer a Deus na igreja de Nossa Senhora da Montanha, enquanto o hurão, com um ar indiferente, divertia-se em beber em casa.
Os ingleses que o tinham trazido, e que estavam prestes a zarpar, vieram dizer-lhe que era tempo de partir.
— Pelo que vejo – lhes disse o hurão, – vocês não encontraram os seus tios: eu fico por aqui; voltem para Plymouth; dou-lhes de presente todos os meus trapos; não tenho necessidade de mais nada no mundo, pois sou sobrinho de um prior.
Os ingleses velejaram, pouco se lhes dando que o hurão tivesse ou não parentes na Baixa Bretanha.
Depois que o tio, a tia e todas as visitas cantaram o Te Deum; depois que o bailio encheu o Ingênuo de novas perguntas; depois que esgotaram tudo o que o espanto, a alegria e a ternura podem fazer dizer, o prior da Montanha e o padre de St. Yves resolveram batizá-lo o mais depressa possível Mas um hurão adulto de vinte e dois anos não estava no mesmo caso de uma criança, a quem se regenera sem que esta fique sabendo coisa alguma. Era preciso doutriná-lo, e isso parecia difícil; pois o abade de St. Yves supunha que um homem que não nascera na França não podia ter senso comum.
O prior observou à companhia que, se de fato o Ingênuo, seu sobrinho, não tivera a ventura de nascer na Baixa Bretanha, nem por isso deixava de ter espírito, o que se poderia avaliar por todas as suas respostas, e que sem dúvida a natureza muito o favorecera, tanto do lado paterno como do materno.
Perguntaram-lhe primeiro se ele já tinha lido algum livro. Respondeu que lera Rabelais traduzido em inglês e alguns trechos de Shakespeare que sabia de cor; que tinha encontrado esses livros com o capitão do navio que o trouxera da América para Plymouth, e que muito lhe haviam agradado. O bailio não deixou de interrogá-lo sobre os referidos livros.
— Confesso – disse o Ingênuo – que julguei adivinhar qualquer coisa, e não entendi o resto.
A estas palavras, o padre de St. Yves refletiu que era assim que ele próprio sempre havia lido, e que a maioria dos homens não lia de outro modo.
— Com certeza já leu a Bíblia, não? – perguntou ele ao Ingênuo.
— Absolutamente, senhor padre; não estava entre os livros do meu capitão, nem nunca ouvi falar nisso.
— Eis como são esses malditos ingleses – gritava a senhorita Kerkabon. – Farão mais caso de uma peça de Shakespeare, de um plumpunding e de uma garrafa de rum do que do Pentateuco. É por isso que jamais converteram ninguém na América. Certamente são amaldiçoados de Deus; e dentro em pouco nós lhes tomaremos a Jamaica e a Virgínia. Como quer que fosse, mandaram buscar o mais hábil alfaiate de Saint-Malo para vestir o Ingênuo dos pés à cabeça. O grupo separou-se; o bailio foi fazer suas perguntas noutra parte. A senhorita de St. Yves, ao partir, voltou-se várias vezes, a fim de olhar para o Ingênuo; e fez-lhe reverências mais profundas do que nunca as fizera a ninguém em toda a vida.
Antes de partir, o bailio apresentou à senhorita de St. Yves um paspalhão de filho que acabava de sair do colégio; ela, porém, mal lhe dirigiu o olhar, tão preocupada estava com o hurão.


CAPÍTULO III

O hurão, chamado o Ingênuo, é convertido.

O senhor prior, vendo que envelhecia e que Deus lhe enviava um sobrinho para seu consolo, considerou que poderia resignar-lhe o priorado se conseguisse batizá-lo e fazê-lo tomar hábito.
O Ingênuo tinha excelente memória. A firmeza dos órgãos bretão., fortificada pelo clima do Canadá, tornara-lhe a cabeça tão vigorosa que, quando batiam nela, mal o sentia; e, tudo que lhe gravavam dentro, nunca se apagava; jamais esquecera coisa alguma. E tanto mais viva e nítida era a sua concepção, porquanto a sua infância não fora sobrecarregada com as inutilidades e tolices que acabrunham a nossa, de modo que as coisas penetravam num cérebro sem nuvens. O prior resolveu enfim fazê-lo ler o Novo Testamento. O Ingênuo devorou-o com grande prazer, mas, não sabendo em que tempo nem em que local haviam acontecido as aventuras ali referidas, não duvidou que o teatro dos acontecimentos fosse a Baixa Bretanha, e jurou que cortaria o nariz e as orelhas a Caifás e a Pilatos, se algum dia encontrasse esses marotos.
O tio, encantado com essas boas disposições, o esclareceu em pouco tempo; louvou o seu zelo, mas fez-lhe ver que esse zelo era inútil, visto que tais pessoas haviam morrido há cerca de mil seiscentos e noventa anos. Em breve o Ingênuo sabia quase todo o livro de cor. Apresentava algumas vezes objeções que deixavam o prior em grandes dificuldades, obrigando-o a ir consultar o padre de St. Yves, o qual, não sabendo o que responder, mandou chamar um jesuíta bretão para completar a conversão do Ingênuo.
Enfim a graça operou; o Ingênuo prometeu fazer-se cristão; e não teve a menor dúvida de que deveria começar por ser circuncidado.
— Pois – dizia ele – não vejo no livro que me deram a ler um único personagem que não o tenha sido; é, pois, evidente que devo fazer o sacrifício do meu prepúcio: e quanto mais cedo, melhor.
Não vacilou. Mandou chamar o cirurgião da aldeia e pediu-lhe que lhe fizesse a operação, esperando alegrar infinitamente a senhorita de Kerkabon e a toda a companhia, depois que o fato estivesse consumado. O cirurgião, que nunca fizera a operação referida, avisou a família, que bradou aos céus. A boa Kerkabon temeu que seu sobrinho, que parecia resoluto e expedito, fizesse em si mesmo a operação com desastrada imperícia, e disso resultassem tristes conseqüências pelas quais as damas sempre se interessam por bondade de coração.
O prior retificou as idéias do hurão; fez-lhe ver que a circuncisão não estava mais em moda, que o batismo era muito mais suave e salutar, que a lei da graça não era como a lei da austeridade. O Ingênuo, que tinha bastante bom-senso e retidão, discutiu, mas afinal reconheceu o seu erro, coisa muito rara na Europa em gente que discute; prometeu enfim submeter-se ao batismo quando bem quisessem.
Antes era preciso confessar-se, e ai estava a maior dificuldade. O Ingênuo, que sempre trazia no bolso o livro que o tio lhe dera, não via ali nenhum apóstolo que se houvesse jamais confessado, e isso o tornava bastante rebelde. O prior fechou-lhe a boca, mostrando-lhe, na epístola de S. Jaques o Moço, estas palavras que causam tanta espécie aos heréticos: Confessei-vos uns aos outros. O hurão não objetou mais nada e confessou-se a um recoleto. Terminada a confissão, tirou o frade do confessionário, e, segurando vigorosamente o seu homem, obrigou-o a pôr-se de joelhos, dizendo-lhe:
— Vamos, meu amigo. Está escrito: Confessai-vos uns aos outros. Eu te contei os meus pecados; não sairá daqui sem que me hajas contado os teus.
Assim falando, apoiava o joelho contra o peito da parte adversária. O padre começa a soltar gritos que fazem reboar a igreja. Acodem ao barulho, vêem o catecúmeno a esmurrar o monge em nome de S. Jaques o Moço. Mas era tão grande a alegria de batizar um baixo-bretão hurão e inglês, que passaram por alto essas singularidades. Houve até muitos teólogos que pensaram não ser necessária a confissão, visto que o batismo servia para tudo.
Combinaram a data com o bispo de Saint-Malo, que lisonjeado, como era de esperar-se, por batizar um hurão, chegou em pomposa equipagem, acompanhado da sua clerezia. A senhorita de St. Yves, bendizendo a Deus, pôs o seu mais belo vestido e mandou chamar uma cabeleireira de St. Malo, para brilhar na cerimônia. O inquiridor bailio acorreu com toda a província. A igreja estava magnificamente paramentada; mas, quando chegou a hora de levar o hurão para a pia batismal, nada de hurão.
O tio e a tia o procuraram por toda parte. Julgaram que estivesse a caçar, segundo o seu costume. Todos os convidados percorreram os matos e aldeias vizinhas: nem traços do hurão.
Começava-se a temer que tivesse ele voltado para a Inglaterra. Lembravam-se de tê-lo ouvido dizer que gostava muito desse país. O prior e a sua irmã achavam-se persuadidos de que ali não batizavam ninguém, e tremiam pela alma do sobrinho. O bispo estava confuso e prestes a regressar; o prior e o padre de St. Yves desesperavam-se. A senhorita de Kerkabon chorava; a senhorita de St. Yves não chorava, mas lançava profundos suspiros que pareciam testemunhar o seu gosto pelos sacramentos. Passeavam elas tristemente ao longo dos salgueiros e caniços que marginam o ribeiro de Rance, quando avistaram no meio da corrente um grande vulto branco com as mãos cruzadas no peito. Soltaram um grito e desviaram-se. Mas a curiosidade venceu logo qualquer outra consideração: puseram-se ambas a avançar cautelosamente entre os caniços e, quando se asseguraram de que não eram vistas, resolveram certificar-se do que se tratava.


CAPÍTULO IV

O Ingênuo batizado.

O prior e o abade, tendo acorrido, perguntaram ao Ingênuo o que estava fazendo ali.
— Ora essa! Espero o batismo. Faz uma hora que estou dentro d’água. E não é nada direito me deixarem aqui a gelar.
— Meu querido sobrinho – disse-lhe carinhosamente o prior, – não é assim que se fazem batizados na Baixa Bretanha; veste a tua roupa e vem conosco.
Ouvindo tais palavras, a senhorita de St. Yves disse baixinho à companheira:
— Será que ele já vai vestir-se?
O hurão, no entanto, retrucou ao prior:
— Agora o senhor não me convencerá como da outra vez; desde então tenho estudado bastante e estou certo de que não se batiza de outra maneira. O eunuco da rainha Candace foi batizado num rio: desafio o senhor a que me mostre no livro que me deu se alguma vez se batizou a não ser assim. Ou não serei batizado, ou serei batizado no rio.
Não adiantou alegar que haviam mudado os costumes. O Ingênuo era cabeçudo, pois era bretão e hurão. Voltava sempre ao eunuco da rainha Candace. E, embora a senhorita sua tia e a senhorita de St. Yves, que o tinham observado dentre os salgueiros, estivessem no direito de dizer-lhe que não lhe competia citar semelhante homem, abstiveram-se de qualquer interferência, tamanha era a sua discrição. O próprio bispo veio falar-lhe, o que já era muito; mas não adiantou: o hurão discutiu com o bispo.
— Mostre-me – lhe disse ele – no livro que o tio me deu, um único homem que não se haja batizado no rio, e eu farei tudo o que o senhor quiser.
A tia, desesperada, havia notado que o sobrinho fizera uma reverência mais profunda à senhorita de St. Yves do que às outras pessoas, e que nem ao senhor bispo saudara com aquele respeito mesclado de cordialidade que testemunhara à formosa moça. A senhorita de Kerkabon tomou o partido de dirigir-se a esta naquele grande embaraço; pediu-lhe que usasse da sua influência para induzir o hurão a batizar-se à maneira dos bretões, não acreditando que o seu sobrinho jamais pudesse ser cristão se teimasse em ser batizado na água corrente.
A senhorita de St. Yves enrubesceu com o secreto prazer que sentia em ser encarregada de tão importante missão. Aproximou-se modestamente do Ingênuo e, apertando-lhe a mão com um nobre gesto, disse-lhe:
— Será que não fará nada por mim?
E, assim falando, baixava os olhos e erguia-os com enternecedora graça.
— Ah! farei tudo o que a senhorita quiser, tudo o que me ordenar: batismo de água, batismo de fogo, batismo de sangue; não há nada que eu possa recusar-lhe.
A senhorita de St. Yves teve a glória de conseguir com duas palavras o que não haviam conseguido nem as solicitações do prior, nem as sucessivas interrogações do bailio, nem as razões do senhor arcebispo. Ela sentiu o seu triunfo; mas não lhe avaliava ainda toda a extensão.
O batismo foi administrado e recebido com toda a decência, toda a pompa, toda a distinção possível. O tio e a tia cederam ao senhor padre de St. Yves e à sua irmã a honra de servir de padrinhos ao Ingênuo. A senhorita de St. Yves radiava de alegria de se ver madrinha. Não sabia ao que a sujeitava esse grande título; aceitou a honra sem lhe conhecer as fatais conseqüências.
Como nunca houve cerimônia que não fosse seguida de um bródio, sentaram-se à mesa ao sair do batismo. Os espirituosos da Baixa Bretanha objetaram que o vinho não deveria ser batizado. O senhor prior dizia que o vinho, segundo Salomão, alegra o coração do homem. O senhor bispo acrescentava que o patriarca Juda amarrava o seu jumento à vinha e mergulhava o manto no sangue da uva e que era uma triste coisa não ser possível fazer o mesmo na Baixa Bretanha, a que Deus negara as vinhas. Cada qual porfiava em dizer um gracejo sobre o batismo do Ingênuo e dirigir galanteios à madrinha. O bailio, sempre interrogante, perguntava ao hurão se este seria fiel às suas promessas.
— Como quer que eu falte às minhas promessas – disse o hurão, – quando as fiz entre as mãos da senhorita de St. Yves?
O hurão entusiasmou-se; bebeu à grande pela saúde da madrinha.
— Se eu tivesse sido batizado por suas mãos – disse ele, – a água fria que recebi sobre a nuca me teria queimado.
O bailio achou a frase muito poética; ignorava o quanto a alegoria é corriqueira no Canadá. A madrinha, essa, sentiu-se extremamente satisfeita.
— O Ingênuo recebera na pia batismal o nome de Hércules. O bispo não cessava de perguntar quem era esse padroeiro de quem nunca ouvira falar. O jesuíta, que era muito erudito, respondeu-lhe que se tratava de um santo que, fizera doze milagres. Havia, na verdade, um décimo-terceiro que valia os outros doze, mas não ficava bem a um jesuíta referi-lo: era o de haver transformado cinqüenta donzelas em mulheres, numa única noite. Um engraçado pôs-se a gabar entusiasticamente o referido milagre. Todas as damas baixaram os olhos; e julgaram, pelo aspecto do Ingênuo, que era este digno do santo de que trazia o nome.


CAPÍTULO V

O Ingênuo enamorado.

Cumpre confessar que, depois daquele batizado e daquele banquete, a senhorita de St. Yves começou a desejar ardentemente que o senhor bispo ainda a fizesse participante de algum belo sacramento com o senhor Hércules Ingênuo. No entanto, como era bem educada e muito recatada, não ousava confessar a si mesma os seus ternos sentimentos; mas, se lhe escapava um olhar, uma palavra, um gesto, um pensamento, envolvia tudo isso num véu de pudor infinitamente amável Era terna, pressurosa, mas comedida.
Logo que o senhor bispo partiu, o Ingênuo e a senhorita de St. Yves se encontraram sem dar tento que se procuravam. Falaram-se, sem imaginar o que diriam. O Ingênuo lhe disse primeiro que a amava de todo o coração, e que a bela Abacaba, por quem estivera louco na sua terra, não lhe chegava aos pés. Respondeu-lhe a senhorita, com o seu ordinário recato, que era preciso o quanto antes falar nisso ao senhor prior seu tio e à senhorita sua tia, e que, da sua parte, ela iria dizer duas palavras ao seu caro irmão, o padre de St. Yves, e que esperava um consentimento geral.
O Ingênuo respondeu-lhe que não tinha necessidade do consentimento de ninguém; que lhe parecia extremamente ridículo ir perguntar a outros o que deviam fazer; que, quando dois estão de acordo, não há necessidade de um terceiro para acomodá-los.
— Não consulto ninguém – alegou ele – quando tenho vontade de comer, de caçar, ou de dormir. Bem sei que, em, amor, é bom ter o consentimento da pessoa a quem se deseja: mas, como não é nem do meu tio nem da minha tia que estou enamorado, não é a eles que me devo dirigir neste assunto; e, quanto à, senhorita, poderá muito bem dispensar o senhor padre de St. Yves.
A bela bretã, como é de imaginar, deve ter empregado toda a delicadeza de seu espírito para limitar o hurão ao terreno do decoro. Chegou até a agastar-se e logo se apaziguou. E não se sabe como teria terminado tal conversação se, ao anoitecer, o senhor abade não houvesse levado a irmã para a sua abadia. O Ingênuo deixou que os tios se fossem deitar, pois estavam fatigados da cerimônia e do longo banquete, e passou parte da noite a fazer versos para a sua bem amada, em hurão: pois é sabido que não há país no mundo em que o amor não torne poetas os namorados.
No dia seguinte, após o almoço, assim lhe falou o tio, em presença da senhorita Kerkabon, que se achava toda comovida:
— Louvado seja Deus, meu querido sobrinho, por teres a honra de ser cristão e bretão! Mas isso não basta; já estou ficando velho; meu irmão apenas deixou um cantinho de terra que pouco vale; tenho um bom priorado: se quiseres ao menos fazer-te subdiácono, como o espero, resignarei meu priorado em teu favor, e viverás folgadamente, depois de ter sido o consolo da minha velhice.
— Meu tio – respondeu-lhe o Ingênuo, – que bom proveito lhe faça! Viva quanto puder. Quanto a mim, não sei o que é subdiácono, nem o que quer dizer resignar; mas tudo me ficará bem, desde que tenha a senhorita de St. Yves à minha disposição.
— Meu Deus, meu sobrinho! Que me dizes? Amas então loucamente a essa linda senhorita?
— Sim, meu tio.
— Ai, meu sobrinho! É impossível casares com ela.
— Nada é mais possível, meu tio; pois ela, ao partir, não só me apertou a mão significativamente, como prometeu que me pediria em casamento; e sem dúvida nenhuma a desposarei.
—.Impossível, te digo eu; ela é tua madrinha; e é um terrível pecado para uma madrinha apertar assim a mão do afilhado; não é permitido casar com a própria madrinha; a isto se opõem as leis divinas e as leis humanas.
— Hom’essa, meu tio! Deixe de brincadeira: por que há de ser proibido casar com a madrinha, quando ela é moça e bonita? Não vi no livro que o senhor me deu que não ficasse bem desposar as moças que ajudam a gente a ser batizado. Todos os dias descubro que fazem aqui uma infinidade de coisas que não estão no seu livro, e que nada fazem de tudo o que ele diz. Confesso-lhe que isso me espanta e aborrece. Se me privarem da bela St. Yves, sob pretexto de batismo, fique o senhor avisado de que a tiro de casa e me desbatiso.
O prior ficou confuso; a irmã pôs-se a chorar.
— Meu caro irmão – disse ela, – o nosso sobrinho não deve perder a alma; o nosso Santo Padre lhe poderá conceder dispensa, e então ele poderá ser cristãmente feliz com aquela a quem ama.
O Ingênuo beijou a tia.
— Quem é esse amável homem – disse ele ,- que favorece tão bondosamente os amores dos jovens? Quero ir falar-lhe imediatamente.
Explicaram-lhe o que era o Papa, e o Ingênuo ficou ainda mais espantado do que antes:
— Não há uma palavra de tudo isso no seu livro, meu estimado tio; tenho viajado, conheço o mar; estamos na costa do Oceano; e eu vou deixar a senhorita de St. Yves para ir pedir permissão de amá-la a um homem que mora além do Mediterrâneo, a quatrocentas léguas daqui, e cuja língua desconheço?! Palavra, isso é de um ridículo incompreensível. Vou é falar imediatamente com o padre de St. Yves, que mora apenas a uma légua, e garanto-lhe que desposarei hoje mesmo aquela a quem amo.
Estava ainda a falar quando entrou o bailio, o qual, segundo o seu costume, lhe perguntou aonde ia.
— Vou casar-me – disse o Ingênuo, a correr. E dali a um quarto de hora se achava ele em casa da sua bela e querida bretã, que ainda estava dormindo.
— Ah, meu irmão – dizia a senhorita de Kerkabon ao prior, – jamais farás um subdiácono do nosso sobrinho.
O bailio ficou descontentíssimo com tal viagem, pois pretendia casar o seu filho com a St. Yves; e esse filho era ainda mais tolo e insuportável que o pai.


CAPÍTULO VI

O Ingênuo chega à casa de sua amada e fica deveras furioso.

Logo que chegou, perguntara o Ingênuo a uma criada velha onde era o quarto da sua querida, e, sem perda de tempo, empurrara fortemente a porta mal fechada, correndo para o leito. Acordando-se em sobressalto, exclamara a senhorita:
— Como?! És tu? Pára, pára! Que é que estás fazendo? Estou casando contigo – respondera ele. E com efeito a desposaria se ela não se houvesse debatido com toda a honestidade de uma pessoa que recebeu educação.
O Ingênuo não queria saber de brincadeira; achava todas aquelas gatimônias muito fora de propósito:
— Não era assim que fazia a senhorita Abacaba, a minha primeira namorada; não tens nenhuma seriedade; prometeste-me casamento e não queres casar: estás infringindo as leis mais elementares da honra; hei de ensinar-te a manteres a tua palavra, e te porei no caminho da virtude.
O Ingênuo possuía uma virtude varonil e intrépida, digna do seu padroeiro Hércules, cujo nome recebera na pia; ia exercê-la em toda a sua extensão quando, aos lancinantes gritos da senhorita, mais discretamente virtuosa, acudiu o honrado padre de St. Yves, com a sua governante, um velho criado devoto e um padre da paróquia.
— Meu Deus, meu caro vizinho – lhe disse o abade, – que vem a ser isso?
— É o meu dever – replicou o jovem. – Estou simplesmente cumprindo a minha promessa, que é sagrada.
A senhorita de St. Yves recompôs-se, enrubescendo. Levaram o Ingênuo para outro quarto. O abade censurou-lhe a monstruosidade do seu procedimento. O Ingênuo defendeu-se, alegando os privilégios da lei natural, que conhecia perfeitamente. O abade pôs-se a provar que a lei positiva devia ter precedência e que, se não fossem as convenções estabelecidas entre os homens, a lei da natureza seria quase sempre uma violação natural.
— Fazem-se mister – disse ele – notários, padres, testemunhas, contratos, dispensas.
— Respondeu-lhe o Ingênuo com a reflexão que sempre fizeram os selvagens:
— Muito desonestos devem ser vocês, visto que é necessário tomar tantas precauções.
Bastante trabalho teve o sacerdote em resolver tal dificuldade.
— Confesso – disse ele – que há muitos inconstantes e velhacos entre nós, como haveria entre os hurões, se estes estivessem reunidos em uma grande cidade; mas também há homens sábios, honestos, esclarecidos, e foram estes que fizeram as leis. Quanto mais honrado é um homem, mais deve submeter-se a elas; assim se dá exemplo aos viciosos, que respeitam um freio que a virtude se impôs a si mesma.
Tal resposta impressionou o Ingênuo. Já ficou dito que tinha ele um espírito justo. Acalmaram-no com lisonjas; encheram-no de esperanças: ciladas em que sempre caem os homens dos dois hemisférios; trouxeram até, à sua presença, a senhorita de St Yves, depois que esta fez convenientemente a sua toilette. Tudo se passou no maior decoro. Mas, apesar de toda essa decência, os olhos flamejantes do Ingênuo Hércules faziam baixar os da sua amada e tremer a assistência.
Tiveram imenso trabalho para o reconduzir a seus parentes. Ainda desta vez foi preciso recorrer à influência da bela St. Yves; quanto mais sentia esta o seu poder sobre ele, mais o amava. Obrigou-o a partir, com o que ficou sinceramente aflita. Afinal, depois que ele se foi, o abade que, além de irmão mais velho da senhorita de St. Yves, era também seu tutor, tomou o partido de subtrair sua pupila às solicitudes daquele terrível namorado. Foi aconselhar-se com o bailio, que, tendo sempre em vista o casamento de seu filho com a irmã do abade, alvitrou que se mandasse a pobre moça para um convento. Foi um golpe terrível: uma indiferente que fosse metida num convento haveria de pôr-se aos gritos; quanto mais uma enamorada, e tão apaixonada quanto honesta; era mesmo de desesperar.
O Ingênuo, de volta ao priorado, contou tudo, o que acontecera com a sua costumeira simplicidade. Recebeu as mesmas censuras, que lhe produziram algum efeito no espírito e nenhum nos seus sentidos. Mas, no dia seguinte, quando pretendeu voltar à casa de sua amada, para discutir com ela sobre a lei natural e a lei convencional, disse-lhe o senhor bailio, com insultuosa alegria, que a senhorita de St. Yves se achava num convento.
— Pois bem – disse ele, – irei discutir com ela nesse convento.
— Impossível – disse o bailio. E longamente lhe explicou que coisa era um convento; esclareceu que tal palavra vinha do latim conventus, que significa assembléia; e o hurão não atinava por que não poderia ser admitido numa assembléia. Ao saber que essa assembléia era uma espécie de prisão onde mantinham encerradas as moças – coisa horrível, desconhecida entre os hurões e os ingleses, – ficou tão furioso como o seu padroeiro Hércules quando Eurites, rei da Ecália, não menos cruel que o padre de St. Yves, lhe recusou a linda Iola sua filha, não menos linda que a irmã do padre. Queria incendiar o convento, roubar a namorada, ou morrer com ela em meio às chamas.
A senhorita de Kerkabon, desesperada, renunciava mais do que nunca a todas as esperanças de ver o seu sobrinho subdiácono, e dizia, a chorar, que ele tinha o diabo no corpo depois que fora batizado.


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